José Filipe Costa

"O 25 de Abril é normalmente abordado do ponto de vista político, dando-se pouca atenção aos comportamentos e à intimidade"

José Filipe Costa

Estreia a 20 de maio, nos cinemas, o filme de José Filipe Costa, Prazer, Camaradas! A história acompanha a chegada a Portugal, em 1975, pós-Revolução do 25 de Abril, de vários estrangeiros da Europa do Norte que vieram trabalhar nas cooperativas das herdades ocupadas. Estes homens e mulheres queriam fazer a revolução sexual, abalando as velhas certezas de quem vivia há tanto tempo em ditadura. Conversámos com o realizador sobre as memórias de uma revolução que não foi apenas política.

Como surgiu a ideia de fazer um filme sobre a vinda dos camaradas do norte para as cooperativas portuguesas e a “revolução sexual e de costumes” que daí surgiu?

O primeiro contacto que tive com estes relatos sobre a intimidade e a sexualidade foi através dos diários que o José e a Eduarda, que eram um casal na época, escreveram a partir da sua vivência. Eles eram portugueses exilados na Alemanha e vieram para Portugal como alfabetizadores nas cooperativas da Azambuja. A partir daí comecei a ligar esta informação a outras histórias que fui ouvindo, algumas inclusive em debates depois de ter feito o filme Linha Vermelha (2012). Uma dessas histórias foi-me contada por uma alemã que estava na plateia do Museu de História Alemã, em Berlim, onde fiz uma apresentação. Ela explicou-me como as mulheres da cooperativa Torre Bela a receberam: numa assembleia, as mulheres decidiram que todas as estrangeiras tinham que sair da cooperativa ao fim de semana, para que os homens portugueses não cedessem à tentação, com exceção desta alemã e de uma amiga, que elas acreditavam serem um casal. Fui ligando todas estas histórias, porque me interessava fazer um filme que tocasse numa revolução que não era só da esfera política e institucional, mas também do corpo, da relação com os outros, da relação homem/mulher.

Porquê filmar as pessoas reais que viveram todas estas histórias e que no filme assumem terem a idade que tinham em 1975?

Tive dúvidas sobre como fazer o filme com toda a informação que tinha. Não sabia se ia filmar as histórias diretamente com atores, ou fazer leituras dos textos que tinha descoberto, havia várias hipóteses. Então surgiu esta ideia de utilizar as pessoas que viveram nas cooperativas e que estas assumissem no filme ter 18, 20 ou 30 e tal anos, quando de facto a sua idade ronda os 60 ou 70 anos. Quis brincar com essa ideia de um faz de conta.

Como chegou às pessoas que são as personagens do filme, como conseguiu encontrá-las ao fim de tantos anos?

Encontrei-as através de pistas que me foram sendo dadas, por uns e por outros. Através de almoços em Manique do Intendente (freguesia do concelho da Azambuja) onde um dos atores do filme, que foi um grande facilitador, me colocou em contacto com outras pessoas. Mas passou também, por exemplo, por ir à junta de freguesia de Aveiras perguntar se ainda ali viviam pessoas dessa época. Aí obtive outros contactos. Desta forma fui criando uma rede.

Os intervenientes, voltaram a reviver, no filme, o que passaram há mais de 40 anos. Como foi para eles serem confrontados com esses tempos do passado?

Foi sobretudo divertido. Propor àquelas pessoas que assumissem terem a idade da época, era à partida uma premissa que convidava ao jogo, a um jogo lúdico. Ao revisitarem os espaços onde filmei – alguns deles tinham sido ocupados, outros não – as suas memórias eram espicaçadas. Um bom exemplo disso é a cena no lavadouro, onde as mulheres conversam sobre as suas primeiras experiências sexuais e sobre o casamento. O facto de estarem ali em ação, em contacto com algo que era habitual naquela altura, fê-las rememorarem. Levou-as a utilizar um vocabulário que é muito interessante, mas também uma gestualidade e uma maneira de contar as coisas muito irónica, já com uma certa distância em relação aos acontecimentos, ao mesmo tempo com um gosto por estarem a lembrar. Para muitas das pessoas, nomeadamente os portugueses regressados do exílio, aquele período foi muito celebratório, apesar de turbulento e com tensões, a memória que têm é muito festiva. Foi uma libertação toda aquela experiência que viveram em 1975.

Estas pessoas não são atores. Que tipo de indicações ou de trabalho é necessário para, enquanto realizador, conseguir que correspondam às expetativas?

Só uma cena teve indicações. Os textos eram estudados no momento, os atores não decoraram nada. Isto tem uma grande vantagem, não ficaram agarrados a um texto que tinham de dizer e eram eles que reinventavam as situações dramáticas que lhes eram dadas. Fizemos algumas sessões preparatórias, com a atriz Sofia Cabrita, onde lhes eram apresentadas situações para improvisarem e a partir daí fomos vendo o perfil de cada um e do que eram capazes. Foi muito interessante porque se percebeu que, quer nas palavras que usavam, quer na gestualidade, havia uma grande frescura. Regressavam àquele tempo com grande vivacidade, sem uma mecanicidade. Os atores tinham poder para dramatizar as situações, era esse o objetivo e não a reconstituição de uma vivência.

Não deixa de ser irónico e surpreendente que, passados quase 50 anos, continuemos a discutir as mesmas questões. As diferenças entre mulheres e homens a nível laboral, salarial e familiar continuam a ser enormes. Não deveríamos estar hoje muito mais à frente?

Acho que a Revolução e aquele período prometiam muito mais do que aquilo que aconteceu. Os estrangeiros que vieram para as cooperativas traziam muitas coisas e o horizonte utópico era muito mais largo. O que acabou por acontecer foi que voltámos todos para as nossas casinhas… Claro que houve um grande salto, mas continuam a existir ainda ideias preconcebidas muito enraizadas. Há uma coisa muito engraçada que a Eduarda, uma das alfabetizadoras que veio da Alemanha diz: “Nós lutámos muito naquela altura pelas bibliotecas, pelo livro, pela palavra, e passado pouco tempo estávamos a ver as pessoas a assistir à novela em vez de irem à biblioteca. Foi uma deceção, aquilo que os tempos prometiam e em que acabaram por resultar.”

É importante para si manter a memória viva daquilo que se passou no país? É também com esse intuito que tem vindo a abordar a temática da opressão e do 25 de Abril na sua obra?

Sim, é muito prazeroso ver num grupo de atores esta viagem festiva e celebratória. Como disse anteriormente, houve um horizonte que não se cumpriu, uma linha de esperança que não chegámos a atingir. Nesse sentido é interessante retornar a esse período e reapresentá-lo às pessoas. O 25 de Abril é quase sempre abordado do ponto de vista político e institucional e dá-se pouca atenção a este lado dos comportamentos, da intimidade e à promessa que existia de um homem e de uma mulher novos. A Revolução não passava só pela substituição de um governo ou de um regime, mas também pela mudança daquilo que era pequeno, doméstico, “lá de casa”. Abordo esta questão de uma maneira sensorial, não há entrevistas no filme, mas sim pessoas em ação. Desta forma invoco um lado emocional que me interessava explorar, uma experiência de revivência e não um relato factual.

Perante a situação pandémica que vivemos e os custos que tem tido para o cinema, é quase uma revolução, ou um ato de coragem, estrear um filme nestas circunstâncias. Prazer, camaradas! estava previsto estrear em 2019, porque não adiou ainda mais a sua estreia?

Estávamos mesmo desejosos de mostrar e partilhar o filme, apesar de toda a incerteza.