O meu 25 de Abril

O testemunho de cinco personalidades da cultura portuguesa

O meu 25 de Abril

No ano em que a democracia em Portugal atingiu a longevidade do Estado Novo, 48 anos, a Agenda Cultural de Lisboa evoca a data convidando cinco personalidades da cultura portuguesa, oriundas de diferentes áreas de expressão. Fernando Tordo, António-Pedro Vasconcelos, Raquel Henriques da Silva, Jorge Martins e Elisa Worm contam como foi o “seu” 25 de Abril.

A Revolução dos Cravos é um daqueles momentos definidores da nossa história, daqueles que fica gravado na memória de quem o viveu, independentemente da simpatia ou engajamento político de cada um. Pode-se sempre começar uma conversa com “onde estavas no 25 de Abril?”, e raro será quem não saiba e não consiga falar de um antes e um depois daquele dia.

Elisa Worm

bailarina e coreógrafa

Elisa Worm estava em tournée com o Ballet Gulbenkian quando se deu a revolução em Lisboa. Nessa noite fizeram um espetáculo em Viana do Castelo, mas foi ainda na véspera, no Porto, onde a companhia estava alojada, que recebeu indicações de um amigo de que algo estava para se passar.

Tiveram a confirmação enquanto tomavam café perto do Rivoli. Alguém apareceu a dar conta das novidades, afirmando que “o Spínola era o instigador”. Ficou aterrorizada: “Desatei aos gritos, vamos para a extrema-direita, para o fascismo!”. Explica que tinha uma péssima opinião do general desde a infância e não por motivos políticos. Nas férias de verão em Sintra, foi vizinha de Spínola e lembra-se dele, sempre fardado, a castigar os sobrinhos com o pingalim de que nunca se separava, o que a impressionou enormemente.

No Porto, não sentiram a animação que se espalhava em Lisboa. O seu momento especial e o que recorda com mais emoção foi descer a Alameda nas manifestações de maio, com o seu filho ao lado. Diz, com alguma ironia, que também foi aí que acabou o 25 de Abril: “Depois, começou tudo a andar para trás.”

Desde criança que se identificava com os valores de esquerda e com o progresso. Muitos dos seus colegas do Ballet Gulbenkian eram apolíticos; ou mesmo reacionários, e olhavam-na de soslaio quando se falava de política ou de direitos humanos. Lembra-se, em pequena, quando vivia com os pais na Baixa, de ver as carroças de madrugada a dirigirem-se para o mercado, seguidas por bandos de crianças à espera que caísse algo para o chão que pudessem comer: “Aterrorizou-me muito a fome que havia em Lisboa, a pobreza. As crianças andavam praticamente nuas, descalças, não tinham cuecas mas apenas uns trapos que encontravam. Eram proibidas de entrar na igreja.”

Em 1965, deixou o recém-criado Grupo Gulbenkian de Bailado para fugir para a Alemanha de emergência e “com a roupa que tínhamos no corpo”, por causa da perseguição do regime ao seu marido, o pintor Manuel D’Assumpção.

Deixou de dançar em 1976, para se dedicar a “fazer bailarinos”. Dez anos depois fez-se à estrada com o seu carro e só parou em Estarreja, onde formou a companhia que mais tarde se deslocaria para Santa Maria da Feira com o nome de Ballet Contemporâneo do Norte. Hoje, já não dá aulas “porque o corpo não deixa”, e voltou à sua amada Sintra.

Jorge Martins

pintor

A guerra colonial começou em Angola no dia em que o pintor Jorge Martins cumpriu 21 anos, a 4 de fevereiro de 1961. Este acontecimento haveria de marcar profundamente a sua vida e a futura vivência do 25 de Abril: “Estava na Escola de Belas Artes e lembro-me de pensar que a coisa ia dar para o torto. Foi um ano de decisões difíceis para um jovem da minha idade. Casei-me e, no final do ano, já estava a viver em Paris.”

Fruto dessa decisão, passou os 13 anos seguintes sem poder regressar a Portugal, e estava plenamente integrado no meio parisiense quando se deu a revolução. Para ele, foi uma noite inesquecível: “Estava uma noite linda e tépida em Paris e passei-a com duas amigas, num descapotável, a percorrer as boîtes de Saint Germain e Montparnasse. O dono do descapotável, que era um carro lindo, insistia em trocar um quadro meu pelo carro, mas acabei por conseguir convencê-lo de que não estava interessado.”

