Cinema de autor no Feminino

Pela câmara de oito realizadoras

Cinema de autor no Feminino

A 8 de março assinala-se o Dia Mundial da Mulher. Nesse sentido apresentamos oito, das muitas realizadoras, que desenvolvem uma obra cinematográfica única e sugerimos um filme, de cada uma delas, onde a figura feminina é o elemento central da história.

Agnés Varda

A realizadora belga, que fez carreira no cinema francês, foi uma mulher de grande curiosidade, uma vanguardista que construiu uma obra ímpar. A sua estreia cinematográfica aconteceu em 1954, com Le Pointe Courte, um filme com montagem de Alain Resnais que anunciava o que viria a ser o movimento artístico da Nouvelle Vague. O filme Cléo de 5 a 7 (1962) é exemplo da audácia deste novo movimento e de uma cineasta cujo estilo experimental está presente nas muitas longas e curtas-metragens que realizou. O seu trabalho, onde documentário e ficção se confundem, inclui constantemente crítica social e feminismo. Em 1985, com Sem Eira Nem Beira, conquista o Leão de Ouro no Festival de Veneza. A cineasta, que faleceu em 2019 aos 91 anos, presenteou o público com um último e imperdível documentário: Varda por Agnés.

Sugestão: Varda por Agnés, a última longa-metragem da realizadora, é um autorretrato e uma viagem fascinante pela sua obra, enquanto cineasta, fotógrafa e artista. Um documentário que revela o ícone feminista e a excelente contadora de histórias que foi Agnés Varda.

Alice Rohrwacher

Figura notável do cinema de autor italiano, Alice Rohrwacher estudou Literatura e Filosofia, em Turim. O seu primeiro filme, Corpo Celeste (2011), um drama realista sobre a educação católica de uma jovem rapariga, estreou na Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes, onde foi galardoado com o Nastro d’ Argento. Cannes recebeu-a de braços abertos e os dois filmes que se seguiram também passaram pelo festival. O País das Maravilhas (2014) ganhou o Grande Prémio do Júri, transformando Rohrwacher numa das mais importantes realizadoras de uma nova geração de cineastas. Feliz como Lázaro (2018), obra internacionalmente aclamada pela crítica e pelo público, venceu o prémio de Melhor Argumento. Realizar filmes humanos sem perder a ligação à realidade é o desejo da cineasta, para quem o poder da imaginação pode ser viciante.

Sugestão: O País das Maravilhas desenrola-se na beleza rural da Toscânia, local onde a realizadora cresceu. Aí, uma família de apicultores, que tem como figura central a mais velha de três irmãs, vê a sua vida alterada pela chegada de um reallity show. Um filme sobre a juventude e a emancipação, onde a força das personagens femininas é hipnotizante.

Lucrecia Martel

©Henny Garfunkel

Lucrecia Martel, uma das mais proeminentes cineastas contemporâneas, é referência na produção audiovisual da América Latina e nome fundamental do novo cinema argentino. O reconhecimento internacional aconteceu com a primeira longa-metragem O Pântano (2001), uma reflexão visceral sobre classe, natureza, sexualidade e política, que lhe valeu o Prémio Alfred Bauer para Melhor Primeira Obra, no Festival de Berlim. Em 2004 estreia A Menina Santa, onde a sexualidade é abordada do ponto de vista de uma adolescente extremamente religiosa e, em 2008, A Mulher Sem Cabeça, onde mais uma vez as relações de família e de classe têm um papel preponderante. Depois de quase uma década de interrupção, regressa às longas com Zama (2017), uma coprodução portuguesa com direção de fotografia de Rui Poças, considerado melhor filme de 2017 por um conjunto de 135 programadores, críticos e cineastas de todo o mundo.

Sugestão: A Menina Santa, baseado nas memórias de infância da realizadora e produzido por Pedro Almodóvar, conta a história de uma adolescente católica que se encontra dividida entre o desejo sexual e a sua devoção religiosa. Ao ser assediada por um médico que está de passagem, assume a missão sagrada de salvar a alma deste homem do pecado.

Cláudia Varejão

©Humberto Mouco/CML-ACL

Fotógrafa, realizadora e argumentista, Cláudia Varejão estudou cinema no Programa de Criatividade e Criação Artística da Fundação Calouste Gulbenkian em parceria com a German Film und Fernsehakademie Berlin e na Academia Internacional de Cinema de São Paulo. O seu trabalho resulta da estreita relação que constrói com aqueles que retrata. A primeira obra Falta-me, surge em 2005, seguindo-se a trilogia de curtas-metragens Fim-de-semana, Um dia Frio e Luz da Manhã. Em 2016 estreia a primeira longa-metragem Ama-San, que acompanha a vida de três mergulhadoras japonesas e que lhe valeu uma série de prémios em vários festivais de cinema, Amor Fati (2020), o seu filme mais recente, retrata pares que se completam. Na sua obra, a realizadora, procura esbater a fronteira entre documentário e ficção, revelando através do seu olhar pessoas e vivências reais.

Sugestão: Ama-San acompanha a vida de três mulheres japonesas que perpetuam uma atividade milenar, mergulhando sem auxílio de qualquer tipo de equipamento para apanhar marisco. Num país onde a figura feminina é a gueixa, subalterna, submissa, as Ama-San ganharam um poder, subvertendo a posição da mulher.

