Isaura

"Escrevo canções porque não consigo escrever um livro"

Isaura

Há três anos era lançado o EP Serendipity. O single Useless começava, discretamente, a rodar nas rádios alternativas nacionais, e começava também a formar-se uma legião fiel de fãs. A música de Isaura é como aquelas praias secretas que descobrimos por acaso e que não queremos partilhar, com medo que percam a autenticidade. Este ano, após convite para participar no Festival da Canção, O Jardim viria a ser escolhido para representar Portugal na Eurovisão. O medo instalou-se: será que a exposição massiva ia alterar o fenómeno Isaura? A resposta está aí, com o novo álbum, Human, tão autêntico como o primeiro EP, assinado pela Isaura de sempre.

Com O Jardim aventuraste-te na composição em português. É mais difícil compor em português ou inglês?

Desde sempre que componho em português. Nunca tinha editado nada em português porque quando comecei a editar e a partilhar canções com o público, quis explorar uma sonoridade que era muito mais fácil para mim e que estava mais próxima das minhas influências. Em inglês. É como se tivesse uma checklist e tivesse decidido que isto era o que queria fazer primeiro. O EP era uma coisa de canções, muito synthpop dos anos 80. Nessa altura fazia-me mais sentido em inglês.

Vamos poder ouvir um dia um álbum teu em português?

Acho que sim. Não me atrevo a dizer já que será um álbum. O EP e o álbum já saíram, e eram aquilo que eu tinha idealizado. Agora há-de acontecer esse progresso natural de passar para o português. É um desafio diferente, outra forma de cantar, outra forma de escrever. O Jardim foi para abrir o apetite, mas é apenas uma de várias canções que tenho em português. A grande dificuldade, quando penso em cantar em português, é perceber qual o registo onde me vou sentir bem. O que eu fizer em português nunca poderá ser uma tradução do que faço em inglês. O português tem uma sonoridade e uma expressão muito vincada. Em inglês consigo dizer as coisas de forma mais simples. Em português escrevo de forma, talvez, mais arcaica. Nestes últimos dois meses, desde que o álbum saiu, tenho feito umas brincadeiras para tentar perceber como me saem as coisas em português, mas sem ser tão forte e tão vincado como O Jardim. Até porque isso é o que me sai mais naturalmente, mas que me faz parecer ter o dobro da idade. Tenho feito experiências para perceber como é que é a Isaura em português, mas mais “jovial”, digamos assim.

Compor em português faz-te, de alguma forma, sentir mais exposta?

Sim, acho que sim. Não sei se pelo facto de toda a gente perceber o que estou a dizer, ou se pela língua em si. Há coisas que, quando ditas em inglês, parecem quase levianas, como se não tivessem grande significado, mas quando as dizemos em português têm toda uma outra carga. Por isso é que me é tão difícil perceber onde é que me enquadro a cantar em português, porque também não me imagino a cantar só coisas muito pesadas e sentimentais. São poucas as pessoas em Portugal que fazem bem esse pop mais leve com que me identifico.

Curiosamente, O Jardim não consta deste disco. Porquê?

Antes da Eurovisão, tinha decidido que O Jardim faria parte do disco. Em termos de sonoridade, a única coisa de diferente era a presença de guitarras acústicas e piano. Tenho a canção gravada para o álbum e não entrou. Era para estar, de facto, até porque a história desta canção faz parte da história desde álbum. No momento de fechar o álbum, quando fui fazer os takes de voz, percebi que aquilo já não era O Jardim como eu tinha imaginado. Era O Jardim depois de muitas experiências, depois de ter ouvido a Cláudia [Pascoal] tantas vezes cantar, de ler tantos comentários e tantas sugestões. A minha demo – a que dei à Cláudia para ela ouvir e ver se gostava – essa sim, era O Jardim, gravado com ruídos e imperfeito, a canção que eu tinha idealizado. Preferi guardar a demo, porque para mim essa será sempre a canção que idealizei. A outra é uma versão cantada pela Cláudia.