Já no seu ateliê, pelas oito da manhã, um amigo telefona-lhe anunciando que algo se passava em Portugal. Nesse dia, toda a comunidade portuguesa se perguntava o que seria, pois não havia ainda informação fidedigna. No dia 28, resolve apanhar um avião para Lisboa: “Foi uma viagem extraordinária porque o avião, que normalmente tinha meia dúzia de gatos-pingados, estava completamente cheio”. Ficaram parados na pista de Orly durante três horas, à espera da autorização para aterrar em Lisboa: “Com o whisky do freeshop, quando finalmente partimos, já estava tudo com os copos, no avião”. Lembra-se também que, atrás de si, estava sentado o realizador brasileiro Glauber Rocha. Ficou em Lisboa o tempo suficiente para assistir ao Primeiro de Maio mas logo voltou para Paris, graças à incerteza sobre a evolução dos acontecimentos e ao facto do mercado de arte ter-se evaporado de um dia para o outro.

Tendo finalmente recuperado um passaporte válido internacionalmente, aproveitou para viajar e, pouco tempo depois, decidiu mudar-se para Nova Iorque, uma cidade que o apaixonou e onde viveu dois anos. Voltaria a Paris mas mudou-se definitivamente para Lisboa em 1992, numa altura em que lhe pareceu que a cidade estava com uma energia interessante. Antes da pandemia fez duas grandes exposições em Espanha e editou um livro com esboços e textos da sua autoria, que ainda aguarda lançamento.

O confinamento teve um lado positivo: dedicou-se mais ao trabalho e tem hoje “uma quantidade apreciável de obra inédita que está pronta para uma futura exposição, assim que regresse o ritmo normal das instituições e esta nova guerra o permita”.

Raquel Henriques da Silva

historiadora e investigadora

A historiadora de arte, investigadora e professora Raquel Henriques da Silva abriu a conversa com um aviso: “Não é especialmente heróico, o meu 25 de Abril”. A sua história está intimamente ligada à guerra colonial, à qual ainda tentou fugir, sugerindo ao seu namorado, futuro marido e pai dos filhos, Luís, que fossem viver para a Suécia, um país que tinha fama de acolher bem os estrangeiros. À beira de ser chamado para a tropa, o namorado recusou, por ser muito ligado à família e porque a viagem seria apenas de ida, sem saber quando poderiam voltar.

Apesar de salientar não ter, à época, uma consciência política muito forte, a guerra era, no seu entendimento, “uma coisa estúpida, completamente idiota. Não era preciso ter grandes convicções políticas para se ser contra a guerra, sobretudo aos 19 anos.”

O futuro marido foi colocado em Angola para cumprir a recruta e Raquel Henriques da Silva, por imposição do pai, organizou o casamento por procuração para poder juntar-se a ele. Houve, no entanto, um percalço. Quando realizou que na cerimónia encenada seria o pai a fazer o papel de noivo, recusou-se. Foi o seu padrinho, “um homem santo”, que resolveu o problema conseguindo marcar o casamento para Luanda, situação que, quer o pai, quer as autoridades, aceitaram.

Desse tempo de partida para África, relembra: “Não só fui para a guerra, como casei. Eram duas coisas que nunca tinha pensado fazer. O amor falou mais alto, éramos miúdos. Costumo dizer que fui para a guerra por interposta pessoa”. Quando se dá o 25 de Abril, estava no Uíge, uma das zonas mais tensas de Angola, para onde o marido fora transferido. É ele que lhe telefona do quartel a avisar que algo se passara em Lisboa e que tinha de ficar em prevenção, no quartel. “Fomos sabendo notícias aos poucos e não havia grande alegria, o colega mais político do Luís dizia que era um golpe de direita, do Spínola, e discutíamos noites inteiras sobre o que se teria passado.”

Lembra-se, com pena, de amigos e conhecidos que vieram a sofrer muito com o desenrolar dos acontecimentos: “uma descolonização tardia e uma situação de revolução em Portugal, não podia correr bem”.

António-Pedro Vasconcelos

cineasta

Em abril de 1974, o cineasta e escritor António-Pedro Vasconcelos vivia num apartamento na Lapa, o bairro onde ainda vive, o qual partilhava com Vasco Pulido Valente. Lembra-se de ter sido despertado, de madrugada, pela namorada, que lhe deu a notícia e que o alertou para ligar o rádio. Desde a conclusão do filme Perdido Por Cem, estreado em 1973, o realizador foi convidado para chefe de redação da revista Cinéfilo, do jornal O Século. Foi para lá que se dirigiu imediatamente e no caminho, na Rua do Quelhas, confirmou a notícia ao ver os soldados que ocupavam a Emissora Nacional.

