Sofia Campos

"Programar é também cuidar, é criar o espaço e o tempo certos para valorizar as obras, os seus criadores e os bailarinos"

Sofia Campos

Sofia Campos é diretora artística da Companhia Nacional de Bailado (CNB) desde setembro de 2018. As duas temporadas que tinha projetado foram desvirtuadas, e até mesmo interrompidas. Focou-se nas necessidades dos bailarinos, em proporcionar-lhes condições de trabalho em confinamento, e agora em respeitar o tempo de recuperação da melhor condição física de todos. Desde que assumiu o cargo preocupou-se ainda com o modo como a CNB comunica com o seu público. E assume que a Companhia tem potencial para ocupar um lugar de maior destaque, no país e no estrangeiro.

Consegue encontrar algum aspeto positivo nestas quase duas temporadas de paragens prolongadas da CNB?

O primeiro confinamento apanhou-nos a todos de surpresa; de um dia para o outro ficamos confinados às nossas casas, sem acesso ao teatro. O sentimento foi de desorientação, de não acreditar que tudo isso estava de facto a acontecer e, ainda mais angustiante, sem fim determinado. Mas depressa tivemos de nos adaptar. No segundo confinamento, contávamos com a aprendizagem do anterior; mantivemos alguns eixos de atuação, algumas práticas e melhorámos e criámos outras. Aprendemos muito com o primeiro período em que fomos afastados dos estúdios, do palco, da presença do público… Logo de início identificámos dois níveis de trabalho como os nossos grandes focos. Por um lado, uma dimensão interna, de manutenção física do elenco artístico fixo que, numa Companhia Nacional, vive de uma rotina diária de grande exigência; e por outro, uma dimensão externa, de ligação ao público, com quem vínhamos construindo uma relação mais próxima e direta, com resultados muito expressivos no aumento da afluência aos espetáculos e atividades da CNB. Foi sempre muito evidente e presente que não poderíamos descurar estes dois níveis de atenção. Foram períodos complexos, mas em que vimos, por exemplo, potenciados projetos a que já tínhamos dado início e que se centravam numa existência sobretudo digital; os confinamentos vieram sublinhar a sua pertinência e acentuar o seu desenvolvimento. Mostrámos espetáculos, mas também desvendámos curiosidades do trabalho da equipa da CNB, dos bailarinos, partilhámos testemunhos sobre processos criativos de diversas obras e dos seus criadores, mergulhámos no arquivo da Companhia…foi muito interessante perceber como esses projetos ganharam uma outra dimensão e projeção mantendo a ligação a um público que já acompanhava o nosso trabalho e aproximando outro que assim teve oportunidade de o ir descobrindo. Apostámos muito no acesso à CNB por essa via e os resultados foram muito surpreendentes, com muitas mensagens de agradecimento e de motivação por parte de quem nos foi acompanhando.

Considera dar início à constituição de um arquivo de espetáculos filmados para que existam conteúdos para partilhar em momentos como este?

A CNB tem um vasto arquivo, mas que foi sempre pensado como de “consumo, sobretudo, interno”; os espetáculos são desde há muito registados, mas não com a perspetiva de transmissão posterior, mas sim de consulta, como documentos de trabalho. Filmar espetáculos de dança para transmissão não é a mesma coisa; implica outro tipo de recursos técnicos que até ao momento a Companhia não teve. E se, num primeiro momento, disponibilizámos alguns registos de espetáculos como um recurso imediato a partilhar com o público, no segundo confinamento optámos por apostar, como referi antes, noutro tipo de conteúdos, potenciando inclusive outra documentação do próprio arquivo da CNB.

Ensaio © Hugo David

Que efeitos tiveram estas interrupções tão prolongadas sobre o planeamento dos espetáculos a apresentar?

No meu caso particular, tendo eu assumido as funções de diretora artística da CNB em setembro de 2018, vi as duas temporadas seguintes interrompidas e um pouco desvirtuadas em relação ao projeto que tinha desenhado, e aos objetivos que projetava atingir para a Companhia neste mandato. Mas a verdade é que, no momento em que a primeira interrupção foi anunciada o meu primeiro pensamento foi para os bailarinos. Um bailarino de uma companhia como esta é equivalente a um atleta de alta competição na exigência e necessidade de um treino e atividade diários; não lhe é natural estar parado, isolado, circunscrito a um espaço pequeno onde o corpo não se possa expandir. E embora no segundo confinamento tenham sido melhoradas substancialmente as condições proporcionadas aos bailarinos, a falta de ensaios, o estar longe do estúdio e dos seus pares, implica necessariamente com a sua manutenção e condição físicas. E isso, interfere consequentemente no modo como se organiza a programação pois esta tem que ser consciente do tempo de recuperação que estas paragens implicam. Por outro lado, a programação assenta num calendário no qual cada projeto está pensado para um determinado momento que antecede e sucede um outro projeto. Ao adiarmos um ou vários espetáculos, como foi o caso, estamos a fragilizar essa estrutura original que tínhamos criado ao mesmo tempo que é necessário gerir vários fatores para que o possamos voltar a calendarizar. No caso da CNB, conseguimos, juntamente com os artistas, encontrar novas datas para todos os espetáculos que já tínhamos contratados e assim manter e honrar os compromissos.

