Joaquim Oliveira Caetano

Alvaro Pirez d'Évora no MNAA

Joaquim Oliveira Caetano

O antigo conservador da coleção de pintura do Museu Nacional de Arte Antiga, Joaquim Oliveira Caetano, assumiu o cargo de diretor daquele museu em junho de 2019. Antes, exerceu funções na Biblioteca Nacional de Portugal e no Museu de Évora, hoje Museu Nacional de Frei Manuel do Cenáculo, onde foi também diretor. A par de Lorenzo Sbaraglio, é comissário da exposição Alvaro Pirez d'Évora, Um Pintor Português em Itália nas Vésperas do Renascimento, a maior de sempre dedicada ao pintor e que ficará patente no MNAA até 15 de março.

Alvaro Pirez d’Évora é uma dos mais antigos pintores portugueses de que há conhecimento?

É um dos mais antigos e é o primeiro de que existe obra conhecida. Alvaro Pirez está documentado em Itália, na zona da Toscânia, nomeadamente em quatro cidades à volta de Florença: Pisa, Luca, Prato e Volterra. Não é só o primeiro pintor com obra conhecida, é também uma das primeiras personalidades portuguesas com impacto na cultura europeia. Antes temos um papa e um Santo António, mas, no que respeita à cultura visual, o Alvaro Pirez é, de certeza, o primeiro português a ter um impacto relevante numa época e num local em que essa cultura é de uma efervescência enorme, já que estamos a assistir ao início do Renascimento.

A formação dele terá sido já feita em Itália ou anteriormente?

Não se conhece nada dele em Portugal antes dessa altura. E em Itália, embora ele só esteja documentado a partir de 1410, pensa-se que já lá estaria desde o início do século XV, desde os primeiros anos. Nessa época, praticamente não existia escola de pintura em Portugal. O rei contemporâneo de Alvaro Pirez era o D. João I, que é o primeiro rei a ter pintores ao seu serviço, entre os quais, curiosamente António Florentim, um italiano que vem para cá na mesma altura que Alvaro Pirez vai para lá. O mais provável é que, se Alvaro Pirez já tivesse ido para Itália com uma formação como pintor, ela tivesse sido feita em Espanha, onde existiam grupos de pintores, inclusive italianos, como o Gerard Starnina, que influencia muito o estilo do Alvaro Pirez. Mas tendo em conta que as primeiras obras do Alvaro Pirez têm um estilo menos elegante, mais rígido e mais próprio da pintura de Pisa, com figuras mais monolíticas que parecem maciços escultóricos e com linhas mais retas, dá ideia de que ele possa ter tido uma aprendizagem precisamente em Pisa. Algo que caracteriza muito a pintura de Alvaro Pirez é a forma extremamente imaginativa, diversificada e rica como ele trabalha o puncionamento do ouro, e, por essa razão, houve quem apontasse a ideia dele ter ido daqui não com formação em pintura, mas com uma formação de ourives, que essa, sim, era uma arte bastante mais desenvolvida em Portugal na altura.

No retábulo da igreja de Santa Croce de Fossabanda, o pintor assinou como Álvaro Pirez d’Évora. Como foi comprovada essa origem?

Se ele o diz e foi ele que escreveu, temos que acreditar. É, de facto, a única referência a Évora que se conhece do Alvaro Pirez. Hoje em dia conhecem-se três obras assinadas pelo Alvaro Pirez, embora se saiba, por relatos antigos, que outros três conjuntos estão também assinados. Em todos, ele assina ou em italiano ou em latim, como no retábulo de Volterra, que é uma das peças que está nesta exposição. Esta obra de Fossabanda é a única em que ele assina em português, o que levou Reinaldo dos Santos, que viu a obra em 1921 e a publicou no ano seguinte, a considerar que seria uma das primeiras obras assinadas do Alvaro Pirez, dado que ali assinava em português e depois passou a assinar em italiano e em latim. Mas o que a crítica hoje considera, de uma forma mais ou menos unânime, e esta exposição mostra isso de uma forma cabal, é que essa obra do Alvaro Pirez é de tal forma evoluída e requintada que não podia ser uma das suas primeiras obras, mas sim uma das obras da sua fase madura. Por alguma razão, ou de sentimentalismo ou de imposição do mecenas, ele resolveu inscrever Alvaro Pirez d’Évora na pintura de uma forma tão visível que dá a ideia de que ele quis verdadeiramente assumir a sua nacionalidade e a sua proveniência.

Esta obra, que se encontra na igreja de Santa Croce de Fossabanda, em Pisa, é a única em que Alvaro Pirez assina em português.

