Mark Deputter

Antevisão da nova temporada da Culturgest

Mark Deputter

Mark Deputter é, desde 2017, administrador e responsável pela programação da Culturgest. Radicado no nosso país há vários anos, esteve à frente de vários projectos e instituições responsáveis por muita da criação contemporânea a que Lisboa assistiu. Conversámos com ele no dia da apresentação da programação, a primeira do seu mandato e a que celebra os primeiros 25 anos da Culturgest.

Referiu numa entrevista que considerava a criação contemporânea demasiado ligada a aspectos formais e tecnológicos e que seria preciso voltar a facetas mais humanas e de intervenção. A programação que hoje apresentou reflete essa preocupação?

Não é tanto algo que eu considere que deveria acontecer, é mais uma observação do que está a acontecer na prática. Houve um período em que os artistas estavam muito interessados nos elementos mais formais da criação, por exemplo em juntar tecnologias como o vídeo ou outras. Artistas como John Cage ou Merce Cunningham foram aos limites conceptuais da música e da dança, tentaram ultrapassar as fronteiras da ideia comum que existia sobre estas formas de arte. Foi um período muito interessante e provavelmente necessário para abrir a nossa percepção e as nossas próprias definições sobre o que é a arte. Porém, nos últimos dez anos, aproximadamente – é difícil apontar uma data específica – há um maior interesse nas pessoas. O facto de muitos criadores estarem a trabalhar em áreas como o documentário, é um sinal disso. Também é visível no teatro, onde assistimos a um regresso à vida real, às pessoas e às suas vidas. Um bom exemplo é o espectáculo 100% Lisboa, que está na nossa programação (fevereiro 2019), onde os Rimini Protokoll trabalham com pessoas que não são atores, mas utilizam as suas experiências de vida, integrando-os no seu espectáculo. Não existe um texto de base, ele é criado pelas 100 pessoas que intervêm, selecionadas com o objetivo de traduzirem demograficamente a sociedade portuguesa.

A programação inclui uma série de eventos que têm como denominador comum a tristeza. Como nasceu esta ideia?

Está centrada no espectáculo Triste in English from Spanish da Sónia Baptista. Quando o vi, gostei muito do modo como ela trata o tema e a grande relevância do mesmo. Estamos a viver numa sociedade onde não há muito lugar para as pessoas que falham, para os momentos em que já não temos forças. Precisamos de momentos para a tristeza, para a perda, para o não-funcionar. Vale a pena pôr este tema em cima da mesa e dar-lhe a atenção devida. O espectáculo faz isso de uma maneira muito bonita. Tem uma grande fragilidade e é também muito generoso e muito bem concebido. Fala também sobre a depressão, um problema cada vez mais generalizado na sociedade e que tem pouco espaço de reflexão. Decidimos usar este tema e aprofundá-lo na programação. A ideia de poder aumentar o alcance de um espectáculo é algo que me agrada muito, porque permite focar várias maneiras de olhar para os temas e tocar em públicos diferentes. Pessoas que têm interesse no assunto mas que não vão regularmente ao teatro, podem sentir-se atraídas pelo tema e pelo que um artista tem a dizer sobre ele.

Esse aspeto tem a ver com a vossa intenção de alargar e atrair novos públicos, de ultrapassar um certo conceito de nicho que é por vezes associado à criação contemporânea?

Há muitos espectáculos que se podem caracterizar como arte contemporânea que são muito acessíveis, que não são, por assim dizer, ‘difíceis’. Como disse, houve tempos em que artistas como o John Cage iam aos limites dos limites e nessa pesquisa podiam levar a um certo afastamento do público, mas acho que estamos numa altura em que os próprios artistas querem sair disso. Procuram públicos maiores e falar de coisas que as pessoas entendem. Não estou a inventar nada, é uma coisa que está a acontecer na criação contemporânea. O Jérôme Bel, por exemplo, é um artista que começou por trabalhar na dança de um modo muito conceptual, muito à procura dos limites da dança mas que foi evoluindo até ficar quase obcecado com a percepção do público. Estava muito preocupado, embora de um modo saudável, com a inteligibilidade da sua obra e assistia a todas as sessões para avaliar a resposta da assistência. Há cada vez mais artistas a pensar assim.

Na apresentação da programação falou também numa preocupação com a escala. Em que consiste?

A programação da Culturgest incluía muitos espectáculos de menores dimensões, recorrendo a espaços menores ou ao redimensionamento da sala, com o palco no centro e com construção de bancadas em redor, por exemplo. Decidimos apostar mais na sala tal como ela é, com 600 lugares, e imaginar uma programação que funcione neste espaço. Sem perder a alma da Culturgest e da sua missão criação contemporânea, queremos integrar propostas para chegar a um público mais alargado.

Há muita oferta neste tipo de produções?

É mais difícil e há menos oferta, sobretudo em Portugal. Com a falta de meios, quase ninguém arrisca em produções com mais de dez artistas ou com grandes cenários. Pretendemos criar um mercado e apoiar este tipo de trabalhos, desafiando artistas que têm experiência e know-how em espectáculos desta dimensão. É importante que uma produção nacional não fique limitada por condições económicas. Eu próprio tenho um grande amor pela criação experimental, de pequenas dimensões, como foi visível no meu trabalho no Maria Matos, mas penso que a Culturgest tem outra vocação, pela própria arquitetura do espaço. Gosto muito da sala principal que, apesar de ser de uma dimensão considerável, permite uma proximidade muito boa com o palco.