Sally Potter

©Nacho Gallego, EFE, Alamy Live News

A cineasta inglesa Sally Potter é uma mulher das artes. Realizou curtas experimentais, foi dançarina e coreógrafa, trabalhou como atriz, diretora teatral, participou em várias bandas musicais como cantora e compositora. A carreira cinematográfica começou a ganhar força com a curta Thriller (1979), que fez furor no circuito dos festivais de cinema da época. Seguiu-se The Gold Diggers (1983), uma obra feminista e vanguardista. Em 1992 a estreia de Orlando, uma adaptação do romance homónimo de Virgínia Wolf protagonizada por Tilda Swinton, é aclamada pela crítica, dando a conhecer a obra de Potter a um público mais vasto. Posteriormente continua a trabalhar com elencos de luxo, abordando nos seus filmes temáticas controversas e atuais. A Festa (2017), comédia mordaz, é um excelente exemplo desse percurso. Potter regressou aos filmes em 2020 com The Roads Not Taken.

Sugestão: Orlando, uma viagem através dos séculos onde a personagem, Orlando, vive durante 400 anos, entre o início do século XVI e o século XX, atravessando a História de Inglaterra. Orlando, homem durante parte do filme, muda de sexo e transforma-se numa mulher mantendo intacto o seu caráter. Género, identidade sexual e a posição da mulher numa sociedade patriarcal são questões centrais no filme, baseado no romance homónimo de Virginia Woolf.

Teresa Villaverde

©Mario Cruz, LUSA

Teresa Villaverde é um dos nomes mais importantes da geração de realizadores portugueses da década de 90, motivo pelo qual, em 2019, o Centro Pompidou em Paris lhe dedicou uma retrospetiva que apresentava a visão de “uma artista global”. Realizadora, argumentista e produtora, criou uma obra muito pessoal onde as temáticas da infância e adolescência, do crescimento e inadaptação são frequentemente abordadas. O primeiro filme aconteceu em 1991, A Idade Maior, um retrato de Portugal assombrado pela Guerra Colonial. Com o segundo trabalho, Três Irmãos, uma crónica sobre o cruel sofrimento de uma jovem mulher, a protagonista Maria de Medeiros vence o prémio de Melhor Atriz no Festival de Veneza. Seguem-se, entre outros, Os Mutantes (1998) e Transe (2006). No Festival de Berlim estreou Colo (2017), onde regressa à família, à adolescência e a Portugal, país que retrata com grande autenticidade.

Sugestão: Transe segue uma jovem mulher que abandona a família na Rússia, em busca de uma vida melhor. Uma viagem que a leva à República Checa, à Alemanha, a Itália e que termina em Portugal. Uma descida ao inferno, onde medo e violência são uma constante. Um retrato da imigração oriunda dos países de leste, personificada por uma mulher que, apesar de tudo, mantém a coragem para encontrar dignidade.

Noami Kawase

©KUMIE Inc.

A cineasta Noami Kawase tem uma longa carreira no Japão e é igualmente reconhecida no estrangeiro pelos seus documentários e filmes de ficção. Já integrou o júri no Festival de Cannes e em 2010 fundou o Nara International Film Festival. A sua filmografia assenta recorrentemente nas relações familiares e na maternidade, tema que lhe é pessoalmente próximo, enquanto filha adotiva. O seu mais recente filme, As Verdadeiras Mães (2020), centra-se precisamente no tema da adoção. A carreira de Kawase teve início nos anos de 1990 com uma série de documentários autobiográficos. A primeira ficção, Moe no suzaku (1997), valeu-lhe a Câmara de Ouro no Festival de Cannes e o título de cineasta mais jovem a receber este prémio. Mogari (2007), uma obra sobre o luto, onde a natureza é a protagonista de um formidável trabalho de som e fotografia, arrecadou o Grande Prémio do Júri, também em Cannes.

Sugestão: As Verdadeiras Mães, a mais recente obra da cineasta retrata a adoção de uma criança, revelando a posição da mãe adotiva e da mãe biológica e o conflito que daí resulta. À semelhança de outros filmes, as personagens principais desta história comovente são femininas e as escolhas que fazem são também o espelho da sua condição enquanto mulheres.

Rita Azevedo Gomes

©Humberto Mouco/CML-ACL

O percurso de Rita Azevedo Gomes está ligado de diferentes formas às artes visuais. Estudou Belas Artes, esteve envolvida em projetos de teatro, ópera, artes plásticas e cinema, e desenvolveu, com grande reconhecimento, trabalhos gráficos em diversas edições de cinema da Cinemateca e da Fundação Calouste Gulbenkian. Na área do Cinema colaborou, entre outros, com Manoel de Oliveira, João Bénard da Costa, Noronha da Costa e Valeria Sarmiento. Realizou o primeiro filme em 1990, O Som da Terra a Tremer, centrado na personagem de um escritor que não escreve, interpretado pelo músico José Mário Branco (que 28 anos depois compôs a banda sonora de A Portuguesa). As obras literárias são para a realizadora o ponto de partida para muitos dos seus filmes, que não deixam, no entanto, de transmitir uma visão pessoal e independente. A Vingança de Uma Mulher (2011), Correspondências (2016) e A Portuguesa (2018) são alguns dos exemplos dessa individualidade.

Sugestão: A Portuguesa baseado numa novela de Robert Musil, tem adaptação cinematográfica de Agustina Bessa-Luís. A narrativa decorre durante o séc. XVI, no Norte de Itália, rente à assinatura de paz do Concílio de Trento, e retrata a estranha união entre uma enigmática Portuguesa e o seu marido, von Ketten, um nobre de ascendência germânica. A mulher, estrangeira na sua nova terra, é a figura central: uma personagem perspicaz e progressista.