Tozé Brito

"Tenho uma teoria que vou defender até morrer: todas as canções são canções de amor"

Tozé Brito

Lenda viva da música portuguesa, Tozé Brito é autor de êxitos que todos conhecemos, e responsável pelo sucesso de artistas de várias gerações. O ano passado, por ocasião do seu 70.º aniversário, grandes nomes do panorama musical atual juntaram-se para o homenagear no disco Tozé Brito (de) novo. A 13 deste mês, a Altice Arena recebe Ana Bacalhau, António Zambujo, B Fachada, Benjamim, Catarina Salinas, Joana Espadinha, Miguel Guedes, Mitó, Samuel Úria, Selma Uamusse, Rita Redshoes, Tiago Bettencourt, Tomás Wallenstein e Helena Coelho, das Doce, num espetáculo que celebra a carreira de um dos maiores compositores da música popular portuguesa.

A sua vida é indissociável da música. Lembra-se de alguma vez ter procurado viver de outra coisa?

Não. Comecei a tocar piano aos oito anos, mas desisti porque era muito maçador. Nos primeiros anos de aprendizagem praticamente não se toca, é só aprender solfejo e fazer escalas. Passei para a viola aos 10 e percebi logo que era isso que queria fazer.

Mas havia algum incentivo familiar, ou foi algo totalmente natural?

Em minha casa ouvia-se muita música. Comecei a aprender piano porque o meu pai achava ser importante na minha formação. Quando passei para a viola percebi que havia amigos meus com 10, 11 anos que também tocavam e que seria giro ter um grupo – algo que veio a acontecer quando eu tinha 14. Nessa altura já eu ouvia Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan…

Então tinha o apoio da sua família?

Lembro-me de termos conversas em que o meu pai dizia que isso era tudo muito bonito, mas que os estudos eram o mais importante. Ele fazia questão que eu tirasse um curso superior. Mais tarde, quando estive em Inglaterra, acabei por estudar Psicologia porque não sabia qual seria o meu futuro e o mercado em Inglaterra é muito mais complicado do que em Portugal. Lembro-me de passar no metropolitano e de ver pessoas a tocar que, se fosse em Portugal, seriam superestrelas. Tive logo a perceção de que ser músico em Inglaterra seria muito difícil. O acordo que tínhamos era esse: podia dedicar-me à música, mas os estudos estavam em primeiro lugar.

Cantor, compositor, produtor, editor, descobridor de talentos… afinal como é que se define?

Como músico. Comecei como músico (viola, viola baixo, contrabaixo), mas depois a minha grande paixão começou a ser compor. À medida que ia ouvindo canções e que ia crescendo, ia percebendo melhor o que estava a ouvir. A princípio ouvia e tentava copiar, nem prestava muita atenção às palavras, não tinha maturidade para isso. Quando comecei a tocar em grupos percebi que o que era interessante era a parte criativa, de escrever música.

É autor de muitos êxitos de sucesso dos mais variados artistas…

70% a 80% das músicas que escrevi foram para outras pessoas. Dá-me sempre imenso prazer entrar na pele dos outros, tentar percebê-los enquanto cantores e intérpretes, mas também seres humanos. Nos anos 70, quando o Carlos do Carmo me começou a pedir canções, eu já sabia que tinha de escrever uma coisa próxima do Fado. Ele era realmente um intérprete fabuloso, que podia cantar Frank Sinatra tão bem quanto cantava Alfredo Marceneiro. Escrever para o Carlos do Carmo implica entrar na pele dele, no mundo dele. Escrever para as Doce, por exemplo, era completamente diferente, mas era precisamente isso que me apaixonava. Conhecer as pessoas, perceber para onde queriam ir. Quando vinham ter comigo acontecia uma coisa curiosa: geralmente, era porque queriam dar um novo rumo à carreira.

Pediam-lhe que escrevesse algo específico?

Às vezes eram encomendas completamente abertas, perguntavam-me se eu tinha alguma coisa na gaveta, mas eu nunca tinha, porque escrevo sempre de propósito para alguém. Por vezes, sobrava uma ou outra. Aconteceu-me com a Ana Moura, há pouco tempo, ela pedir-me uma canção, eu escrever três e ela usar uma. As outras duas que sobraram foram para a gaveta. Aí sim, ficam na gaveta coisas que eu escrevi para uma pessoa e que acabam por ir parar a outra. Mas não gosto de escrever sem saber para quem é. Não consigo escrever uma canção e ficar à espera que alguém a queira usar. Havia pessoas que eu não conhecia e que me telefonavam a dizer que gostavam de cantar uma canção minha.