Que impacto é que toda esta experiência no Festival da Canção/Eurovisão teve em ti?

Acho que mudou tudo e não mudou nada. Tenho uma característica – que por vezes pode ser defeito, outras pode ser virtude – sou muito terra-a-terra. Não me deixo deslumbrar pelas coisas, não dou nada por garantido, acho sempre que é tudo meramente passageiro. Como encaro as coisas assim, não as vivo em pólos de intensidade muito grandes. Para mim, a música é tão importante, que se eu colocar toda essa expectativa possivelmente nunca mais me recomponho, por isso protego-me um bocadinho. Em relação ao Festival e à passagem para a Eurovisão, sabia que ia ser uma experiência muito difícil, que ia haver uma grande exposição… Estou habituada a fazer um trabalho de nicho, com um estilo de música muito específico e, de repente, passei a receber muitos mais comentários e feedback, o que me assustou um bocadinho. Acho que ninguém está preparado para isso, mas depressa percebi que tudo se dilui rapidamente. O que retiro daqui é mesmo a experiência em si. Sou a mesma Isaura, com as mesmas expectativas, mas com esta experiência de ter tido oportunidade de levar uma canção minha a um palco gigante com condições extraordinárias. Também retiro disto a experiência de entregar uma canção minha a outra pessoa – neste caso à Cláudia. Compor de raiz uma canção, produzi-la, e depois entregá-la a outra pessoa foi algo que me fez pensar que, se calhar, de futuro, poderei fazer canções para outras pessoas. O que senti é que o projeto Isaura não me chega. Há tanta coisa que gosto de fazer, e se calhar uma delas pode passar por aí, por trabalhar com outros artistas.

“Não me deixo deslumbrar pelas coisas, não dou nada por garantido, acho sempre que é tudo meramente passageiro”

 

Da última vez que falámos – em outubro de 2015 – disseste que ainda não estavas preparada para lançar um álbum. Três anos depois, ele aí está. O que foi preciso para chegar até aqui?

Os concertos com o Francis Dale, o tocarmos em sítios diferentes, o ter de me apresentar sozinha em palco… Desde essa altura até agora tive duas formações diferentes, foram dois concertos diferentes. Agora tenho um terceiro, com este álbum. Percebi que os álbuns servem para alimentar concertos. Foi precisa uma força e concentração gigante para fazer o álbum. Com o EP foram dois ou três meses intensivos de trabalho, num ambiente super protegido em que ninguém me conhecia e que não havia expectativas. Agora é diferente, assinei com uma editora muito importante. As minhas expectativas e objetivos na altura também eram diferentes… Tive que amadurecer, tomar muitas decisões e preparar-me para o altruísmo que é necessário para fazer um álbum. Foram dois anos a compor, a produzir, a cantar… Havia dias em que achava que já não sabia fazer mais nada. A pessoa põe-se em causa muitas vezes. O que eu queria dizer na altura é que sempre soube que um álbum não era só um conjunto de canções, mas sim toda uma história. Até que ponto me sentiria confortável e com convicção para o fazer nessa altura? Tive seis produtores, eu própria produzi metade do disco, e nunca pensei que isso fosse possível.

Fala-me sobre o processo de composição. O que te inspira?

No EP, as canções foram-me aparecendo. No álbum, foi uma mistura de ter que fazer canções, com outras que me iam surgindo. Para o Festival tive de me sentar e escrever a canção, o deadline estava quase a acabar. Independentemente da pressão, vou sempre buscar coisas que conheço, geralmente à minha vida ou a situações de que me apercebo. Não tenho muito jeito para inventar. Há coisas que me preocupam, mas eu não sei escrever sobre isso porque não é a minha realidade. Digo muitas vezes que escrevo canções porque não consigo escrever um livro. E não consigo escrever um livro porque ainda não vivi quase nada.

A produção do disco conta com alguns nomes bem conhecidos. Soubeste de início com quem querias trabalhar?