O palco da CNB em Lisboa será sempre, exclusivamente, o Teatro Camões, ou considera que a Companhia se poderá vir a apresentar em outras salas da capital?

O Teatro Camões é a casa da Companhia Nacional de Bailado, e é aí que a sua equipa trabalha diariamente ensaiando e preparando tecnicamente os seus espetáculos. Naturalmente é aí que se apresenta com mais regularidade, mas isso não significa exclusividade. A história da Companhia conta com apresentações noutras salas de Lisboa ao longo dos tempos (como é o caso do Teatro Municipal de São Luiz, o Centro Cultural de Belém e o Teatro Nacional de São Carlos), e continuará certamente a contar. Há colaborações a ser desenhadas para as quais se procuram sinergias e lógicas de programação que resultam de interesses e vontades comuns.

A que critérios obedece a calendarização de audições para a entrada de novos bailarinos?

As audições acontecem mediante a necessidade, e possibilidade, de contratar novos bailarinos para o elenco, mas habitualmente acontecem no período entre fevereiro e maio de modo a poder preparar-se a temporada seguinte.

Ensaio © Hugo David

Já tomou medidas da sua inteira responsabilidade depois de ter assumido a direção da CNB?

Ao assumir funções enquanto diretora artística da CNB, em setembro de 2018, assumi também de imediato todas as responsabilidades que me competem. E havendo, a nível de programação um conjunto de obras já agendadas pela anterior direção artística, comprometi-me desde logo a levar avante esses projetos tentando, por exemplo nalguns casos, e em total diálogo com os artistas, encontrar os contextos de apresentação, o momento na temporada, que me pareciam mais adequados. Programar é também cuidar, é criar o espaço e o tempo certos para valorizar as obras, os seus criadores e os bailarinos. Desde setembro de 2019 a programação, embora interrompida por dois confinamentos, é da minha responsabilidade. Naturalmente o trabalho de diretora artística da CNB não se encerra na programação de espetáculos; do meu ponto de vista a missão da Companhia completa-se no desenvolvimento de outras atividades complementares que é preciso desenvolver mais como masterclasses, conversas, exposições, edições. Mas também nas parcerias que cria e que ajudam a expandir o seu potencial. São muitas dimensões. E por isso, ainda na primeira temporada dei início a projetos criados por mim e que, de algum modo, começaram a dar sinais sobre a amplitude de programação que tinha imaginado para a Companhia; dediquei muita atenção ao modo como a CNB comunicava e se relacionava com o público, à imagem que passava, e analisei as ferramentas que utilizava para, com a equipa, investir num refrescar dessa imagem acompanhado por uma oferta ao público de conteúdos que se completem e melhorem a sua experiência junto da Companhia. E claro, há um trabalho diário que é preciso estruturar e que tem a ver com a gestão do elenco artístico, com a organização das aulas diárias dos bailarinos, com os professores convidados que as lecionam; há um trabalho de fundo que se prende com o trabalho de apoio à manutenção física, à prevenção e recuperação de lesões. Existem também questões estruturais que é preciso cuidar, que precisam de um grande investimento, como é o caso das promoções e do desenvolvimento das carreiras dos bailarinos. A CNB tem um conjunto de bailarinos incríveis, versáteis, com uma energia jovem, de grande qualidade e, desde que assumi funções, que acredito no potencial da Companhia para ocupar um lugar de maior destaque a nível nacional e internacional.

O que pode antecipar sobre a programação da nova temporada?

Temos ainda alguns espetáculos, que estavam previstos inicialmente para 2020, que serão apresentados na próxima temporada, mas que, esperamos, sejam os últimos reagendamentos. Continuaremos a apostar numa programação que dê corpo à história da dança, à sua memória olhando para o passado através de obras de repertório, mas também às suas expectativas construindo futuro com novas criações. Embora a programação esteja ainda em construção posso desvendar que contaremos com a nova criação de um novo bailado clássico.

Dia Mundial da Dança na CNB. [ver programa]