Recorda-se de alguma encomenda mais inusitada?

Tive várias, algumas muito conhecidas. Aconteceu com o Vítor Espadinha, no final dos anos 70. Ele era ator, nunca tinha cantado. Quis ir à Visita da Cornélia [concurso da RTP1 emitido em 1977] e uma das provas consistia em cantar. Escrevi-lhe uma canção que se chamava Palhaço até ao Fim, em que ele estava em frente a um espelho e se ia maquilhando enquanto cantava. Era uma canção muito triste que falava de quem estava naquela profissão por fatalidade e não por prazer. Ele não cantava, mas foi aprendendo. Entretanto, ficou desempregado porque foi afastado do teatro por razões políticas e pediu-me ajuda. Ele tinha uma voz excecional, era um diseur fantástico, mas precisava de treino. A influência para o Recordar é Viver foi o Joe Dassin, e a fórmula foi essa: escrever uma letra onde ele tinha, sobretudo, de falar e que tinha um refrão pequeno, com o apoio de um coro feminino. Esta canção nasceu da necessidade do Vítor cantar porque estava desempregado e vendeu meio milhão de cópias. Outra situação com piada foi uma encomenda da Adelaide Ferreira, para quem escrevi Papel Principal. Ela tinha-se zangado com o namorado da altura e pediu-me uma canção de raiva, de um amor que acabou. Disse-me que, musicalmente, queria algo que soasse a uma balada dos Scorpions. Ela adorou a canção, entrou no primeiro disco dela e ninguém ligou nada. 15 anos depois, queriam usar a canção numa novela, mas disse-lhe que não fazia sentido usar a versão de 1983, porque estava datada. Decidimos convidar a Dulce Pontes para fazer um dueto e foi essa versão que acabou por entrar na novela. Foi aí que a canção ganhou um novo balanço e caiu em tudo o que era karaoke deste país [risos].

“Os artistas entregaram-se completamente ao trabalho, senti que foi um prazer terem feito este disco, o que para mim foi uma grande alegria”

Escreveu mais de 500 canções. Consegue eleger uma que seja mais especial?

Não. Cada uma tem as suas especificidades e a sua forma de escrita. O que eu escrevi para o Quarteto 1111 nos anos 70 não tem nada a ver com o que escrevi para as Doce nos anos 80, ou para a Ana Moura, recentemente.

O próprio processo de escrita mudou…

Tenho uma teoria que vou defender até morrer: todas as canções são canções de amor. Seja amor romântico, amor pela paz, pela liberdade, pela preservação do planeta, pelas causas sociais… mesmo quando se canta contra uma coisa, está-se a cantar a favor de outra. Se cantas contra a pobreza, estás a afirmar que queres que as pessoas sejam felizes e que não sejam pobres. Tudo é amor de alguma forma. Podemos estar a cantar o desamor, mas ao mesmo tempo estamos a cantar o amor. Isto foi sempre o que norteou as minhas canções e isso percebe-se. O tempo só as marca porque a realidade que as rodeia é outra, seja em termos políticos ou sociais. As canções têm um tempo e percebe-se em que tempo foram escritas. Pelo som, consigo perceber em que década é que uma canção foi escrita. Raramente me engano [risos].

O mercado português é pequeno para os novos talentos?

Uma das coisas que me faz confusão neste mundo da música – e que se estende também a outras áreas – é a concorrência desenfreada e sem qualquer sentido, porque há espaço para toda a gente. As coisas começam a ser perigosas quando as pessoas se começam a copiar umas às outras. A vitória do Salvador e da Luísa Sobral no Festival da Canção, e depois na Eurovisão, foi um marco na história da música portuguesa. A Luísa escreveu uma canção brutal, lindíssima, que o Salvador interpretou com grande doçura e envolvência. Depois disso, toda a gente quis cantar como o Salvador Sobral mas, quando se começa a imitar, estraga-se tudo e poucos conseguem ter sucesso. Gosto de pessoas criativas e inovadoras. Para mim, uma coisa fundamental é reconhecer imediatamente a pessoa que está a cantar. Essa é a maior característica que um artista pode ter. Eu, o Jorge Palma, o Sérgio Godinho, o José Cid ou o Rui Veloso, por exemplo, começámos todos por ser músicos e só depois é que passámos a escrever canções e começámos a cantar. Qualquer um destes nomes é único. Quando os ouvimos sabemos exatamente quem está a cantar. Enquanto fui presidente de duas companhias discográficas sempre procurei artistas que fossem únicos, diferentes, que não fossem cópias de outros. A Carolina Deslandes tem um talento incrível, mas está a marcar uma geração de mulheres que cantam todas da mesma maneira. Temos mulheres a cantar lindamente, com vozes incríveis, mas que copiam a Carolina na forma de cantar e de escrever canções.