Na sede soube que Salgueiro Maia já se encontrava no Largo do Carmo: “Estavam sempre a chegar notícias, nesse dia fizeram-se cinco edições do jornal”. Lembra-se dos fotógrafos Eduardo Gageiro e Alfredo Cunha, ambos colaboradores do Cinéfilo, num corrupio de idas e vindas para entregar os rolos que iam tirando, e de ele próprio passar o dia entre a redação e o Largo do Carmo, até à rendição de Marcelo Caetano.

Recorda-se de um episódio que o impressionou, o funcionário responsável pela submissão dos textos à censura manteve o seu propósito, como se nada se tivesse passado. Apesar das evidências, insistiu mas quando compreendeu, exclamou: “E agora, o que vou fazer?” Para o cineasta, foi a primeira e única vez que sentiu alguma compaixão pelas vítimas do momento histórico.

Com a sua proverbial energia e apesar das limitações impostas pela pandemia, António-Pedro Vasconcelos encontra-se a preparar, há dois anos, um documentário sobre os protagonistas do 25 de Abril, a ser emitido em seis ou sete episódios na RTP, por ocasião dos 50 anos da revolução. Diz que descobriu “um mundo absolutamente fascinante. É fundamental perceber como uma série de capitães preparam um golpe e em menos de 24 horas derrubam uma ditadura com 48 anos, sem disparar um tiro”. Considera que é crucial mostrar às gerações mais jovens que a liberdade não é um bem adquirido e que muitos se bateram por ela, com o risco da própria vida.

Entretanto, concluiu o seu mais recente projeto cinematográfico, intitulado Km 224, com estreia marcada para o próximo 21 de abril.

Fernando Tordo

músico

Na noite de 24 de abril de 1974, Fernando Tordo fazia parte de um conjunto de comensais reunidos no restaurante do Chico Carreira, no Parque Mayer, para celebrar o aniversário da atriz Ivone Silva. O grupo consistia essencialmente na equipa que preparava a nova produção da revista destinada ao Teatro ABC, que se viria a chamar, já depois da revolução, Uma no Cravo, Outra na Ditadura.

O espetáculo contava com textos da parceria Rogério Bracinha e César de Oliveira, aos quais se juntou Ary dos Santos, e música de Pedro Osório, Thilo Krasmann e do próprio Fernando Tordo. Os textos eram provocadores, como era apanágio da revista, mas neste caso ainda mais, já que os tempos prenunciavam mudança, como refere o cantor, “as entrelinhas dos textos já eram bem gordas. Aliás, a revista perdeu a graça depois da queda do regime, por mais que tentem. Nunca mais houve aquela energia das guerras com a censura.”

No jantar, onde estavam, entre outros, Nicolau Breyner, Ary dos Santos, José de Castro e João Lagarto, já a noite ia longa quando Rogério Bracinha resolveu sair da nuvem de fumo de tabaco que preenchia o espaço para dar uma volta no exterior. Pouco depois voltou a entrar e segundo Tordo, “ele, que era um homem que falava pouco e fumava muito, apareceu com um ar estranho e anunciou que estavam a passar tanques na Avenida da Liberdade!”

Já era madrugada e a festa ainda seguiu, mas o músico e compositor, que nessa altura vivia na Rua da Saudade, no mesmo prédio de Ary dos Santos, lembra-se de levar a colega atriz Maria Ema a Campo de Ourique e ter de dar uma volta enorme para conseguir chegar a casa, perto da Sé, graças à complicação que já se tinha gerado.

Outro momento que recorda com particular divertimento foi ter saído de casa no seu Volkswagen cor de laranja e descer a rua, com o corpo fora do carro no teto de abrir, e conduzir com os pés em plena celebração: “E isto foi o meu 25 de Abril!”.

Recentemente, Fernando Tordo sofreu uma hospitalização forçada pela COVID-19 e aproveitou o tempo para compor uma suíte, a que entendeu chamar Suíte das Mulheres de Azul, em honra das médicas e enfermeiras que o trataram. Publicou um livro de poesia e o álbum Os Fados que Eu Fiz mas, segundo o próprio, “o vício que agora tenho é a pintura”. Espera-se para breve uma exposição.