O último lugar seguro é a casa?

"Jesus, o Filho" estreia no Teatro da Trindade

O último lugar seguro é a casa?

Um transtorno de personalidade diagnosticado inicialmente no Japão, o hikikimori, foi ponto de partida para o último texto que Elmano Sancho escreveu para a sua trilogia dedicada à família. Jesus, o Filho sobe agora ao palco da Sala Estúdio do Teatro da Trindade, com interpretações de Vicente Wallenstein, Joana Bárcia e do próprio autor e encenador. O ator Ruy de Carvalho tem uma pequena participação em off.

“Não que isso tenha uma particular relevância”, como explica Elmano Sancho, mas Jesus, o Filho, “foi escrito em contexto pandémico, quando fomos forçados a ficar confinados, a nos isolar”. Com as devidas distâncias, o isolamento levou-o a usar os hikikimori (termo cunhado no Japão para nomear “indivíduos que padecem de um transtorno de isolamento doméstico motivado pela velocidade e pela pressão do sucesso exercida na sociedade contemporânea”) como ponto de partida para a “história” daquela que era a última peça da trilogia, que o autor intitulou A Sagrada Família, e que inclui Maria, a Mãe, estreada há um ano, e José, o Pai, com estreia prevista para 2023.

Nesta peça é em casa, na solidão do quarto, sob o olhar impotente dos pais, que o jovem Jesus encontra o refúgio onde julga sentir-se seguro. O seu confinamento voluntário corresponde a viver “numa espécie de mundo paralelo, aparentemente menos hostil que aquele que lhe é oferecido pela sociedade”. O isolamento vai, contudo, provocar distúrbios de personalidade e dissociá-lo da sua própria identidade. Perante a incapacidade da família para conter a espiral destrutiva do filho, parecem haver poucas hipóteses para evitar um desfecho trágico.

Num ambiente fantasmático – “não serão as personagens também elas fantasmas”, indaga o autor – a peça procura, sobretudo, “abordar a incomunicabilidade no seio da família, a descrença, a solidão, o desgaste e a reclusão”. Embora estejamos perante um objeto artístico que, como “um espelho”, reflete o desânimo destes tempos obnubilados, Elmano Sancho procura que Jesus, o Filho “inquiete o espectador, e que este o receba como entender, sem que do espetáculo se espere um retrato do mundo.”

“Entre o sagrado e o profano” que o autor assume caracterizar a maior parte da sua escrita dramatúrgica, Jesus, o Filho, tal como as outras duas peças desta trilogia dedicada à família, “existe individualmente, embora estejam presentes alguns elementos de referência, nomeadamente cenográficos, destacando-se um oratório da Sagrada Família.”

Como explica, “o oratório, que ainda hoje circula pelas casas em algumas aldeias do país, é representativo da perfeição personificada pela família de Nazaré”, que assim confronta os comuns mortais “com as imperfeições do seu núcleo familiar, de modo a que as consigam superar”.

Na trilogia, e muito especificamente nesta peça, essa idealização colide “com as falhas e imperfeições que existem em cada família”. Na da peça, o sofrimento de Jesus surge profundamente ligado à relação que este estabelece com os pais, como se a segurança que procurou através do isolamento em casa acabasse corrompida.

Espetáculo de sombras e fantasmas, pontuado por apontamentos de humor negro que têm tanto de desconcertante como de inquietante, Jesus, o Filho é também um espetáculo de atores. Para além de Vicente Wallenstein, que compõe um Jesus nos limites, Elmano Sancho reencontra Joana Bárcia, com quem trabalhou por diversas vezes nos Artistas Unidos, e conta com a participação “muito especial” de Ruy de Carvalho que, a pedido do encenador, acedeu gravar uma das vozes que soa ao protagonista.

Em cena de quarta a domingo, sempre às 19h, no Teatro da Trindade INATEL, até 30 de outubro, Jesus, o Filho parte posteriormente em digressão nacional, estando previstas récitas em Famalicão, Bragança, Castelo Branco, Ponte de Lima, Funchal, Guarda e Faro.