Isabela Figueiredo

"O criador está inteiramente na sua obra, seja ela o que for"

Isabela Figueiredo

No seu mais recente livro, pela primeira vez totalmente ficcionado, Isabela Figueiredo continua a escrever sobre o que conhece. Um Cão no Meio do Caminho serve de pretexto para sabermos se existem géneros literários mais pessoais que outros, ou para alertar de que o próximo salto civilizacional implica o total respeito pelos animais, ou até mesmo para celebrar o Nobel recentemente atribuído a Annie Ernaux. Mas, sobretudo, para conhecer uma autora que faz questão de se mostrar como é: e não apenas na escrita.

Uma obra de ficção pode ser tão pessoal como um livro de memórias?

Claro. A fronteira erguida pelo cânone literário entre ficção e memória, autobiografia, diário, epistolografia está profundamente ultrapassada e nunca foi justa. É anacrónica. Ando a dizer isto desde o primeiro livro que escrevi. A arte é íntima, é pessoal, mesmo quando se trata de um romance policial ou histórico. Não é possível estabelecer uma diferença qualitativa, valorativa entre a ficção e não ficção se o critério for a autenticidade ou confessionalidade. Nunca saberemos quanto de uma há nas outras, por vezes nem os seus autores. O ímpeto criativo não é totalmente controlado pelo autor. Na criação há um lado imaterial, eu diria mágico, que nos escapa. Imaginemos Siddhartha de Herman Hesse ou O Senhor do Anéis de Tolkien. São criações literárias ficcionais que respondem uma fé imensa em universos pessoais, criativos, estéticos, imagéticos, ideológicos, arquetípicos dos seus criadores. Eu costumo dar também o exemplo de Dostoievski. O que o levou a escrever Crime e Castigo? Como conhecia ele tão bem o universo dos usurários? De onde lhe veio aquela ideia para trabalhar a culpa? Nunca saberemos porque não interessa saber. A fronteira entre ficção e não ficção não se coaduna com a arte do nosso tempo na qual todas as formas de arte se encontram em diálogo sem género nem limites. O criador está inteiramente na sua obra, seja ela o que for. Pessoalmente implicado. Sempre.

Em que é que o processo de escrita deste livro foi diferente do anterior [A Gorda, 2016]?

Foi diferente. Eu conhecia bem a Maria Luisa, o David, o Papá e Mamã, e quando conhecemos bem as personagens uma parte da história já está escrita, carece apenas de destreza quando se verbaliza. No caso de Um Cão no Meio do Caminho eu não conhecia aquelas personagens e tive de construir uma relação com elas. Tive de as criar, conhecer, compreender e aceitar. E senti-las. Não tinha nada contra nem a seu favor, à partida. Claro que simpatizo mais com umas do que com outras, mas foram-se desenvolvendo em mim de acordo com a sua vontade, não a minha, e foi bonito. Aprendi muito.

Alguma vez se deparou com “um cão no meio do caminho” que viesse a adotar?

Eu sempre tive cães e gatos. A maior parte deles apareceram-me no meio do caminho, literalmente. No caso dos cães, apenas procurei dois: o primeiro, chamado Farrusco, que me foi oferecido pelo meu pai quando eu tinha seis anos e que trouxe comigo para Portugal aos 12, e o Tico, quando eu tinha 35 anos. Tive o Farrusco, o Pantufa, o Tico, a Micas, a Lili, a Morena e a Ninah. Agora tenho a Serra e a Marisol Tempestade. Mas também me aparecem outros animais no meio do caminho, como pombos feridos ou outros pássaros, que recolho, trato, recupero e depois devolvo à natureza. Os pombos são aves de enorme inteligência e beleza. Pertencem à cidade e não são ratos do ar. O município de Lisboa decorou este Natal as árvores da Avenida de Liberdade com pombos. É irónico que decore a cidade com lindos pombos e passe o resto do ano a capturá-los para eliminação. Inteligente, humano, um verdadeiro passo à frente seria autorizar colónias de pombos urbanos nas quais fosse possível vigiá-los, alimentá-los com qualidade e controlar a sua reprodução. Como podemos acusar de doenças contagiosas criaturas que as contraem porque as maltratamos, porque não cuidamos delas como de outros habitantes animais da urbe? Se comem lixo, claro que ficarão doentes. Ratos somos nós. Peço que não cortem esta parte da minha resposta e não a reduzam. Quero mesmo dizer isto.

Que importância tem para si o nome atribuído a cada personagem?

Muita. Os nomes são todos pensados e têm um valor afetivo ou simbólico. Sempre. No caso da mãe do José Viriato é simbólico. Ela é a Madalena bíblica. A Matadora chama-se Beatriz porque é o nome da personagem protagonizada por Uma Thurman na trilogia Kill Bill de Tarantino. Se se lembrarem, a Beatrix, no filme, faz um longo caminho até conseguir matar o homem que ama. O José Viriato tem o nome do meu pai. Quis homenageá-lo. O meu pai era o homem dos cães, tal como eu. Seria uma enorme honra se o escrevessem na minha lápide: aqui jaz a mulher dos cães e dos pombos e dos bichos todos. Sim, isso.

A causa animal é um tema central deste livro. A ética vegana da personagem José Viriato é também a sua?