Sabia que queria produtores com uma determinada sonoridade. Havia alguns nomes que para mim era imperativo estarem. Já tinha trabalhado com o Cut Slack no EP, com o Fred Ferreira queria muito trabalhar mas ainda não tinha tido oportunidade. Tive de perceber o que é que estas pessoas me podiam dar, quase como um puzzle. Tinha estes produtores muito bons, com os seus pontos fortes. Se queria uma coisa mais dançável e divertida ia ter com Karetus, porque sei que me iam levar para ali. Se queria uma balada então ia ter com o Diogo [Piçarra], porque sabia que me ia puxar para isso.

Ao ouvirmos o disco ficamos com a nítida sensação de que há dois lados: um mais leve, outro mais sombrio. Foi propositado?

Quando comecei a fazer o álbum, há dois anos e meio, tinha a ideia de fazer canções mais banais, sobre coisas que me preocupavam na altura, como o facto de andar muito ocupada e não ter tempo para gerir todas as coisas que tinha para fazer. Queria fazer algo diferente do EP, onde as canções eram muito emotivas e próximas do coração. Depois perdi a minha avó, e durante uns meses não me apetecia compor nada. Quando voltei a compor já não me apetecia escrever canções sobre o tempo, ou sobre estar ocupada. Tinha saudades, estava triste, e essas canções até me pareciam um bocadinho ocas e parvas. Pensei que tinha que contar a verdade. É como acontece com tudo: predispomo-nos a fazer uma coisa e raramente ela corre exatamente como tínhamos imaginado.

A parte estética do disco também é muito interessante. Como te lembraste de pôr na capa aquela espécie de persiana e que significado tem?

Não queria nada ter um disco absolutamente igual a todos os outros. Por aquilo que eu acredito que é o meu público e pelo que esteticamente faz sentido para mim, ter um disco que não tivesse simbologia nenhuma não fazia sentido. Todas as capas de single têm persianas. Achei que era giro fazer uma persiana em que o disco deslizasse, quase a dar a ideia que as pessoas podem entrar dentro da minha casa e do meu mundo. Achei essa ideia gira, e construí um protótipo para mostrar à editora, para os tentar convencer a deixarem-me ter um disco assim. Se há algo que aprendi com a experiência – e também com o meu manager Miguel Leite – é que a música não é só tocar guitarra no quarto e gravar. Há toda uma história que se conta com as fotografias, com as letras… Quando tentamos juntar as peças todas a mensagem passa mais rápido. O disco tem esse cuidado também, todos esses pormenores.

A 21 de julho regressas ao Super Bock Super Rock (SBSR). De que forma a tua prestação será diferente da de há três anos?

Vou apresentar-me com uma banda diferente, mais trabalhada, mais pensada, em que eu própria tenho mais controlo da estética que se ouve em palco. Há três anos, lembro-me de dizer à banda que me acompanhou ao SBSR, que queria mesmo que as pessoas ouvissem aquilo que estava no EP, porque era uma oportunidade para me conhecerem quando quase ninguém me conhecia. Acho que agora tenho uma noção diferente do conceito de concerto. Vão ser experiências completamente diferentes. Talvez essa seja a grande diferença, porque passei a controlar este processo. Fui eu que pensei criativamente o concerto, e isso dá-me mais uma ferramenta. Vou estar com músicos que me têm acompanhado há alguns anos, que têm crescido comigo, que me conhecem bem, que sabem do que gosto. Será um concerto mais próximo de mim própria.

Que concerto é que não podes mesmo perder nesta edição do SBSR?

Quero muito ver Slow J, e quero muito ver Sevdaliza, que vai tocar depois de mim. Ainda não consegui ouvir o novo EP dela com toda a atenção, mas acho sempre que as coisas dela são uma ótima referência, ela parece que está sempre um bocadinho mais à frente. Especialmente a nível de produção, Sevdaliza é uma óptima referência para mim. Vê-la ao vivo vai ser muito bom.