Simone de Oliveira

"Quero sair pela porta larga, deixar o perfume bonito no ar, guardar as memórias boas e apagar as más"

Simone de Oliveira

Aos 65 anos de carreira, Simone de Oliveira prepara-se para a despedida dos palcos. A Agenda Cultural de Lisboa esteve à conversa com a cantora e atriz que é um dos grandes ícones culturais no nosso país. A 29 de março, a artista apresenta-se ao vivo, pela última vez, no Coliseu dos Recreios com Sim, sou eu. O espetáculo viaja pelas suas canções mais icónicas, agora com novas roupagens da autoria do maestro Nuno Feist.

Mulher, cantora, atriz, mãe, avó. Como gere todas estas facetas?

De uma maneira muito fácil. Quando é preciso ser mãe, sou mãe; quando é preciso ser avó, sou avó; quando é preciso trabalhar, trabalho; quando é preciso descansar, descanso.

É uma mulher muito organizada…

Sim, sempre fui, mas também já levo 65 anos disto. A minha filha tem 62 e o meu filho 60. Aprendi a organizar-me desde cedo. Sou uma mulher de horários. Nunca me atraso, nunca me atrasei em situação nenhuma. Se for preciso levantar-me às 6h levanto-me, embora goste de me levantar às 11h [risos]…

É considerada um dos maiores ícones da cultura portuguesa. Atribui alguma importância ao que dizem de si?

Não, nem por isso. Continuo igual a mim própria, tal como o título do meu espetáculo: Sim, sou eu. Sempre fui eu a vida toda, não mudei nada. Nunca fui uma mulher rica, sou uma mulher remediada, umas vezes mais para cima, outras vezes mais para baixo… fui eu que criei os meus filhos, formados e maravilhosos. A casa é minha, comprei-a com o meu dinheiro e com o meu trabalho já depois do meu marido morrer. Tive vários automóveis que sempre fui eu a pagar, agora não tenho porque deixei de conduzir…

Mas sabe-lhe bem o reconhecimento do público…

Sabe claro. Eu gosto de ser independente. Até hoje nunca precisei de ajudas externas… quando precisava de alguma ajuda tinha os meus pais. Era muito engraçado, às vezes dizia “pai, empresta-me 100 escudos?” e ele logo me respondia “quando é que pagas?”. Acho que nasci livre e lutei muito pela minha liberdade.

O que é, para si, ser livre?

Ser livre é não ocupar o espaço do outro, pensar pela minha cabeça e achar que estou a pensar de forma certa. Não estou a dizer que pensei sempre certo, não é isso. Procuro viver de acordo com aquilo que sinto, com o que sou capaz de fazer e com o que a vida me ensinou. A vida e as lutas que tive de travar é que me ensinaram tudo. As lágrimas que chorei, as gargalhadas que dei, os amigos que tenho (que são para aí cinco e que chegam, são ótimos e maravilhosos). E cá estou na minha casa, tranquilamente.

Sempre foi uma mulher muito à frente do seu tempo. Acha que nasceu na altura errada?

Sim, acho que devia ter nascido uns anos mais à frente… em 1957 era muito complicado ser mulher. Cantar era complicado, fumar era complicado, sair à noite era complicado, até usar calças era complicado! Da primeira vez que usei jeans e botas, perguntaram-me se me tinha esquecido do cavalo [risos]! Nunca mais me esqueci disto porque tem muita graça. Não sou nada mulher de modas, não me diz nada. Nunca fui a uma passagem de modelos e tive os convites todos. Nunca fui, não tenho paciência. Não vou a eventos de high society. Vou aos sítios que me interessam e onde me apetece, onde as pessoas que os frequentam são pessoas que eu entendo, e algumas pessoas da high society às vezes não entendo. Fazem mais asneiras do que eu, mas é tudo por trás da cortina.

65 anos de carreira é um marco indiscutível. Olhando para trás, quais os momentos da sua carreira de que mais se orgulha?

Há vários. Os Festivais da Canção, quer com Sol de inverno, quer com a Desfolhada. A minha ida ao Maracanã, a convite da Amália Rodrigues, a atuação no Olympia, em Paris, num espetáculo dela, onde também participaram outros colegas meus. Foram oportunidades muito bonitas que tive. Devo muito àquela senhora. Não vou a casa dela nem subo aquelas escadas. Jamais iria lá acima e não concordo com os espetáculos que se fazem em casa dela, nunca concordei. Amália não gostaria. Só deixava entrar em casa dela quem ela queria, às horas que ela queria. E sentarem-se naquelas poltronas… quando vejo até me arrepio. Só falava com quem queria e fazia o que queria. Tinha estatuto para isso. Fazia-o com muita elegância, era uma mulher extremamente culta. Metia as pessoas no bolso com a maior das facilidades. Tinha a paixão das flores.

