entrevista
João Lourenço
Nos 40 Anos do Teatro Aberto
Quatro décadas depois de inaugurar a sua primeira casa na Praça de Espanha, o Teatro Aberto, hoje num outro espaço, continua a apresentar bom teatro e a olhar para o futuro, sempre com um otimismo latente que João Lourenço partilha connosco durante um intervalo nos ensaios da próxima produção: O Pai de Florian Zeller.
Para o Grupo 4, uma das companhias pioneiras de teatro independente em Portugal, 1976 representa o corolário de uma longa luta em busca de um espaço próprio para a apresentação do seu trabalho. Na Praça de Espanha, nasce o Teatro Aberto, com a estreia da peça de Bertolt Brecht O Círculo de Giz Caucasiano. Com música de Paul Dessau e Pedro Osório e cenários de João Vieira, em palco, João Lourenço dirigia um grande elenco, onde pontuavam nomes como os de Irene Cruz, Morais e Castro, Rui Mendes (a par de Lourenço, os outros fundadores da companhia), Carmen Dolores ou Manuel Cavaco. Com o fim do Grupo 4, o Teatro Aberto torna-se, a partir de 1982, a casa do Novo Grupo, fundado por Lourenço, Irene Cruz, Francisco Pestana e Melim Teixeira.
Mais tarde, e culminando um processo que se arrastou por 18 anos, o coletivo instala-se num novo Teatro Aberto, também na Praça de Espanha. A casa do Novo Grupo, que é também um teatro municipal, continua de portas abertas a apresentar bom teatro e a olhar para o futuro, sempre com um otimismo latente que João Lourenço partilha connosco durante um intervalo nos ensaios da próxima produção: O Pai de Florian Zeller.
Que importância teve para um grupo de teatro independente passar a dispor de um teatro para criar e apresentar o seu trabalho?
O Grupo 4 começou em 1966, em plena ditadura, e, como se imagina, era muito difícil ter um espaço. Durante um período alugámos o [Teatro] São Luiz, graças à minha boa relação com o proprietário, Adolfo de Lima Mayer (que deu o nome ao Parque Mayer). Depois andámos pelo Maria Matos, pelo Villaret, pelo Tivoli e, no Insulto ao Público [peça de Peter Handke] fomos para o Monumental porque, como aquele era o teatro mais burguês de Lisboa, era ali que o devíamos insultar [risos ]. Esse espetáculo foi uma dura batalha e devemos muito ao Vasco Morgado tê-lo levado à cena naquela época. Ao longo desses anos, procurámos um espaço nosso e, em meados dos anos 70, surge uma oportunidade….
Com uns terrenos municipais na Praça de Espanha…
O presidente da câmara era o engenheiro Santos e Castro, um homem que gostava muito de teatro (é ele quem adquire para o município de Lisboa o Teatro São Luiz), que nos conhecia bastante bem e é quem nos fala desses terrenos onde, com dinheiro nosso, vamos começar a erigir o Teatro Aberto.
Porém, antes do 25 de Abril dá-se um volte-face na decisão da câmara…
É verdade. No dia 24 de abril de 1974, o coronel Silva Sebastião, então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, considera, por despacho, inoportuna a construção do teatro. Nesse dia, já tínhamos as asnas prontas para serem colocadas…
Mas, horas depois dá-se a queda do regime.
Precisamente. Daí que, em 1976, conseguimos ter o teatro construído. Sabe que aquilo que provavelmente mais se ganha quando se vive numa ditadura é a persistência, e nós, ao longo destes anos, e também em democracia, sempre a tivemos.
O Grupo 4 dá lugar ao Novo Grupo em 1982 e, a partir dai, a recém-constituída companhia confunde-se com o próprio Teatro Aberto. Antes, o João decidira afastar-se do seu antigo coletivo. Porquê?
O Grupo 4 politizou-se numa direção que não era a que desejava, afastando-se do repertório por mim idealizado. Para mim, o teatro não tem de ter emblemas porque a minha conceção do fazer teatro é o humanismo e a problemática do homem, estando sempre atento ao que se passa à nossa volta. Tem sido isto, precisamente, aquilo que tem estruturado ao longo dos anos o nosso repertório.