Neste âmbito, quais os espectáculos que destacaria na programação?

Sem dúvida, o Ballet Rosas já em outubro. É uma combinação de artistas de grande nível e com grande experiência. A Anne Teresa de Keersmaeker é desde logo uma rainha da dança a nível internacional. Conta ainda com 18 bailarinos em palco e com a participação do ensemble B’Rock, uma orquestra barroca muito inovadora, e com os concertos Brandeburgueses de Bach, que é uma obra deslumbrante. É um tipo de proposta que pode atrair um público mais alargado, pela sua dimensão e grandeza. Destaco também outros dois espectáculos de maior dimensão. O 100% Lisboa, é um espectáculo extraordinário, inusitado e é uma grande festa. Nasceu no Hebbel Theater de Berlim, onde convidaram os Rimini Protokoll para fazer uma criação de comemoração do centenário do teatro. Foi um sucesso tal que muitos programadores os convidaram a repetir o formato nas suas cidades. Há anos que tinha vontade de trazer este espectáculo a Lisboa mas o Teatro Maria Matos não tinha a dimensão adequada. Posso mencionar também o espectáculo Happy Island, que a coreógrafa La Ribot e a cineasta Raquel Freire criaram com a companhia de dança inclusiva madeirense Dançando com a Diferença, em cena a 23 de novembro. Estreou na Suíça, onde foi muito bem recebido.

Outra das apostas são as co-produções nacionais. Estão em preparação?

Felizmente, quando fui convidado em outubro de 2017, tinha a programação do ano já fechada pelo Miguel Lobo Antunes. Foi importante ter este tempo para preparação. Os espectáculos desta dimensão levam cerca de ano e meio a preparar, pelo que irão aparecer na segunda metade da temporada, já em 2019.

Porque optaram por uma programação semestral?

Originalmente pensámos numa programação anual mas na área da música e das conferências tornava-se muito complicado. No teatro e na dança, o agendamento anual é a prática normal, mas na música e nas conferências os prazos têm de ser mais curtos. O prazo de seis meses também nos dá tempo de fazer uma melhor divulgação.

Mudaram também a imagem institucional, desde o logótipo à sinalética. É uma lavagem de cara relativa aos 25 anos?

Havia uma necessidade muito prática, o website da Culturgest estava muito antiquado. Foi feito há 15 anos atrás com base numa programação muito antiga e pouco interativa. A partir dessa intervenção optámos por uma mudança mais abrangente. Era importante criar uma nova imagem e dar uma ideia de frescura, de um novo ciclo que vai começar, o que é sempre apelativo. Na área da cultura é normal mudar a imagem periodicamente e este era um bom momento para o fazer.

Os programadores das diferentes áreas foram todos escolha sua?

O Delfim Sardo (Artes Visuais) já tinha sido convidado pelo Miguel Lobo Antunes, mas como gosto muito do trabalho dele não tive qualquer dúvida em mantê-lo, foi um acaso feliz. A Raquel Ribeiro dos Santos (Participação, Famílias e Escolas) também já fazia parte da equipa de programação. Temos estado a trabalhar numa reformulação desta área para incluir um trabalho mais alargado na captação de públicos. As obras artísticas valem por si mas queremos enriquecê-las com outro tipo de propostas que as podem complementar com leituras mais amplas. A Liliana Coutinho (Conferências e Debates) e o Pedro Santos (Música) são convites meus. Sou um espectador muito regular do trabalho do Pedro, que muito aprecio. Na área da Liliana procuramos fazer um trabalho de colaboração com as universidades, que também têm interesse em sair da sua bolha académica. Ela está muito actualizada nessa área que pretendemos trazer para fora do universo exclusivo dos estudantes e da academia. Há coisas muito interessantes que passam despercebidas ao grande público.

O Mark Deputter é Belga flamengo e vive em Portugal há vários anos. Sente-se mais português ou belga, ou estrangeiro em ambos países?

Acho que nós somos várias coisas, cada um de nós é várias pessoas. Quando se é estrangeiro num país sentimo-nos sempre um pouco de fora. É curioso que agora sinto muito isso na Bélgica, mais do que aqui. Neste ponto de vista, sinto-me mais português que Belga. Gosto de lá ir mas sinto-me mais deslocado. Já são 20 anos em Portugal e estar casado com uma portuguesa e com dois filhos, também ajuda. Obriga-me a adquirir outros vocabulários. Falo português e flamengo com os meus filhos, mas torna-se mais difícil à medida que eles vão expandindo o vocabulário. Há um passado que é fundamental e que não se consegue recriar. No entanto, o  meu passado é na Bélgica, todas as minhas referências de filmes, de televisão, contactos que se fazem em jovem adulto, nas aulas, nas vivências, são sempre marcantes.

E no modo de trabalhar, há diferenças?

Sim, é um pouco diferente, mas gosto mais de como se faz aqui. Há pequenas coisas que nunca vou aprender, como o hábito de chegar atrasado. Não consigo. Melhorou muito, mas no início era muito frequente. As pessoas chegavam com meia hora de atraso e nem achavam estranho, não viam a necessidade de pedir desculpa. Tive de aprender a ter paciência com isto.