Os museus do futuro

Três especialistas refletem sobre o tema

Os museus do futuro

A edição de 2021 do Dia Internacional dos Museus está subordinada ao tema O futuro dos museus: recuperar e reimaginar. Num mundo marcado pela crise pandémica, e após um longo período de afastamento físico do convívio com o espaço dos museus, três especialistas refletem sobre as questões da sustentabilidade, da inovação e da relevância destas instituições vitais para a vida em sociedade, para o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento.

Os museólogos Clara Frayão Camacho e Fernando António Baptista Pereira e a investigadora Ana Carvalho responderam ao desafio da Agenda Cultural de Lisboa com três textos inéditos sobre o tema.

Clara Frayão Camacho

Museóloga, coordenadora do Grupo de Projeto Museus no Futuro

Estamos habituados a ligar os museus ao passado e ao presente, mas podem também constituir-se como laboratório de estudo e perspectivação do futuro. Foi isso que fizemos no Grupo de Projeto Museus no Futuro formado em meados de 2019, que coordenei ao longo de um ano e meio, e que culminou num relatório com 50 recomendações para os museus palácios e monumentos do ministério da cultura. A análise demográfica do pais, o retomar do turismo, as questões da sustentabilidade, da participação e da transformação digital, levam-me a traçar algumas ideias sobre a perspectiva dos museus do futuro. A primeira é que a pandemia nos alertou para questões sanitárias de bem-estar físico e mental que devemos seguir. Será que essas questões vão ter repercussões a médio prazo na arquitectura dos museus, no equacionar dos espaços de acolhimento, do trabalho dos serviços educativos, do manuseio de equipamento interactivo? No que respeita à participação, é cada vez mais notório que fatias significativas da população gostam não só de ver e comtemplar as obras de arte, mas também de agir e participar em programa em que sejam ouvidas, seja através de co-curadoria de exposições temporárias, seja na participação de grupos consultivos, ou até em situações de governança participativa que estão a ser experimentadas nalguns museus do mundo. O museu tem que ser uma casa para todos e pensar sobretudo naqueles que não vêm ao museu se quer ser relevante para a sociedade e não apenas para parte dela. Os cidadãos com literacia digital cada vez mais elevada vão exigir formas mais interactivas de atuação dos museus. No futuro perspectiva-se uma complementaridade entre o físico e o online, nunca o desaparecimento da experiência presencial, essencial para fruir e dialogar com os bens culturais. Também nas questões da sustentabilidade os museus devem ter um papel significativo, seja pedagógico, através de exposições, de reflexão e investigação, seja pelo seu próprio exemplo, em termos de arquitectura, de planeamento de espaços ao ar livre, de estacionamento de bicicletas e práticas sustentáveis. Finalmente, o trabalho em rede é definitivamente a grande tendência organizacional do futuro. Quer do ponto de vista formal, com a renovação da própria rede portuguesa de museus, quer no trabalho no terreno com as várias redes de museus já existentes, quer com directrizes políticas a nível nacional e municipal, com grande envolvimento da sociedade.

Fernando António Baptista Pereira

Presidente da Faculdade de Belas Artes de Lisboa

A transição digital nos museus é um dos imperativos desta década. Digitalizar os acervos e colocá-los online, mas também a documentação alusiva a esses acervos ou seja muitas exposições, catálogos, estudos de mestrado, de doutoramento, etc. Tarefa que necessita de equipas vocacionadas para este fim. O outro lado desta revolução é para mim, a possibilidade de criar no museu um espaço Wi-Fi livre para se poderem inserir as aplicações necessárias para se realizar uma visita com o próprio telemóvel, não com os audioguias tradicionais. Os visitantes têm como grandes rivais do museu o seu próprio telemóvel que os atrai para a leitura de coisas exteriores ao museu. Por isso, é importante que o museu entre no telemóvel do visitante através de uma aplicação que lhe presta informações sobre a obra que está a ver, pois mediante o sistema de beacons consegue localizar a presença das pessoas no museu, podendo mesmo propor jogos sobre a obra em causa e, até, sugerir a visita à medida do gosto individual. Se conseguirmos fazer isto, os museus ultrapassam o fim da era das massas que a pandemia ditou. Importa realizar exposições virtuais e eventos online que possam atrair visitantes espalhados ao longo do ano e não concentrados nos meses de verão e, sobretudo, tornar o dispositivo móvel da pessoa como o seu grande aliado na visita ao museu que permite guardar as informações e levar o museu para casa, revisitando-o. Estas são as duas questões fundamentais da transição digital. Acrescentaria ainda uma questão estratégica para o desenvolvimento do país: a constituição de grandes reservas patrimoniais espalhadas regionalmente associadas a laboratórios de conservação e restauro. Não só se empregariam imensos jovens formados nesses domínios, como se encontravam reservas em condições para albergar o património arqueológico, que é imenso, algum do património etnográfico, que está a sair do país para enriquecer coleções lá fora e parte do património artístico que os seus detentores não podem conservar devidamente. Mantendo um registo de propriedade, as reservas seriam os locais onde as peças estariam guardadas e disponíveis para exposições temporárias. Os centros de conservação e restauro associados a essas reservas, os sítios onde essas obras iam sendo estudadas, tratadas e salvaguardadas.

Ana Carvalho

Investigadora da Universidade de Évora

A questão dos museus do futuro não é nova, mas tem-nos inquietado particularmente no último ano. O que é possível fazer para que os museus enfrentem melhor os desafios da sociedade? Esses desafios são múltiplos, porém o que me parece mais evidente é o digital pela forma como se tornou, com as portas dos museus fechadas, no recurso a um espaço imprescindível. Na verdade, já antes da pandemia muitos museus trabalhavam o espaço digital, trazendo novos conteúdos e diversificando os seus públicos. Participei no projeto internacional MU.SA que abordava a forma como os museus podem responder aos desafios da sociedade digital. A crise pandémica evidenciou que de uma forma geral os museus não estão preparados para esse passo. Não conseguem construir uma estratégia que use o digital como forma de beneficiar a sua missão. Sinto, neste momento, que existe um enorme apetite para voltarmos à experiência física, um cansaço do digital. Os museus têm agora a oportunidade de voltar a garantir essas experiências únicas e autênticas no espaço físico. Mas, a ideia do digital não vai desparecer. É como se houvesse uma expansão do trabalho dos museus e é preciso capacitá-los para essa tarefa. Em Portugal , nos museus nacionais, as equipas são pequenas e envelhecidas, com poucos recursos, algumas com poucas competências na área digital e infra-estruturas obsoletas. A ideia de “fazer cada vez mais, com menos recursos” não é possível para um trabalho de comunidade e de continuidade nos museus. Existe uma necessidade de maior cooperação com outras entidades para transferência de conhecimentos, um investimento nas tecnologias de informação, a possibilidade de criar projetos piloto, a promoção do acesso através do investimento na digitalização dos acervos. E, mais do que digitalizar, pensar que histórias se podem contar a partir dessas coleções digitais. Isto implica o reconhecimento das fragilidades e políticas públicas assertivas. Os museus portugueses têm subsistido a crises constantes. Esta é mais uma, mas sem precedentes e que vai trazer um conjunto de reproduções a vários níveis. Os museus, que já se encontravam numa situação frágil, se não virem estas questões encaradas com cuidado, dificilmente poderão desempenhar funções relevantes.

[os autores escrevem de acordo com a antiga ortografia]