A causa animal é um subtexto que está lá sem nunca se impor. Eu não quero exatamente fazer propaganda das minhas causas. É contraproducente. Um romance tem de ser um romance, em primeiro lugar, ou seja uma história bem contada, uma viagem. Quero mostrar o que vejo, penso, sinto, mas não está na minha mão convencer as pessoas de que a minha causa é correta. Cada um está no seu caminho, no seu processo de tomada de consciência. Respeito-o e compreendo-o. Eu também tenho feito um percurso. Esta é a minha causa, sim. Há um salto civilizacional prestes a acontecer que depende da forma como respeitaremos os animais. Já aprendemos que o caminho certo é respeitar as mulheres, as pessoas com diferentes traços étnicos, as pessoas não normativas em termos de género. Já percebemos que aqueles a que chamávamos inválidos são válidos. Falta-nos um saltinho que já começou a acontecer: o respeito pelos animais, nossos companheiros no planeta que habitamos e que a todos pertence. No dia em que isso acontecer merecemos a designação de humanos. Neste momento ainda não posso dizê-lo.

Não sou vegan, porque ainda não consigo. Não sei fazer aquelas comidas. Não aprendi. Detesto passar tempo a cozinhar. Para ser vegan teria de mandar vir a comida de fora, mas é complicado porque o meu estômago não suporta alho e a maior parte da comida vegan está carregada dele. Tenho tido más experiências. Resultado: sou vegetariana. Como ovos de galinhas do campo. Bebo leite, como queijo e manteiga. Os mais éticos, mas nunca se pode ter a certeza. Quando as empresas leiteiras nos dizem que as vacas são felizes eu penso sempre: serão mesmo? Onde dormem, o que comem, como são mantidas e tratadas? O que acontece aos filhos que têm? Como terminam o seu processo produtivo? Para onde vão quando já não servem para dar leite?

Tem alguém, cuja opinião sobre os seus livros, seja mais importante do que qualquer outra?

Eu e o meu editor, o nosso diálogo, a sua sensibilidade e a minha, o nosso confronto de mundos, de linguagem, de pensamento, é a mais importante opinião sobre o que escrevo. Mais ninguém.

O que é que procurou na experiência de escrever num blogue, e por que motivo mantém o seu ainda ativo?

Mantenho-o ativo porque as pessoas continuam a lê-lo e a falar-me dele. Quando comecei a escrever na blogosfera tinha passado oito anos sem publicar nada, sempre a trabalhar que nem uma louca como professora e a escrever os meus cadernos. A blogosfera ofereceu-me espaço público de leitura. E foi muito importante. Voltei a ter os meus leitores.

Em que medida será o problema da solidão uma consequência do desenvolvimento económico das sociedades?

A solidão não é assunto só desta época. Os seniores foram sempre relegados para uma enorme solidão, no passado e hoje. Eu não acredito que as pessoas nos lares não se sintam sós, profundamente sós. Se o lar for bom têm as suas necessidades de alimentação, higiene e cuidados de saúde assegurados, o que é um passo em frente, mas não chega. E a ida dos mais velhos para lares tem a ver com o desenvolvimento económico. Os descendentes trabalham e não têm tempo para cuidar deles. Essa é uma solidão.

A outra tem a ver com o excesso de trabalho, com a feroz competição existente nos empregos, a frieza entre vizinhos que não se falam nem conhecem. As pessoas passaram a temer-se. Sentem-se ameaçadas pelo outro e há uma potencial agressividade no ar, é verdade. Estão todos sozinhos porque tem medo dos colegas, dos vizinhos, dos outros ocupantes do café. É uma fobia que o capitalismo construiu. Pessoas infelizes compensam-se com mais compras: mais roupa, mais sapatos, mais gadgets.

O que diria à escritora Annie Ernaux caso a felicitasse presencialmente pela atribuição do Nobel?

Uma única palavra: irmã. Repeti-la-ia várias vezes. Querida irmã, querida irmã. Mas mais importante do que as palavras seria o abraço que gostaria de lhe dar. Um abraço que contivesse todo o amor e calor do mundo.

Acredita que estamos sempre a tempo de nos reconciliarmos com a vida?

Oh, sim, sempre. Acredito muito nisso, todos os dias, com muita fé e certeza. Estou sempre a fazê-lo. Mas há feridas impossíveis de curar. Que ficarão até à nossa morte e com a qual temos de aprender a viver como se vive sem um braço.

Os seus alunos alguma vez reagiram à sua notoriedade enquanto escritora?

Não sei. Eu tinha sempre de lhes falar nas aulas sobre o Caderno, porque eles descobriam que eu escrevia e eu sentia que devia explicar o uso da linguagem vernacular. Cheguei a ter problemas com encarregados de educação por esse motivo e tinha de me proteger. Mas no resto do tempo eu era apenas a professora. A notoriedade não me interessa, devo dizer. Notoriedade é uma palavra que designa aquilo ou aqueles que se fazem notar, que têm fama. Não vivo para isso. Quero ter valor como consequência da qualidade que me imponho. Quero que esse valor me seja reconhecido, que o meu trabalho seja respeitado, porque eu o respeito. Mas isso nada tem a ver com notoriedade.

Preocupa-se com a imagem que os leitores fazem de si pelo que escreve, ou usa de total liberdade?

Total liberdade, total liberdade. Aquilo que pensam de mim pertence aos que o pensam. Bem ou mal. Eu tenho a minha opinião íntima, a minha autoimagem, o meu instinto e intuição.