Joana Espadinha

“Uma das coisas mais incríveis da música é o poder de se tornar do ouvinte e deixar de ser de quem a compôs”

Joana Espadinha

Ninguém nos vai tirar o sol (2021) é o mais recente trabalho de Joana Espadinha. Sucessor de Avesso (2014) e O material tem sempre razão (2018), o disco revela uma compositora mais confiante, e reflete o impacto da maternidade mas também as circunstâncias atípicas que vivemos. Uma lufada de ar fresco que é também uma boa sessão de terapia. A 22 de fevereiro, a cantora atua no Teatro Maria Matos.

Depois de Avesso (2014) e O material tem sempre razão (2018) este álbum revela uma mulher e uma artista mais segura de si e da sua sonoridade. O que mudou?

O facto de ser o terceiro disco permitiu-me aprender com os erros dos primeiros dois. Para além disso, aprendi muito sobre a parte de produção com o Benjamim, o que me tornou muito mais autónoma. Desta vez, entreguei-lhe as maquetes mais finalizadas e com os arranjos mais trabalhados. Até fiquei surpreendida quando ele me disse que íamos começar logo a trabalhar com a banda. Senti-me mais capaz, tinha mais ferramentas para me envolver no processo todo. Por outro lado, a nível pessoal, acho que o que estamos a viver não deixa ninguém indiferente. Transformou a forma como nos relacionamos e olhamos para as coisas e isso teve um impacto muito grande, para além de ter coincidido com o facto de ter sido mãe pela primeira vez o que é, por si só, uma experiência transformadora. O período da gravidez é muito incerto, não sabemos ao que vamos, temos muitas expectativas. Viver isso numa pandemia, em que não sabemos que mundo é que o nosso filho vai conhecer… às vezes não percebia se o que estava a sentir tinha a ver com a gravidez ou com o isolamento. Algumas das canções foram escritas antes da pandemia, e até me questionei se faria sentido pô-las no disco, mas fez. Ganharam novos significados. Há um antes e depois na escrita, e eu gosto desse contraste.

Ninguém nos vai tirar o Sol é uma metáfora para os tempos que vivemos?

O título do disco é também o título do primeiro single. Na verdade, foi uma das últimas canções que escrevi, foi mesmo um exercício de autoterapia, de viver um dia de cada vez, a canção fala nisso: viver um dia de cada vez embora tudo esteja incerto. “Provar a incerteza e esperar”, que é algo que digo na canção. Neste disco, a minha banda esteve muito mais envolvida do que no anterior. Às tantas, estávamos a acabar de gravar esta canção, e o baterista disse que este era um bom título para o disco. Imediatamente, toda a gente concordou. Eu queria que o disco fosse um espelho daquilo que estava a viver, mas que tivesse um tom esperançoso, até porque sou otimista por natureza. Percebi que a frase “vai ficar tudo bem” é muito bem-intencionada, mas nem sempre corresponde à verdade. Para muitas pessoas não ficou tudo bem. Prefiro agarrar-me àquilo que não nos podem tirar.

Também tens uma canção dedicada ao teu filho, A História do Pé de Feijão. A maternidade alterou a tua forma de compor?

Escrevi muitas canções quando estava grávida, para mim e para outros artistas. É uma experiência transformadora, mas infelizmente trouxe-me menos tempo para compor… É muito enriquecedor e tem tanto de incrível e maravilhoso, como de difícil e desafiante. Acho que está a fazer de mim uma pessoa melhor, mais organizada, mais eficiente e mais segura.

Continuas a desdobrar-te em vários projetos (como Cassete Pirata), dás aulas e escreves canções para outros artistas. Como se gere tudo?

O segredo está na creche e nos avós. Tanto os avós maternos como paternos estão muito presentes e dão imenso apoio, o que é fundamental numa profissão como esta. Durante o horário normal de trabalho há a creche, mas os músicos passam fins-de-semana fora a tocar, passam noites fora, os horários são complicados, não é muito fácil levar um bebé atrás… nessa parte da gestão é fundamental. Tem sido um desafio grande a nível mental ter espaço para a parte criativa, que exige muito tempo de inspiração, seja a ver filmes, ler livros, ouvir música e até a procrastinar, que também faz parte do processo… esta é a parte que tem sido mais desafiante, mas que começa, lentamente, a voltar ao que era. As aulas, para além de serem uma fonte de segurança financeira – especialmente numa fase em que os artistas e as suas equipas viram grande parte do seu rendimento cortado – são também um espelho das gerações mais novas e da música nova que se está a fazer. Gosto muito de ensinar. Acho que tem de ser na medida certa – dou aulas um ou dois dias por semana e reservo o resto do tempo para ensaios, concertos, para compor… Também faz alguma diferença o projeto Cassete Pirata ser cá de casa [o vocalista Pir é o companheiro de Joana Espadinha]. Lançámos os dois os discos na mesma altura, foi tudo ao mesmo tempo: lançamentos, entrevistas, promoções… íamos dando em doidos, mas conseguimos.

Quando escreves inspiras-te na tua própria vida?

