Carla Bolito

"O teatro tem de ser mágico e precisamos sempre de erguer um universo para onde o público seja atraído"

Carla Bolito

A meio da década de 1990 sacudia o cinema português em Corte de Cabelo, filme de estreia de Joaquim Sapinho. Mas acabou por ser no teatro que mais se destacou ao trabalhar com nomes como João Brites, Jorge Silva Melo, Luís Miguel Cintra ou Ana Nave. No início deste século escreveu a sua primeira (e promissora) peça, Transfer. Depois do aplauso do público e da crítica ao seu olhar sobre o texto de Andreas Flourakis, Exercícios para joelhos fortes, a atriz e encenadora Carla Bolito está de volta com A Minha Cabeça, uma ficção inspirada no passado de uma família que pode muito bem ser a sua, na história pouco contada de Moçambique e num artefacto que carrega múltiplos enigmas e mistérios ainda por desvendar. O espetáculo estreia no Teatro do Bairro Alto a 12 de março.

Passaram muitos anos sobre Transfer e agora voltarmos a ter um texto original da Carla Bolito. Porquê tanto tempo?

Acho que a escrita, tal como a encenação, tem de surgir como um apelo ou, se quisermos, uma urgência, como um desconhecido que quero conhecer. E isso é como quando nos queremos apaixonar: podemos querer muito, mas nem sempre acontece.

Mas agora, voltou a acontecer…

Embora esteja a trabalhar com um jovem dramaturgista moçambicano que está em Portugal a fazer um mestrado, o Venâncio Calisto. É verdade que comecei a trabalhar sozinha neste projeto, mas depois senti a necessidade de ter uma visão de dentro, digamos assim. Afinal esta é uma peça sobre Moçambique…

E sobre a sua própria vida também.

Digamos que este é um espetáculo sobre os despojos do passado de uma família colonialista. Por acaso, é a minha. Mas, mais concretamente, o que despoleta tudo é uma cabeça de marfim, “a minha cabeça” que não é, no sentido literal, mesmo a minha cabeça. [risos]

Então, podemos saber um pouco mais sobre a “sua” cabeça… de marfim?

A cabeça a que o título se refere existe mesmo. É uma peça de marfim que veio com a minha família de Moçambique após o 25 de Abril. Recentemente, senti a necessidade de tirar esse “esqueleto do armário”. Afinal é o dente de um animal, um elefante que foi morto por causa disso mesmo. Durante anos, tive uma enorme incapacidade de lidar com o objeto, até que me apercebi que é semelhante ao espólio escondido com que muitos filhos de retornados têm de lidar. Porque, afinal, quem é que quer exibir algo que, por muito bonito que seja, provém de um crime que é a morte de um animal e que, ao mesmo tempo, parece ter estampada a marca do colonialismo?

O que a levou, agora, a tirar esse “esqueleto do armário” e com ele inspirar uma peça de teatro?

Confesso que este espetáculo não nasceu de uma necessidade de expiação. Acho que ele parte mais daquilo que é até bastante comum a todas as famílias, ou seja, o não dito, o não contado, as omissões e, muitas vezes, as mentiras. Durante muitos anos, o meu pai anunciava à família que a cabeça era minha. Lembro mesmo, sempre que ia a casa dos meus pais, de o ouvir “leva a tua cabeça” [risos]. E eu respondia em surdina: “nem pensar!” Um dia tive mesmo que assumir que a cabeça era minha e tomar posse dela. Foi quando me apercebi da existência que quantos e quantos passados de marfim escondidos podem existir, e com eles chega o tempo de exibir diversas perspetivas possíveis de se ter perante um objeto como aquele.

“Não gosto nada de monólogos. O teatro serve para estarmos com pessoas.”

Estamos, portanto, a falar de uma peça de teatro documental e biográfico?

Não. Até podemos partir de algo que é meu, mas eu tenho imensos pruridos com o teatro documental ou o autobiográfico. Não me apetecia nada começar com “eu sou a Carla Bolito, nasci em Moçambique em…” Digamos que não é de todo a minha praia, embora goste de ver e destaco o bom trabalho de muitos colegas no género. Para mim, o teatro tem de ser mágico, e precisamos sempre de erguer um universo para onde o público seja atraído por algo que é enigmático.

Mas a Carla está lá, a sua família também…

Mas eu prefiro usar o teatro para testemunhar a minha história. Ou seja, esta é a história que eu quero contar.

Estando, então no campo do teatro, que história é essa?

Os elementos biográficos estão lá, mas eu descosi-os e voltei a coser com os elementos da história de Moçambique – a história daquele país antes da chegada dos portugueses. A peça atravessa várias épocas, porém, evita fazer qualquer tipo de reconstituição histórica.

E como é que chegou a essa história tão pouco contada de Moçambique?

Aconteceu quando tirei, precisamente, o “dente do armário” e fui procurar inúmeros estudos antropológicos que são determinantes para conhecer a história dos povos moçambicanos. Um livro extremamente importante nessa pesquisa foi Kupilikula de Harry West [publicado em português pelo ICS – Instituto de Ciências Sociais] acerca da feitiçaria, no caso, aquela que era feita para desfazer feitiços. E o que me fascinou, até como matéria dramatúrgica, foi esse tema ser essencial para analisar e compreender a realidade histórica. Outra surpresa que tive ao longo desta pesquisa foi descobrir nas estantes do meu pai, atrás das estatuetas de pau-preto, tanta coisa sobre a história daquele pais onde ele chegou com 17 anos e onde, mesmo estando distante, nunca deixou de ter a cabeça. Todas estas coisas estão na peça.

Sei que tem a decorrer um processo de certificação, a que a legislação obriga para a criação do registo das peças de marfim com mais de 40 anos. O que se sabe da cabeça de marfim?

Sei que o estilo de estatuaria aparenta ser das tribos macondes do nordeste de Moçambique, mas geram-se dúvidas devido à coroa com dois andares que ostenta. Ainda não consegui descobrir se é um objeto artístico, o que pode até implicar uma amplitude histórica ainda mais relevante, ou se é uma peça de artesanato, o que a torna mais comum.

Em palco, vai ter consigo dois atores. Não lhe apetecia nada um monólogo?

Não gosto nada de monólogos. O teatro serve para estarmos com pessoas. Só estou sozinha quando não há dinheiro para mais. Aqui vou ter a Kimberley Ribeiro, perfeita para a linguagem coreográfica que também pretendia dar ao espetáculo, e o Daniel Martinho, porque queria ter um ator negro a interpretar um personagem branco para, simbolicamente, dar uma bofetada nas convenções.