entrevista
Joana Espadinha
"Quando tentamos desviar-nos daquilo que somos, dá-se um curto-circuito porque ‘o material tem sempre razão’"
É uma voz forte na nova pop nacional. Embora muitos a conheçam pela sua participação na edição de 2018 do Festival da Canção, Joana Espadinha iniciou o seu percurso há muito tempo. Depois da desilusão com o Direito, foi na Música que encontrou o rumo. A 30 de outubro, leva o segundo disco, O material tem sempre razão, ao palco do Teatro Villaret, tendo ao lado convidados especiais, como Luísa Sobral e Samuel Úria.
O teu primeiro disco, Avesso, saiu em 2014, mas foi com o mais recente O material tem sempre razão (2018) que caíste nas bocas do mundo. Que relação tens com o primeiro disco?
É a relação que se tem com um primeiro filho, com o qual se comete todos os erros [risos]. Tenho muito carinho pelas canções desse disco, mas eu era outra compositora na altura. Vinha muito da composição jazzística, não sabia muito sobre produção musical. Fui eu que fiz os arranjos e que produzi, pelo que acaba por ser um disco mais acústico. O segundo disco é muito diferente… Começa logo no facto de ter contratado um produtor [Benjamim]. Teve uma produção muito mais cuidada, as canções foram pensadas de forma diferente. Mesmo o tipo de canções é muito diferente. As do primeiro disco tinham mais partes, quase como se fosse música para filme; não tinham propriamente um refrão. Neste, procurei fazer canções mais universais e que não tivessem pontas soltas, só mesmo o que a canção precisava.
Há muito tempo que querias trabalhar com o Benjamim. Foi difícil ‘conquistá-lo’?
Convidei-o a assistir a um concerto meu no Popular Alvalade. Cantei muitas canções em inglês e algumas (poucas) em português. Na altura estava a fazer música mais indie rock, influenciada pela Angel Olsen e pela Melody’s Echo Chamber e nem sequer me apercebi que ninguém precisa de mais uma Angel Olsen e que, expressando-me em português, acabo por me tornar mais original. Ele foi ver o concerto, gostou muito, e combinámos um café para ver se fazia sentido ele produzir o disco. Entrou logo a matar e disse que achava que eu devia cantar em português. O que me levou a dar esse passo foi o facto de ter uma canção em português de que eu gostava muito e que poderia até vir a ser um single, mas que nunca chegou a ser (Vai ser melhor). Na altura fiquei um bocadinho deprimida e disse-lhe que ia pensar. Ele deu a entender que se eu não o fizesse, não trabalharia comigo. A partir daí passei uns meses a escrever canções, comecando do zero. Quando voltei a ligar ao Benjamim, ele ficou muito admirado por eu ter seguido o conselho dele. Gostou das canções que lhe enviei e começámos a trabalhar.
Foi difícil passar a escrever em português?
Para dizer a verdade, não. Sempre escrevi em português, mas as canções que escrevia em português seguiam uma lógica mais tradicional, ligada ao fado, não eram tanto a típica canção pop. Eu não sabia escrever canções pop em português, porque as letras têm de ser mais simples, com o limite se saber até onde funciona a simplicidade e até onde passa a ser falta de imaginação. Foi um desafio adaptar a minha linguagem à pop, mas deu-me muito gozo descobri-la. De resto, sempre escrevi poemas em português.
O material tem sempre razão dá nome ao teu segundo disco. É uma expressão que foste buscar ao teu pai…
Gosto muito da frase. Sendo uma expressão simplista, pode ser aplicada a vários contextos. Dou aulas de canto, e uma coisa que digo muitas vezes é que não é suposto haver dor ou esforço quando cantamos. Se dói, é porque alguma coisa está errada, porque ‘o material tem sempre razão’. É uma expressão que também uso quando estou a ensinar. Acabei por levar isto para o que tem sido o meu percurso artístico, para o que tem sido perceber como funciona esta indústria e como é que podemos continuar fiéis a nós próprios e, ao mesmo tempo, chegar ao público. Fiz o primeiro disco e andei a compor compulsivamente. Compus algumas coisas que depois não consegui cantar. Pensei “se quiser seguir por este caminho se calhar vou ter mais notoriedade”. Tinha potencial de chegar a meios mais generalistas, mas não o consegui fazer…
Não te identificavas com isso?
Exato. Quando tentamos desviar-nos daquilo que somos, há um curto-circuito porque, lá está, ‘o material tem sempre razão’. Há uma canção no álbum que fala disto, e a certa altura pensei que fazia sentido usar esta expressão para dar o nome ao disco.
Algumas músicas deste disco têm um lado muito anos 80, algumas delas fazem até lembrar a Lena d’Água. É uma sonoridade com que te identificas?
Foi uma descoberta. Tinha muito mais o rock dos anos 90 (Alanis Morrisette, Sheryl Crow…) como referência, depois veio o jazz… Obviamente que conheço a Lena d’Água e sou grande fã dela. Quando me comparam à Lena d’Água isso é um grande elogio. Mas somos pessoas diferentes, e às vezes os rótulos podem ser perigosos porque metemos a pessoa numa caixa e não conseguimos ver para além disso. A estética deste disco foi um bocadinho uma exploração. O Benjamim domina o vocabulário das várias épocas. Costumamos dizer que o disco é de 1979, porque algumas canções têm um lado muito de final dos anos 70 e os singles são assumidamente mais anos 80. Acho que é uma mistura…
Também há uma piscadela de olho aos Beatles (em Mais uma Estrada)…
Sim, no final da canção. Foi o Benjamim que insistiu para ficar assim. Eu disse-lhe: “depois vão dizer que plagiei os Beatles” [risos], mas ele achou que era um tributo bonito.