O ano passado, vários artistas juntaram-se para o homenagear em disco, partindo de uma ideia de sua mulher, Inês Meneses. Foi uma surpresa inesperada?

Foi uma surpresa, uma prenda dos meus 70 anos. Fui envolvido no processo já quando o comboio ia em andamento. A Inês teve essa ideia e falou com o Benjamim e o João Correia [produtores do disco]. A partir daí, fizeram convites a alguns artistas e as canções foram distribuídas. A Inês fez uma pré-seleção de 50 músicas e depois as pessoas escolheram a canção de que mais gostavam. Algumas das canções que acabaram por ir para o disco nem sequer estavam na lista. Foi o caso da Eva, cantada pela Catarina Salinas, e do Depois de ti, interpretada pelo Tomás Wallenstein, o que foi uma surpresa absoluta para mim e para a Inês. Houve escolhas inesperadas e outras mais óbvias, como a do Camané com a canção Retalhos, porque ele tem um respeito enorme pelo Carlos [do Carmo]. Mas, é o conjunto tão diverso que faz a riqueza deste disco.

Houve alguma das versões que o tenha surpreendido mais?

É uma pergunta ingrata, porque todas as versões estão fabulosas, mas a Catarina Salinas fez uma versão incrível do Eva – uma canção que ninguém conhece e que está perdida num álbum meu [Adeus até ao meu regresso]. O António Zambujo fez uma versão inovadora do Não hesitava um segundo, uma balada muito bonita que escrevi para o primeiro álbum da Ana Moura e que ela transformou num fado. A Olá, então como vais? do Benjamim e do B Fachada é divertidíssima. Gravei-a com o Paulo de Carvalho em 1979 e demos-lhe uma carga muito mais dramática, com um arranjo orquestral e pomposo. O Camané fez uma versão do Retalhos, que o Carlos do Carmo tinha cantado a capella, que é genial. Mas é injusto estar a falar de umas canções e não de outras porque são todas surpreendentes. Isso foi a parte boa de ouvir este disco, porque foram todos de uma generosidade incrível. Entregaram-se completamente ao trabalho e senti que foi um prazer terem feito este disco, o que para mim é uma grande alegria.

No dia 13 de outubro, o disco sobe ao palco da Altice Arena…

Vamos ter muitas surpresas, outras versões que não estão no disco. Vamos cantar, por exemplo, um tema que escrevi com o Jorge Palma para a série da RTP, Zé Gato. O Benjamim lembrou-se que poderíamos apresentar uma versão neste concerto. Vamos também cantar algumas canções das Doce, até porque a Helena Coelho também estará connosco em palco.

Este disco sabe a pouco, ficaram muitas canções marcantes de fora. Há planos para um segundo?

Nunca se sabe, mas os meus planos imediatos passam por outras coisas agora. Estou a trabalhar num livro de ficção, um sonho que tenho andado a adiar porque requer tempo e disciplina. Houve momentos da minha vida em que pensei que era a altura certa, mas depois acontece alguma coisa e… lá voltam as canções [risos]. Atualmente estou na SPA [Sociedade Portuguesa de Autores], onde adoro estar, tenho imenso respeito pela causa, é algo que também me diz respeito a mim. Mas nunca tive nenhuma altura da minha vida em que tivesse um ou dois anos livres para me dedicar só à escrita. Já tenho a história delineada, ainda não estou numa fase muito adiantada, mas o processo está a andar. Estar a escrever canções e dedicar-me ao livro é uma tarefa difícil para mim. Quando me concentro numa coisa não gosto de me dispersar, por isso agora não estou a escrever canções. Espero ter o livro acabado até ao fim do ano que vem, mas quando terminar este projeto tenho outras ideias no bolso, até porque parar é morrer. Não tenho, no meu horizonte, a ideia de parar de trabalhar.