E arrependimentos?

Não me arrependo de nada do que fiz. Talvez tivesse alterado algumas coisas em relação a ter prometido aos meus pais não terem esta filha tão doida [risos], mas tive uns pais que me aceitaram perfeitamente, com todas as coisas que não percebiam. Há esta frase do meu pai para a minha mãe: “a sua filha é tão diferente, tão diferente, que nem os ossos dela são iguais aos das outras pessoas”. A minha mãe era extraordinária, não precisava de lhe dizer nada porque bastava ela olhar para mim para perceber tudo.

Também é um dos grandes ícones do Festival da Canção. Tem acompanhado este novo formato?

Não vale a pena fazer comparações, porque não há como comparar. A forma como se canta hoje não tem nada a ver com a forma como se cantava há 10, 20 ou 30 anos. Gosto de ver o Festival da Canção. Gostei muito da Aurea e do FF. As outras também gostei, mas não tanto.

Como olha para a nova geração de músicos em Portugal? Algum artista que aprecie particularmente?

Há gente a cantar muito bem em Portugal. Tenho uma grande paixão pela Carminho, pelo Camané… a Carminho para mim é especial. Ouvi-la é uma coisa que me transcende.

©Vitorino Coragem “Procuro viver de acordo com aquilo que sinto, com o que sou capaz de fazer e com o que a vida me ensinou”

No dia 29 deste mês, atua no Coliseu dos Recreios para dizer adeus aos palcos. Como é que surgiu a ideia para este espetáculo?

Não fui eu que tive a ideia. Devo este espetáculo a duas pessoas. A primeira, que andou a pedir os subsídios todos durante dois anos, que é o meu querido maestro e amigo Nuno Feist. Ele foi o mentor do espetáculo, foi ele que pediu os apoios todos. Todas as outras coisas, foi a minha querida Fátima Bernardo que tratou. Ela acompanha-me há muitos anos e conhece-me melhor do que eu própria [risos]. São pessoas em quem confio absolutamente e sei que, se eu não estivesse com capacidade para cantar, mo diriam. Isso é que é ser amigo, é ter a coragem de dizer as coisas como elas são. Estão prevenidos, há muito tempo, para me dizerem isso se for preciso. Mas antes de ser preciso eu saio.

É a altura certa para sair de cena?

Ao fim de 65 anos?! Cansei de me pintar, de pensar nos trapos que vou usar… eu tenho uma saudade lavada, como costumo dizer… era incapaz de mexer na cara. Onde é que estava a minha alma, onde é que estavam as minhas lágrimas e as minhas gargalhadas?

O espetáculo viaja pelos seus temas mais icónicos. Foi difícil libertar-se das versões originais e dar-lhes uma nova sonoridade?

Aceito perfeitamente. Tem de se andar para a frente, são orquestrações novas, diferentes. Vamos evoluir.

Não é saudosista, portanto?

Não, não sou. Vivo no tempo em que estamos, para ser feliz. Tenho todas as razões para ser uma mulher feliz: a casa é minha, tenho ótimos filhos e netos, vou ser bisavó, estou sossegadinha na minha casa, gosto de fazer renda, gosto de ler, gosto imenso de ver telenovelas – não há nada a fazer, eu gosto!

E um projeto para televisão ou teatro, gostaria de fazer?

Não quero, já não tenho paciência. Fiz isso tudo: telenovelas, teatro, revista… fiz no tempo em que tinha de fazer, quando as minhas pernas andavam bem, quando tinha genica para deitar-me às 3h da manhã e levantar-me às 7h. Quero sair pela porta larga, deixar o perfume bonito no ar, guardar as memórias boas e apagar as más, que algumas são tramadas e doridas, como a morte dos meus pais e do meu marido, fases muito complicadas.

É uma leitora ávida. O que gosta de ler?

Gosto muito de ler Arturo Pérez-Reverte, Lobo Antunes, os poemas do Miguel Torga… Adoro a Alice Vieira, tem um livro de poemas espantoso. Também há um livro maravilhoso de poemas do David Mourão-Ferreira. Gosto dos textos do Ary, claro. Gosto de reler as cartas que a minha filha me escreveu quando tinha 8 ou 9 anos e também algumas coisas que o meu filho me escreveu.

A Simone é um símbolo do empoderamento feminino. Como olha para isso?

Pelos meus posicionamentos enquanto pessoa consegui, a duras penas, ir abrindo portas que eram muito difíceis de abrir. Não o fiz para ser uma pessoa importante, mas porque achava que devia ser assim. Foi difícil, mas valeu a pena. Se eu consegui que três ou quatro mulheres fossem capazes de tomar atitudes que era preciso tomar, levadas um bocadinho até pelas minhas cantigas, isso já me dá uma alegria muito grande.