teatro
E numa noite aconteceu
"Começar", de David Eldridge, no Teatro Aberto
Dois solitários, ela à beira dos quarenta, ele um pouco mais velho, flirtam no decorrer de uma festa. No final, a sós, procuram conhecer-se e, quem sabe, até podem vir a deixar que o amor aconteça. João Lourenço dirige, no Teatro Aberto, Começar, uma comédia romântica do britânico David Eldridge, aqui protagonizada por uma dupla cheia de química: Cleia Almeida e Pedro Laginha.
[o espetáculo repõe a 10 de dezembro]
Poderá soar a coisa em desuso, mas Laura e Daniel não se conheceram no Tinder, nem noutro qualquer site de encontros, como poderia parecer natural nos dias que correm. O primeiro encontro deu-se olhos nos olhos, no frenesim de uma festa dada por Laura no seu novo e elegante apartamento. Como bem especifica o encenador João Lourenço, “um encontro cara a cara de um homem e de uma mulher, sem os filtros e as máscaras das redes sociais.”
Começar é a história dessa noite, daquilo que, após a festa, aconteceu a Laura e Daniel logo que os convidados abandonaram o apartamento. Como ponto de partida, sabemos que agradam um ao outro, que ela está disponível para se entregar a alguém como ele, com “cara de boa pessoa”. Aquilo que também sabemos é que ele é desajeitado na arte da sedução, fala quando não deve e que morre de medo de se deixar envolver nas teias da paixão, ou não houvesse todo um passado que o ensombrasse.
“O que me agradou neste texto, que tem tanto de leve como de profundo, foi toda a partitura da força e da fragilidade do começo de uma relação amorosa”, refere João Lourenço, lembrando que Começar acabou por ser o texto escolhido para este arranque de temporada devido à impossibilidade, motivada pela pandemia, de prosseguir os trabalhos de Tempestade Ainda, de Peter Handke, criação de “outro grau de exigência, e com uma equipa artística bem mais extensa.”
Mas a peça de David Eldridge, uma comédia romântica que, afinal, “não é assim tão ‘levezinha'”, mas profundamente ácida no modo como observa as relações amorosas entre adultos nos nossos tempos, abriu na imaginação de João Lourenço a hipótese de “explorar outras linhas de ação e situações”. “Procurei integrar no espetáculo cenas filmadas, misturando teatro e cinema, tal como o tinha feito há uns anos em Noite Viva de Conor McPherson.”
Seduzido pelas personagens de Laura e Daniel, o encenador acabou por lhes dar vida fora do apartamento e, ao lado do realizador Nuno Neves, fez nascer um projeto paralelo de cinema. Desse projeto, o espetáculo de teatro mostra apenas o prólogo, ou seja, a longa cena da festa, e uma pequena cena de amor, quase no final, que altera, já no palco, o “happy end” sugerido no texto original.
“Ainda não sei o que vai acontecer ao filme, mas logo após estrearmos o espetáculo retomámos as filmagens para o concluir”, esclarece João Lourenço. Garantidamente, a existência proporcionada a Laura e a Daniel no cinema, “teve uma repercussão profunda no modo como os atores passaram a desempenhar as personagens no teatro”.
Cleia Almeida e Pedro Laginha emprestam uma notável química ao par romântico de Começar. “É que o trabalho de filmagens deu-lhes outra dimensão sobre quem são as suas personagens, dando-lhes a conhecer a família, os amigos, os colegas de trabalho, mas também as experiências traumáticas e os momentos de felicidade que viveram”, salienta o encenador.
Assim, enquanto não sabemos tudo sobre Laura e Daniel numa tela de cinema ou num ecrã de televisão, é no palco do Teatro Aberto que podemos testemunhar como tudo começou.