Não consigo cantar nada que não seja assim, fica estranho. No passado fiz isso: estava numa relação e resolvi escrever canções sobre separação. Depois separei-me a seguir, parecia que estava a adivinhar… Mesmo quando não queremos que seja autobiográfico, há sempre um lado que é, nem que seja a forma como imaginamos que iríamos viver determinada situação.

“A maternidade é uma experiência muito enriquecedora, que tem tanto de incrível e maravilhosa, como de difícil e desafiante”

Questionas-te sobre a forma como o público interpreta as tuas canções?

É engraçado pensar na forma como as pessoas recebem as canções. Às vezes interpretam-nas de uma forma que não tem nada a ver com a intenção original. Uma das coisas mais incríveis da música é o poder de se tornar da pessoa que a está a escutar e deixar de ser de quem compôs. Por exemplo, em relação ao Mau Feitio, às vezes as pessoas dizem-me que não percebem porque a escrevi, porque acham que eu não tenho mau feitio. Esta é uma característica praticamente universal, circunstancialmente todos temos momentos de mau feitio, é algo com que as pessoas se conseguem relacionar. Em relação às coisas que são mais pessoais, ou mais dolorosas, o facto de escrever sobre elas faz com que me sinta mais resolvida. Nunca me senti demasiado exposta por escrever sobre a minha vida.

Tens escrito para outros artistas. Como se dá esse processo?

Gosto de tanta coisa, de tanta música diferente que acabava por querer cantar tudo o que escrevia, o que resultava numa coisa um bocado esquizofrénica de estilos musicais muito diferentes. A certa altura percebi que tinha de fazer escolhas. Por exemplo, a Elisa Rodrigues pediu-me uma música. E eu, que a conheço há muito tempo, tinha uma ideia do que ela iria cantar. Na altura ela estava a escrever um disco numa direção mais folk. Dei-lhe uma canção que ela adorou, mas que não tinha muito a ver com aquele disco. Então, ela mostrou-me algumas coisas que já tinha, e escrevi com esse foco. No caso da Carminho foi muito engraçado. Escrevi uma canção e imaginei-a a cantá-la, mas demorei anos para ganhar coragem para lha mandar. Lá arranjei um amigo que a conhecia e que lha enviou. Ela gostou da canção e pediu-me para lhe dar algum tempo para perceber quando faria sentido cantá-la. Achei que ela estava a ser muito simpática. A certa altura ganhei confiança e enviei-lhe outra canção. Aí ela ligou-me e disse que gostava muito do que eu escrevia, e sugeriu que nos conhecêssemos. Lembro-me da emoção que senti quando a ouvi a cantar algo escrito por mim. Ouvir aquela canção pela voz dela, como eu tinha imaginado, foi mesmo incrível. A partir daí fui tendo mais propostas e mais pedidos. Diverte-me muito pôr-me na pele de outra pessoa e gostava de ter mais tempo para me dedicar a isso.

Já aconteceu ficares muito surpreendida com o resultado final de uma canção tua?

Fiz uma canção para a Cláudia Pascoal que se chama O Soldado, que ela cantou de forma maravilhosa. As canções que escrevi para a Carminho também ficaram incríveis (O menino e a cidade tem uma introdução de guitarra portuguesa inacreditável. Surpreendeu-me muito ouvir essa canção). A Sara Correia, por exemplo, também me arrepia quando ouço. Tenho tido muita sorte com as pessoas que têm cantado as minhas canções. Posso ser honesta e dizer que ainda não houve nenhuma que não tenha gostado.

Já há material para o próximo disco?

Escrevi uma canção para o Luís Trigacheiro logo após ter sido mãe, porque era um pedido urgente e lá consegui terminar. Entretanto mergulhei na maternidade e achei que nunca mais ia ter tempo para escrever, mas, entretanto, fui convidada como compositora para a edição deste ano do Festival da Canção. Por norma escrevo de forma muito natural, mas aqui havia um prazo e tantas opções em aberto em termos de estilo musical… de repente tive uma branca, não sabia bem o que escrever. Então comecei a escrever canções sem as terminar e ia percebendo o que não funcionava. Andei assim duas semanas… tenho para aí dez canções a meio, portanto já há temas para um novo disco.

Foi difícil escolher um intérprete?

Foi, porque o tema da canção é muito específico e era preciso alguém que entendesse o que eu estava a dizer, que é aquilo que tenho estado a viver. Era preciso não só ser uma boa voz e alguém com quem eu tivesse afinidade, como alguém com alguma maturidade e experiência.

Em fevereiro regressas ao Maria Matos, um palco que já conheces bem. O que vai ter este concerto de diferente em relação ao de junho?

Em junho foi um concerto de pré-apresentação, não tocámos o disco todo. Foi mais para matar saudades dos palcos e do público. Na altura lançámos também a edição d’O material tem sempre razão em vinil. Para este concerto de fevereiro achámos que faria sentido ter alguns convidados (para já, temos confirmada a presença da Luísa Sobral). Estamos cheios de vontade de tocar.