Uma conversa com Maria João Luís

A atriz protagoniza 'Doce Pássaro da Juventude'

Uma conversa com Maria João Luís

A atriz Maria João Luís regressa aos Artistas Unidos, num ano em que assinala 30 anos de carreira profissional no teatro. Motivo para uma conversa em torno de Doce Pássaro da Juventude, ou melhor, sobre a ‘Princesa’ Alexandra Del Lago, de Jorge Silva Melo e Tennessee Williams, e de um percurso no teatro e na televisão que a consagraram como uma das maiores atrizes da sua geração.

Em 1959, no The New York Times, lia-se que Tennessee Williams continuava “possuído por demónios”. Em causa, a peça estreada em março desse ano, Doce Pássaro da Juventude (Sweet Bird of Youth), considerada pelo crítico e dramaturgo Robert Brustein “uma fantasia neurótica privada” sobre o tempo e a castração.

Envelhecida e decadente, a atriz Alexandra Del Lago, a ‘Princesa’, acompanha Chance Wayne, um jovem prostituto com aspirações a ator, à cidade natal deste, no sul dos Estados Unidos. Num domingo de Páscoa, aquele que deveria ser para Wayne o regresso a “um passado feliz que um dia teve lugar” vai ser ensombrado pela violência e pela destruição.

Depois de Gata em Telhado em Zinco Quente, Jorge Silva Melo e os Artistas Unidos continuam a explorar a dramaturgia de um dos mais importantes autores de teatro do século XX. Nesta produção, o encenador escolheu Maria João Luís e Rúben Gomes para representarem as “monstruosas”, e tragicamente vulneráveis, personagens centrais da peça as quais, na encenação original de Elia Kazan, eram interpretadas por Geraldine Page e Paul Newman.

A atriz Maria João Luís regressa assim aos Artistas Unidos, num ano em que assinala 30 anos de carreira profissional no teatro. Motivo para uma conversa em torno da ‘Princesa’ Alexandra Del Lago, de Silva Melo e Tennessee Williams e de um percurso no teatro e na televisão que a consagraram como uma das maiores atrizes da sua geração.

A última vez que trabalhaste com os Artistas Unidos foi em Hedda, uma leitura do José Maria Vieira Mendes de Hedda Gabler

Pois foi… fazia ‘uma’ Hedda…

E agora, desafias-te a encarnar a Princesa Alexandra Del Lago em Doce Pássaro da Juventude

É acima de tudo um desafio do Tennessee Williams proposto pelo encenador com quem mais gosto de trabalhar e com quem melhor me entendo, o Jorge Silva Melo. A peça era para ter sido feita há um ano ou dois e agora vai ser, por fim, apresentada.

Têm de ser mulheres de grande estirpe para o Jorge te convencer a atuar sob a sua direção?

Não [risos]. Desde o Stabat Mater, do Antonio Tarantino, que o Jorge me fascina enquanto encenador. Gosto muito de sentir aquela energia que ele emprega a trabalhar. Lembro-me que no São Luiz, quando fizemos precisamente a Hedda, como a sala é muito grande, havia algum distanciamento. Ele estava lá em baixo na plateia, mas mesmo assim conseguia sentir essa energia. Por vezes, não é preciso sequer ouvi-lo falar, basta perceber o ritmo da sua respiração ao longo do ensaio para o entender. É, de facto, muito prazeroso trabalhar com um encenador como o Jorge.

E a tua relação com o texto e a personagem…

Esta peça assustava-me imenso. Até há pouco tempo, achava não ser atriz para fazer este tipo de papéis porque entendo que o teatro tem a ver com a mensagem, com aquilo que tens para dizer e transmitir, para, no fundo, teres uma voz ativa no mundo. Ora, os dramas das mulheres dos anos 50 e 60 ou a história de uma vedeta que fica velha interessavam-me muito pouco numa altura em que tudo está a ruir à nossa volta.

Mas, há um par de anos estavas a interpretar a Martha de Quem tem medo de Virginia Woolf, uma mulher burguesa dos anos 60…

Pois… e sabes que mais: o Albee não me convenceu! Mas, aqui as coisas são diferentes…

Como assim?

Confesso ter, por vezes, uma visão muito primária e primitiva que julgo vir dos meus tempos de punk rock [risos]. Tanto que, quando comecei a ler o Tennessee Williams fui surpreendida por um texto maravilhoso e um dos que vai mais longe na abordagem à degradação humana…

Não sentiste isso no Albee?

Reconheço-o também, mas foi diferente. O Tenessee Williams descreve, vive e interpreta as personagens tal qual um ator. Ele era um grande ator, logo é também a Alexandra Del Lago, e isso é absolutamente maravilhoso para uma atriz que vai interpretar o papel.

Isso quer dizer que nunca te relacionaste com a ‘Martha’ da peça do Edward Albee?

