Selma Uamusse

"Percebi que era urgente fazer música porque as pessoas precisavam disso"

Selma Uamusse

Vem do gospel, mas já trabalhou com nomes tão diferentes como Samuel Úria, Rodrigo Leão ou WrayGunn, para citar apenas alguns. Em março, a camaleónica Selma Uamusse apresenta, finalmente, o seu primeiro a disco a solo – Mati – em concerto, no LuxFrágil.

Nasceste em Moçambique e com seis anos vieste para Portugal. Como foi a tua adaptação?

O meu pai estava a estudar na Alemanha, a minha mãe estava em Moçambique farta de estar longe dele. Eu tinha acabado de entrar para a escola, então eles decidiram que se iriam encontrar a meio caminho, foi por isso que vieram para Portugal. No princípio foi um bocadinho doloroso por uma questão climatérica. Viemos para cá em novembro, era verão em Moçambique. Nos primeiros meses ficámos em casa de uma amiga dos meus pais que era atriz, o que nos levou a conviver com imensos atores. Foram tempos muito excitantes. Os meus pais sempre estiveram ligados às artes plásticas e ao teatro e eu convivi muito de perto com esse meio.

A tua paixão pela música vem de família?

Acho que só tivemos televisão quando eu tinha uns dez anos, por isso ouvíamos muita rádio. A única pessoa da minha família que estava ligada à música era uma bisavó minha, de quem tenho o nome mas que não cheguei a conhecer. No meio moçambicano é muito normal crescer-se a ouvir música e a dançar, mas isso não faz com que as pessoas sejam bailarinos ou músicos. Há é uma predisposição e uma exposição muito grandes para a música fazer parte da nossa genética.

Em que altura é que a música foi uma escolha?

Cantava sempre nas festas da escola, e lembro-me de umas amigas me aconselharem a concorrer ao Chuva de Estrelas [programa de televisão da SIC, nos anos 90], no ano a seguir à vitória da Sara Tavares. Eu ria-me e achava um disparate. Comecei a cantar num coro de gospel. Um dia, numa festa de aniversário de uma prima,  o maestro Carlos Ançã (Coro Gospel de Lisboa) veio falar comigo porque achou que eu cantava muito bem. Na altura estava a formar um grupo e convidou-me para fazer parte. Só tinha 17 anos, fiquei um bocado reticente mas acabei por ir e fiquei completamente envolvida. Criou-se uma família ali, éramos cerca de 40 vozes. Mais do que um despertar espiritual, deu-se em mim um despertar musical. Nessa altura a televisão pagava aos grupos para irem atuar, e ainda ganhei algum dinheiro nessa fase. Cantava, estava com os meus amigos, ganhava algum dinheiro, mas sempre muito consciente de que queria ser engenheira.

Entretanto surge o projeto WrayGunn…

Um dia recebemos um convite do José Cardoso (manager dos Wraygunn), que queria gravar um disco com um coro de gospel. O maestro da altura, que era um homem conservador, ficou reticente porque achou que era um projeto “do demo” [risos]. Desmistifiquei a ideia e incentivei a que participássemos nas gravações do álbum Eclesiastes. Passado um tempo recebi um telefonema do Pedro Pinto (baterista) a convidar-me para fazer parte da banda. O primeiro ensaio foi horrível, a primeira reunião foi péssima, o primeiro concerto foi detestável, mas entretanto o disco rebentou em França e foi uma experiência incrível em termos de espetáculo.

Em termos logísticos não deve ter sido fácil, uma vez que a banda era de Coimbra…

Eu era conhecida como a “Selma do Expresso”, porque fazia várias coisas ao mesmo tempo e ia a todo o lado. Se tivéssemos um concerto em Braga às 22h, eu era menina para apanhar o primeiro comboio e estar às 9h a cantar na igreja em Lisboa. Era muito nova, não vivia com os meus pais, estava a viver “the time of my life”.

No meio disso ainda havia o curso de Engenharia Civil…

Fiz o meu trabalho de fim de curso em digressão em França com os WrayGunn. Já não fui ao último concerto da tournée, em Itália, porque tive de fazer a defesa do trabalho. Cada vez que parávamos nalgum sítio eu agarrava-me ao computador a trabalhar.

“Mati” é o primeiro album a solo da cantora.

Adaptas-te bem a estilos musicais muito diferentes. Tens uma voz versátil?

O gospel abriu-me as portas e ajudou-me a perceber muito sobre a minha voz. Com os Wraygunn aprendi muito sobre estar em palco, montar espetáculos e andar na estrada. Gravei com os Buraka, com Sean Riley, com a Rita Redshoes, universos muito diferentes. Sempre tive este lado muito camaleónico. Acho que a principal razão não tem a ver com a voz, mas sim com a minha capacidade de adaptação. Trabalho muito no sentido de, sem deixar de ser eu própria, me adaptar ao universo dos outros. Nunca quis ter um percurso a solo, sempre achei que o que eu fazia devia servir a música. Trabalhar com o Rodrigo Leão, por exemplo, é para mim um dos maiores desafios – não em termos vocais – mas sim em gerir quem eu sou musicalmente. A música do Rodrigo é muito particular e a voz é mais um instrumento. Não posso ser um elefante que entra numa loja de porcelana, tenho que ser mais um elemento que ali está, para que a minha voz trabalhe em conjunto com toda aquela pintura. Tem sido um trabalho muito enriquecedor.

