itinerário literário
Lisboa e o Cachimbo de David Mourão-Ferreira
Um percurso inspirado no conto "O Cachimbo do Santo"
Considerado como um dos poetas do erotismo na literatura portuguesa, David Mourão-Ferreira demonstrou domínio notável na arte do conto e escreveu um romance que o consagrou como ficcionista (Um Amor Feliz, Grande Prémio de Romance da APE 1987). A toda a sua obra, não esquecendo os poemas para fados, que escreveu para a voz imortal de Amália Rodrigues (Maria Lisboa, Madrugada de Alfama, Nome de Rua) a cidade de Lisboa proporcionou uma inspiração permanente. O conto O Cachimbo do Santo, incluído na colecção Roteiro Literário – Duas Histórias de Lisboa, é uma narrativa, onde com fina ironia, o autor se ficciona (se auto-parodia?) desenvolvendo com mestria alguns dos seus temas habituais: o erotismo, a vivência do tempo e da cidade, a inacessibilidade da mulher.
Adrião Quintas, o protagonista do conto é contratado, “nesses tempos em que a televisão aqui principiava a tremeluzir e rumorejar” [finais dos anos 1950 ] , pela RTP. Cabe-lhe apresentar um programa de música ligeira, entrevistando “uma vez por semana, em jeito de sobremesa ao telejornal, aqueles ‘ídolos da canção’ que se viam proclamados como ‘reis’ ou ‘rainhas da rádio’, que cerca de quinze anos mais tarde seriam arrastados na lama como ‘nacionais cançonetistas’ e que já hoje se encontram, muitos deles, sob a revivalista legenda de ‘grandes românticos’ em acelerado processo de reabilitação”. Segundo algumas “línguas despeitadas”, na escolha de Adrião para a apresentação do programa teria contribuído a circunstância de fumar cachimbo e de o fazer com “tanta pompa e solenidade”. Importa salientar que, tal como o personagem principal desta narrativa, também David Mourão-Ferreira fumava cachimbo e foi autor de programas de televisão para a RTP, de que se destacam Poetas de Hoje e de Sempre ou Imagens da Poesia Europeia.
O primeiro sintoma da popularidade do programa televisivo de Adrião revela-se numa tarde em que ao descer a pé a Rodrigo da Fonseca, “duas catraias do Maria Amália, ambas de bata branca, espevitadamente o abordaram para lhe pedirem autógrafos”. Uma das alunas do liceu “alta e ossuda mas ainda mal escorada, a rondar os dezassete anos ou mesmo os dezoito de repente sem complexos, ficou-lhe gravada na memória durantes noites e noites pela pestanuda e sorna insistência com que o fitou, continuamente deixando entrever, na ranhura dos beiços, a ponta de uma língua muito rosada”.
Como efeito da popularidade proporcionada pela televisão, por vezes senhoras perfeitamente desconhecidas cumprimentavam-no com familiaridade, “como se o tivessem tido na véspera a jantar lá em casa”. Ao darem pelo engano mostravam constrangimento e, em certos casos, mesmo irritação. “ Mas houve uma, viva e toda janota, a sair da Bénard ao fim da tarde, que não se mostrou comprometida, nem de leve, quando reparou no logro de lhe ter lançado um desinibido ‘olá!’ a que ele afinal não tinha direito. Pareceu, pelo contrário, saborear o próprio equívoco; e, por instantes estacando à beira do passeio, encarou de frente o Adrião Quintas com o pisco desplante de uns atrevidos olhos míopes: Ah!… Afinal é bastante melhor que na televisão”. Depois desta súbita visão o chiado afigurou-se-lhe “a mais emocionante, a mais imprevisível entre as artérias de todas as capitais”.
Adrião mantem uma relação com Maria do Socorro que conheceu há dois anos numa segunda matinée do cinema Monumental. Os pais do ex-marido de Maria do Socorro moram dois andares mais acima, no mesmo prédio da Avenida de Paris. Para evitar mexericos e “salvar as aparências”, evitando comprometê-la ainda mais depois do escândalo que originou o divórcio, os amantes encontram-se sempre na presença de Dona Guiomar, mãe de Socorro, fingindo que colaboram num trabalho de tradução e que a respeitável senhora fica “a fazer-lhes companhia”.
Adrião reside em casa do Tio Afonso no “segundo andar de um prediozito da Camilo Castelo Branco”. Numa tarde de domingo, aproveitando a ausência simultânea do tio e de sua criada, “a Rosa Beiçuda- como pelas costas lhe chamavam”, Maria do Socorro dá uma escapadela ao apartamento. Aí, mostra-se espantada com a quantidade de livros que preenchem as estantes da sala. “Mas foi mesmo entre as estantes carregadas de livros que o sacrifício se consumou. (Na cama dele não convinha, já que a Beiçuda – também buçuda – logo daria pelos estragos.) E ali, em cima do tapete de Arraiolos havia campo mais que satisfatório. As flores do tapete não tomaram expressões de pânico. As pernas da mesa de trabalho, onde o tio Afonso, empilhava as fichas, mostravam-se valentemente robustas: não tremeriam de infundados pavores.”
Adrião vai entrevistar a cantora Iolanda Nunes no seu programa televisivo. Ela convida-o para jantar na sua casa no quarto andar, sem elevador, da Rua dos Lusíadas, com o objectivo de ensaiarem as perguntas. Entretanto, informa-o: “Como sabe, vivo só. E não tenho satisfações a dar a ninguém”. “Por sua vez Adrião mal acreditava no que lhe estava a acontecer. Durante uns dois anos tinha-se habituado a colocar a Iolanda mais os seus EP na irremediável categoria dos objectos chatos e inapetecíveis. E, de repente, aquela voz de veludo escuro, aquela promessa de jantarinho à luz das velas…”
“A delicadeza a distinção com que fuma cacimbo” torna-se num elemento integrante do charme pessoal de Adrião. Nos programas televisivos “até lhe captavam ‘grandes planos’ das mãos convenientemente ocupadas pelos caprichos e exigências do cachimbo: agarra, acende, retira, pousa; retoma, palpa, leva à boca e vá de riscar mais um fosforo”. Recebe frequentes chamadas telefónicas de admiradoras, “rara, de qualquer modo a que não lhe falasse do cachimbo”. Diferente de todas elas, foi o estranho telefonema que recebeu por altura dos Santos populares: Maria dos Prazeres, uma velhinha bem-educada, convida-o a tomar um chazinho em sua casa, para os lados de Santa Clara, ao pé da Feira da Ladra. Tendo visto “o cuidadinho” que Adrião põe nos seus cachimbos e “como gosta de os coleccionar”, promete oferecer-lhe uma relíquia que tem lá em casa: o cachimbo de um santo.
O grande luxo da salinha da casa de Maria dos Prazeres “era o aparelho de televisão, entroncado e façanhudo (…). Pelas paredes, só imagens de santos, de diversos formatos, mas como que pastoreados pela efigie, em maiores dimensões, de Sua Santidade o Papa Pio XII. Nos cantos do tecto uns arabescos de estuque, bem caiadinhos, como tudo o resto, em tons de salmão desmaiado”. Porém, Adrião sentiu-se atraído, em primeiro lugar, “pela visão dessa varanda com que o tejo tão de perto dialogava”. Maria dos Prazeres vendo que Adrião “gostou tanto da vistazinha desta varanda”, confessa: “Que a mim, digo sempre isto, quem me tira este rio tira-me tudo!”