E se a menina Júlia encontrasse a felicidade…

"Um outro fim para a Menina Júlia" no Teatro Nacional D. Maria II

E se a menina Júlia encontrasse a felicidade…

Afinal, a menina Júlia não encontrou a morte, mas a felicidade. Mais de 30 anos depois daquela noite de São João que nenhum amante de teatro poderá esquecer, eis-nos perante o improvável reencontro com as personagens de Strindberg. Tiago Rodrigues imaginou Um outro fim para a Menina Júlia, e nele Júlia e João estão casados, gerem um pequeno hotel, e experimentam ser felizes por entre pilhas de guardanapos, um copo de vinho e finas lascas de presunto.

Enquanto dobra metodicamente os guardanapos que hão-de ser dispostos nas mesas dos hóspedes desse Pequeno Hotel do Lago que gere com o marido, Júlia (Paula Mora) continua a revelar a altivez que lhe reconhecíamos daquela noite de São João, há mais de 30 anos, quando seduziu o criado João. É uma anfitriã calorosa que encontramos, zelosa das suas muitas certezas e prontamente disponível para dar conta de qualquer situação. Que o diga João (Manuel Coelho), homem que os anos volvidos não nos permitem reconhecer de imediato, mas que enaltece a cada momento a felicidade conjugal que encontraram, logo após uma fuga a dois em que sonhos mais altos ousaram romper convenções.

Este não era, de modo algum, o final que August Strindberg projetara para a menina Júlia, já que a didascália final deixava adivinhar o suicídio. Mas Tiago Rodrigues descobriu um caminho para a felicidade do casal de amantes e deu-lhes um futuro. Júlia e João podem não ter cumprido todos os sonhos e promessas que fizeram na embriaguez do desejo, mas tornaram-se um casal com filhos já crescidos, a gerir o seu negócio, não debruçados na elegância do Lago de Como, mas numa aldeia a alguns quilómetros de um outro lago, com certeza não tão afamado.

Parecem, de facto, felizes enquanto ouvem música, experimentam os vinhos da casa e provam um bom presunto. Felicidade que partilham com o público e que talvez nada possa ensombrar. A não ser que, ao final da noite, uma certa hóspede bata à porta: é Cristina (Lúcia Maria), a serviçal da casa paterna de Júlia e noiva de João à data daquela noite de São João.

Inês Dias e Paula Mora interpretam a menina Júlia.

 

Chega então o momento de reviver o passado. Júlia (Inês Dias), João (Vicente Wallenstein) e Cristina (Helena Caldeira) voltam a ser as jovens personagens de Strindberg, numa espécie de “voo rasante, versão condensada de Menina Júlia” (a tradução escolhida é a de Augusto Sobral). Mais do que um tributo à obra original – “peça que sempre me intrigou, apesar de nunca a ter considerado particularmente fascinante”, ressalva Rodrigues –, a coexistência em cena das personagens no passado e no presente vai expor a fragilidade dessa rara condição de ser feliz.

A peça questiona se a felicidade de Júlia (Paula Mora) foi roubada a Cristina (Helena Caldeira).

 

E será mesmo felicidade aquilo que Júlia e João encontraram quando decidiram fugir e casar? Não terá sido essa felicidade roubada por Júlia a Cristina, essa mulher que foi “vítima do desejo dos outros, a pessoa banal que é simultaneamente a personagem que nunca ninguém sabe o nome sempre que falamos de Menina Júlia”?

Tiago Rodrigues joga habilmente com estas questões para criar o drama. Ao abdicar da tragédia colocando as personagens de Strindberg “a negociarem com a vida e a fazerem as suas escolhas”, não as redime, mas dá-lhes a existência que, provavelmente, cada uma delas fez por merecer. Mesmo que a felicidade de uns tenha sido furtada ao destino de outros.