Sabendo-se que a peça que inaugurou o Teatro Aberto esteve cerca de um ano em cena e que, mesmo em contraciclo, as temporadas dos vossos espetáculos são longas, podemos aferir que, volvidas quatro décadas, a cumplicidade com o público se mantém?
Fomos sempre conquistando novos públicos. E temos muito orgulho nisso. Primeiro, no antigo Teatro Aberto, conseguindo dar um sentido literal a “aberto”. Quando regresso para fundar o Novo Grupo, chegámos a acolher o programa de televisão O Passeio dos Alegres [de Júlio Isidro] e isso, apesar de afetar o trabalho da companhia (nunca mais cá quis a televisão! [ risos ]), foi importante para retirar o peso que o teatro adquirira no período que se seguiu a O Círculo de Giz Caucasiano. No fundo, com a televisão, as pessoas tiveram hipótese de conhecer o teatro por dentro. E a relação de cumplicidade também se foi consolidando por ai.
Os anos de 1980 são particularmente felizes, sobretudo devido às produções muito aplaudidas de Brecht. Considera-as uma marca importante para a afirmação do Teatro Aberto?
O Brecht já vinha de trás. Antes do 25 de Abril ele era para nós o desejado. E, foi com Brecht que este teatro começou. De facto, nos anos 80, tivemos muito sucesso com as suas peças. Encenei aqui A Boa Pessoa de Setzuan, a Mãe Coragem, o Happy End… De há uns anos para cá, sempre que enceno um Brecht, penso que é a última mas, de vez em quando, ele aparece ali à esquina a lembrar-me que há uma peça sua a responder ao que se passa na nossa sociedade.
Considera-se um especialista em Brecht?
Nada disso. Posso sentir-me bem no texto, mas o espetáculo tem de ser descoberto com os atores e com toda a equipa. Porém, tanto eu como a Vera [San Payo de Lemos] temos um conhecimento profundo da obra, e isso permite-nos pensar como se o Brecht fosse vivo e como escreveria a peça hoje. Aliás, e como já referi, interessa-me sempre, em qualquer peça, trazer para o palco uma leitura atual.
Sei que o João Lourenço vê muito teatro lá fora. Tem sido assim que tem descoberto tantos dramaturgos inéditos nos palcos portugueses?
Somos, acima de tudo, uma companhia de teatro contemporâneo que só muito pontualmente vai aos clássicos (por sinal, abrimos o novo Teatro Aberto com um Ibsen!). É certo que vejo muito teatro em Londres, Berlim e noutras cidades europeias, e vou descobrindo autores e peças que me parecem interessantes…
O Pai, de Florian Zeller, que agora estreia, é um desses casos?
Apesar de estar em cena em vários sítios, não consegui ver a peça. Falaram-me dela, li-a e pareceu-me interessante encená-la. Soube que em Nova Iorque, foi protagonizada brilhantemente pelo Frank Langella. É uma peça que necessita de um grande ator, senão mesmo o melhor dentro daquela faixa etária. Dai, só a poder fazer com alguém como o João Perry.
Nos últimos anos, o Teatro Aberto deparou-se com grandes dificuldades. O futuro pode ser mais risonho?
Sou um otimista, por isso, e apesar deste mundo em que vivemos, acredito que será. A nossa relação com a Câmara e com a EGEAC está mais reforçada e o atual Ministério da Cultura merece-nos uma confiança que durante os últimos anos não teve.
O Teatro Aberto cumpre uma missão de serviço público?
Sem dúvida. Quando o Presidente da República cá esteve, por altura das comemorações dos 40 anos, distinguiu-nos com a Ordem da Instrução Pública, que sublinha a transmissão de conhecimento e de cultura. Isso é o que nós tentamos fazer ao longo destes anos, através de um teatro que dialoga com o nosso semelhante, expondo os problemas dos nossos dias.