Também estudaste jazz no Hot Clube…

O jazz foi muito importante porque a determinada altura senti necessidade de colocar as coisas em caixas. Abriu-me muito os horizontes e fez-me perceber que eu poderia brincar ainda mais com a minha voz de uma forma mais segura, ajudou-me a entender a matemática da música e também me deu a conhecer músicos extraordinários, com quem tenho trabalhado.

Foi difícil largar a Engenharia Civil?

Sempre tive a convicção de que a profissão que escolhesse serviria uma missão. Escolhi o curso de Engenharia Civil porque queria ir para Moçambique fazer parte de uma classe laboral e intelectual que impulsionasse o desenvolvimento do país e não estava a fazê-lo. Sentia que, enquanto engenheira, esse processo seria moroso, extremamente político e muito pouco palpável. Percebi que através da música ia conseguir fazer aquilo que não conseguiria de uma maneira tão eficaz com a engenharia. Comecei a sentir que fazia diferença a quem me ouvia, que era urgente fazer música porque as pessoas precisavam disso.

O facto de teres participado em tantos projetos diferentes dificultou a descoberta da tua própria identidade?

Sim e não. O meu filtro, quando recebia convites, era basicamente perceber se era um projeto de bom gosto, se eu me identificava ou não com ele, e a verdade é que me identificava com muitas coisas. Tanto estava a cantar numa banda de funk como numa de afrobeat ou de jazz.

Em que altura decidiste investir num projeto a solo?

Em 2012, quando fui mãe pela segunda vez, percebi que estava a emprestar a minha voz a muitos projetos, e se queria viver da música tinha que ter um percurso a solo. A grande dificuldade foi perceber qual era o caminho. Facilmente podia ser gospel, rock, afrobeat ou jazz e isso dificultou o processo. Sabia também que queria as raízes de Moçambique presentes, mas a dificuldade foi em saber como misturar tudo. Foi isso que tornou o percurso mais demorado. Comecei por fazê-lo com o Pablo Lapidusas, que conheci no Festival da Conexão Lusófona. Na altura eu vivia em Bruxelas, então fechámo-nos num sótão a partir pedra, a construir canções. Ele tinha um editor moçambicano, fomos gravar no estúdio em Moçambique, mas depois no final, em 2014, tinha um disco que, bem espremido, ainda não era bem aquilo que eu pretendia. No fundo o que eu pretendia era fundir o meu lado africano com o meu lado mais urbano usando os instrumentos tradicionais moçambicanos sem serem usados de uma maneira tradicional, até que cheguei ao Jori Collignon, um holandês que tem estado a trabalhar com outras bandas portuguesas. Sem qualquer tipo de vaidade, o disco ficou o que eu desejava e que eu acho que é o meu som.

Neste disco cantas em changana e chope. Foi difícil tomar essa decisão?

Não falo nenhum dos dialetos moçambicanos. Tive receio que os moçambicanos achassem que não era muito autêntico, mas depois pensei: “em 2016 gravei o Retiro com o Rodrigo Leão em latim. Se gravo coisas em latim, não vou gravar num dialeto meu por medo do que possam pensar?” Tive uns amigos moçambicanos que me incentivaram e depois brincavam comigo a dizer “lá está ela a cantar changana com sotaque ‘tuga’”. Achei isso muito engraçado. Vivo em Portugal há 30 anos, é normal que tenha sotaque português.

Porquê Mati?

Queria muito que o título fosse em chagana, que fosse a marca de uma moçambicana que abraça Portugal como uma segunda nação. Queria um nome simples e fácil de dizer. Depois porque tinha escrito uma canção/oração com esse nome que era uma fusão muito doce de todos os meus universos, a música que representava o disco. Depois porque a água é algo que nos liga a todos, que faz parte do nosso corpo, mas também porque era um nome bonito e especial.

Escolheste o Lux para apresentares este disco. Porquê?

É um sítio com o qual tenho uma relação muito boa, e eu queria fazer o concerto onde me sentisse em casa. Por via do Rodrigo Leão comecei a ter alguns seguidores mais clássicos, que estão habituados a estar sentados em concertos, e eu queria que fosse uma sala em que as pessoas estivessem em pé. Quis encontrar um ambiente que fosse um bocadinho de clube, de dimensão intermédia, onde me sentisse em casa, que fosse um sítio urbano. É um sítio feliz para mim.

O que traz o futuro próximo?

Este ano está muito direcionado para a divulgação do Mati, mas também para a internacionalização. Já tenho alguns concertos marcados: Polónia, Luxemburgo, Brasil, França, Espanha. O futuro do próximo disco já está delineado, gravei-o no verão passado com o meu produtor antigo mas também conta com produção do Guilherme Kastrup (produtor da Elza Soares). Estou com muita vontade de mostrar o disco, mas só sairá em 2020. Em relação às colaborações, os convites vão surgindo mas a disponibilidade é outra e vou dizendo que não mais vezes do que gostaria. Este ano já tenho concertos do Rodrigo Leão marcados vai sair um novo disco dos Throes & The Shine para o qual escrevi uma canção, tenho pedidos de duas bandas para fazer músicas e, para além de tudo isto, tenho duas filhas e um marido [risos].