Este disco tem passado por várias salas (lisboetas) e não só, e sobe agora ao palco do Villaret. Como tem sido a reação do público?
Tem sido muito boa. É sempre surpreendente para mim ouvir as pessoas cantarem as minhas canções. É uma sensação maravilhosa ver que as canções deixam de ser minhas e passam a ser das pessoas. Há quem só conheça os singles, e isso também é um desafio: fazer o concerto, ir contando um bocadinho da minha história e criar uma ligação com o público. O mais surpreendente é aparecerem crianças no final do concerto com o disco para assinar, e os pais dizerem-me que os filhos cantam imenso as minhas canções. Acho isso incrível.
O ano passado participaste no Festival da Canção com um tema do Benjaim, Zero a Zero, o que te trouxe mais mediatismo. Como avalias essa experiência?
O festival é, em primeiro lugar, um programa de televisão bastante mediático. Há muita gente que me conhece por causa da minha participação no festival, com tudo o que tem de bom e de mau. A vantagem deste novo formato é que se tornou muito mais eclético e estamos a dar acesso às pessoas ao que se está a fazer na música portuguesa mais alternativa. Houve pessoas que passaram a conhecer o meu trabalho e ficaram fãs, outras nem por isso. Para mim foi uma prova de fogo. Não fazia concertos há algum tempo porque tinha estado a preparar o disco, e fui logo parar a um programa com esta exposição toda. Foi um desafio importante conseguir estar à frente de uma câmara, cantar com segurança e defender a canção do Benjamim. Foram mais as vantagens do que as desvantagens, mas tive alguma dificuldade a lidar com os haters, aquelas pessoas que vão para as redes sociais destilar ódio, mas isso faz parte. Não podemos agradar a todos…
O teu percurso académico começa no jazz. Como se deu essa passagem para a pop?
Comecei por ir estudar Direito para a Universidade Nova de Lisboa. Na verdade, queria ser jornalista porque sempre gostei de escrever e fui um bocadinho ao engano para Direito… Cheguei a uma fase de alguma frustração e foi isso que me fez procurar algo extremo. Acabei por ir para o Hot Clube porque, ou ia para uma vertente mais clássica (que era muito distante do que queria fazer), ou ia para o jazz. Além disso, queria muito aprender com a Maria João (que na altura já não dava aulas lá, mas eu não sabia) e com a Paula Oliveira. Inscrevi-me então no Hot Clube, e conciliava com a faculdade. Andava sempre de um lado para o outro, mas muito mais entusiasmada… até na faculdade ganhei outro ‘boost’. Mergulhei no jazz, depois fui para o conservatório de Amesterdão a reboque de alguns músicos meus colegas no Hot Clube. Foi uma experiência de vida importante. Foi aí que comecei a escrever música a sério, mas ainda numa lógica mais jazzística. Depois comecei a seguir o caminho das canções. Quando comecei a escrever, percebi que aquelas canções não eram jazz. Já não fazia sentido ter solo, ou ser tão acústico. Eram canções pop, que precisavam de uma roupagem pop.
Para além do teu projeto a solo e de dares aulas, participas regularmente noutros projetos (como os Happy Mess ou Cassete Pirata) e escreves para outros artistas. Como consegues conciliar tudo?
É uma loucura [risos]. Depende das fases. Há alturas em que é mais tranquilo porque há menos concertos. É mais complicado quando de repente tenho aulas, concertos, quando preciso de tempo para compor. Quando não tenho tempo para compor começo a ficar mais nervosa. Até agora ainda não houve grandes choques nos concertos de Cassete Pirata e de Happy Mess. Ainda não houve nenhum conflito de calendário.
Vais ter convidados especiais no concerto de 30 de outubro?
Este concerto pretende ser uma celebração do ano que passou e dos concertos que temos feito. Chegou a altura de começar a preparar o próximo disco, mas já teremos uma ou outra canção nova. Os convidados são pessoas que estão ligadas a este projeto: o Benjamim, porque além de produtor do disco, é um amigo; o Samuel Úria (que logo no início escreveu um artigo sobre o Leva-me a Dançar, que me deu uma confiança que foi importante), e por fim, a Luísa Sobral. Conheço-a há anos, mas nunca trabalhámos juntas. Estou muito entusiasmada.
O que se segue?
A verdade é que isto passa a correr, o disco já fez um ano por isso está na altura de lançar mãos ao trabalho. Ainda não compus o disco todo, mas gosto sempre de ter canções a mais para escolher depois as que são mais fortes. Estou nesse processo, preciso de tempo para isso. Em paralelo, tenho escrito para vários artistas. A artista que foi mais decisiva, o ano passado, foi a Carminho. Temos uma história muito engraçada: há uns anos mandei-lhe uma canção [O Menino e a Cidade] por email; ela, muito educadamente, respondeu a dizer que tinha gostado muito da canção, mas não sabia quando é que faria sentido gravá-la e pedia-me que esperasse. Eu assim fiz e fui-lhe mandando outras coisas. Um dia ela chamou-me e conversámos imenso. Ela respeita muito o trabalho do compositor e é muito honesta. Um músico pode gostar muito de uma canção e depois, no contexto de um disco, não fazer sentido. Entendo isso perfeitamente, mas as canções são como filhos, e também custa quando não sabemos o que lhes vai acontecer. Tenho imenso orgulho que ela tenha gravado a minha canção, porque sou uma grande fã. Também já compus para a Elisa Rodrigues, de quem gosto bastante, e que gravou duas canções minhas. Escrevi para a Marta Hugon, a Sofia Vitória, a Cláudia Pascoal… Ainda há mais alguns artistas, mas não posso anunciar para já. Divirto-me imenso a escrever para outros porque me permite ter várias vidas, sem ser eu a assumir todas as personagens.