 

As poucas mais de 50 obras do pintor que chegaram aos nossos dias pertencem ao período 1410-1434 em que trabalhou na Toscana, ou sabe-se de alguma obra que tenha sido criada fora desse período?

Nesta exposição recuámos um pouco a cronologia do Alvaro Pirez para o início do século XV. Ele deve ter estado em Itália, pelo menos, desde a primeira década do século XV até 1434 e certamente não morreu logo a seguir a fazer o retábulo, por isso é provável que a sua obra tenha continuado durante mais algum tempo. Há três obras muito parecidas, sendo uma delas aquela que foi comprada pelo Museu de Évora no início deste milénio. Até há muito pouco tempo a crítica datava-a de 1410, mas hoje pensa-se que tenha sido pintada entre 1400 e 1405 porque reflete, exatamente, esse estilo mais monolítico, mais pisano, que o Alvaro Pirez vai depois abandonar para dar início a uma pintura mais requintada e cada vez mais elegante.

Esta exposição enquadra-o nos grandes pintores toscanos do seu tempo. Em que é que a sua obra se distingue dos seus contemporâneos?

Essa pergunta é muito curiosa porque, vendo de fora, temos tendência a considerá-lo um típico pintor da Toscânia do gótico final. No movimento cultural desta época há uma geração de pintores novos que está a iniciar o Renascimento, enquanto uma outra geração continua a trabalhar dentro do mais refinado gótico final, que está no auge da sua pujança. A crítica italiana antiga e contemporânea tende a reconhecer sempre nas obras de Alvaro Pirez um exotismo que lhe advém do seu passado cultural na Península Ibérica e em Portugal. Alvaro Pirez tendia a pintar as suas virgens com os panejamentos à volta da cabeça em forma de turbante e a colocá-las sentadas no chão, em almofadões, com gosto pela joalharia. O pintor português utilizava cores intensas, jogando com cores opostas lado a lado, o que dão um carácter de individualização, sem perder essa essência de pintor italiano da Toscânia.

Onde se podem encontrar obras do pintor em Portugal?

Antes da exposição de 1994 não existia nenhuma. Mais tarde, quando eu era diretor do Museu de Évora, comprou-se uma obra que foi a primeira dele numa coleção pública portuguesa. Há dois anos, o Museu Nacional de Arte Antiga comprou outra, A Anunciação. Para além destas, há mais duas em coleções particulares, sendo que uma delas se encontra em depósito neste museu.

Qual considera ser a importância desta exposição em Portugal?

Esta é uma exposição que nos devia encher a todos de orgulho, porque mostra a importância de um dos primeiros portugueses a situar-se num contexto cultural internacional. A obra deste pintor está muito fragmentada e, pela primeira vez, temos a oportunidade de conhecer o grosso do seu trabalho, já que está aqui exposta mais de metade da sua obra conhecida, que anda à volta das 60 pinturas. Nas próximas décadas, dificilmente se fará outra exposição sobre Álvaro Pires com esta grandeza, onde estão reunidas peças vindas de oito países e de 40 emprestadores diferentes.

Quais são os principais desafios em dirigir o mais importante museu de arte do país num contexto económico-financeiro difícil?

Neste contexto, o mais difícil é, sem dúvida nenhuma, conseguir obter e adequar os meios que um museu necessita à missão que o museu tem em apresentar-se como uma instituição cultural de referência em Portugal, quer ao nível de recursos humanos, que são cada vez mais escassos, quer ao nível da crónica suborçamentação, quer mesmo ao nível da dignificação dos espaços. Até no seu próprio espaço o museu necessita de crescer, necessita que haja um projeto que o prepare para o século XXI. Aqui no MNAA é preciso que, nestes próximos anos, se faça o esforço necessário para ser corrigido o que têm sido décadas de suborçamentação e de sangria de recursos humanos e financeiros e dar, de uma vez por todas, a dignidade de grande museu de referência que o MNAA deve ter.

Falou em recursos humanos: pensa que a falta de técnicos qualificados de manutenção e restauro é um dos principais problemas?

Esse é, de facto, um dos problemas, mas não é o maior. Neste momento o maior problema é a chegada à reforma, nos últimos anos, de uma grande quantidade de conservadores das coleções, sem que haja substitutos para os mesmos. Os conservadores devem ter um conhecimento profundíssimo das suas coleções, que são já de si muito diversificadas, e por isso era imperativo que os substitutos dos que agora se reformam já estivessem no ativo para que pudessem ser formados entretanto. Se não houver mudanças significativas nesta área, o museu deixa de poder cumprir o seu papel.