É claro que me relacionei com a personagem, mas a dada altura desinteressei-me. Digamos que aquilo que se passa com a Martha e com o Quem Tem Medo de Virginia Woolf é algo que entra no âmbito da psicanálise. A determinada altura da minha vida isso deixou de interessar. Prefiro ter a sensação de viver a vida, de retirar tudo aquilo que conseguir a cada momento e parar de tentar dissecar cada reação, cada questão que se nos coloca. Com o Tennessee Williams estou nesse campo. Estou sempre a descobrir algo mais a cada leitura e a cada ensaio, num processo de apropriação que se torna orgânico. E quando o texto passa a fazer parte de mim é um sinal de que posso passar para o púbico em toda a plenitude a minha capacidade artística, aquilo que sou enquanto atriz.

Alexandra Del Lago é muitas vezes apontada como um “monstro”. Apesar disso, reconheces algum fascínio nesta personagem?

Não sinto que seja um “monstro”. A minha Alexandra Del Lago é até bastante simpática. No fundo, todos nós podemos ser a Alexandra, todos nós temos a Alexandra dentro de nós. É uma personagem fascinante, e eu adoro-a.

Lembro-me de há uns anos me dizeres o mesmo sobre a Claire Zachanassian, de A Visita da Velha Senhora

[risos] Mas essa era mesmo mázinha…

Sentes-te uma atriz melhor quando estabeleces essa empatia com as personagens?

Não sinto que seja preciso criar empatia pelas personagens. Interessa-me sim ter algo a dizer através delas e, quando isso sucede, sou provavelmente uma melhor atriz. O modo como me aproximo das personagens regula-se mais por aquilo que quero ou não fazer. Ainda há uns meses, interpretei uma personagem que não era homem nem mulher em Na Solidão dos Campos de Algodão… e, apesar dos risco que corri ao fazer uma peça do Koltès, penso ter transmitido ao público aquilo que queria porque estava profundamente envolvida no projeto.

“Gostava mesmo de ter sido jardineira. Queria ter tempo para só fazer jardinagem, meter as mãos na terra, ver o que brota dela.”

 

A nível profissional assinalas, neste ano, três décadas de carreira profissional nos palcos. Este aniversário redondo faz-te olhar para trás, pensar no que poderias ter feito e não fizeste?

Sabes que quando olho para trás percebo que passei ao lado de uma grande carreira na… jardinagem! [risos]

Mas se assim fosse não teríamos uma grande atriz…

Dizes tu, e agradeço. Gostava mesmo de ter sido jardineira. Queria ter tempo para só fazer jardinagem, meter as mãos na terra, ver o que brota dela. Imagino uma vida pacífica e apaixonada, um bocadinho solitária em contraposição ao meu lado mais comunicativo. Precisamente este que acabou por fazer de mim atriz…

Então, apesar da paixão pela jardinagem, és feliz sendo atriz…

Claro que sim.

Como lidas com o reconhecimento e a consagração que te dedicam?

Não sinto essa coisa da ”consagração”. Nunca sinto que cheguei a sítio algum, porque não reconheço um sítio para se chegar.

Por isso mesmo arriscas, desafias-te constantemente…

Sempre, nem entendo ser atriz de outra forma. Por isso, não olho para trás. Reconheço ter chegado a um ponto na minha vida onde posso correr riscos, falhar, fazer merda. Hoje, sinto que me posso estender ao comprido, abraçar projetos que me provoquem e onde corro o risco de errar. Foi por isso mesmo que fiz o Na Solidão dos Campos de Algodão do Koltès, ao lado da Rita Blanco, e agora vou fazer este Tennesse Williams…

Mas o risco aqui é bastante mais controlado, ou não?

Sim, mas há sempre um risco, independentemente do trabalho com o Jorge ser sempre uma aprendizagem, uma grande lição de encenação, onde os riscos não parecem estar tão presentes pela sua capacidade de direção.

Como geres o teu tempo entre a televisão, os palcos de Lisboa e o Teatro da Terra, a tua companhia em Ponte de Sôr?

No Teatro da Terra faço muitas coisas ao mesmo tempo porque, como deves calcular, os apoios são escassos e o dinheiro que fazemos acaba por ser destinado aos pagamentos de atores e técnicos. Paralelamente, apesar de algum prazer que retiro, vou fazendo televisão porque, essencialmente, me paga as contas. Por questões de calendário, vou estar a fazer esta peça e a filmar uma telenovela ao mesmo tempo. Não é fácil, mas vai-se gerindo o tempo…

Lamentas não poder estar a tempo inteiro no teatro?

Tenho muita pena. Pensava que quando chegasse a esta idade já estaria a fazer qualquer outra coisa, que já não me apetecia estar no teatro. Sucedeu precisamente o contrário. A vontade de estar em palco é cada vez maior, é o sítio onde me encontro absolutamente. Lembro-me de ter 17 anos, estar n´A Barraca a fazer um casting e perceber que o palco era a minha casa. Hoje, isso voltou a acontecer. É a partir do palco que entro na zona de transporte, tal qual uma pastilha de LSD, com o aliciante de transportar quem me vê…

Sentes a adrenalina de transportar?

Como nunca, porque as pessoas são hoje mais transportáveis quando estão numa plateia. Há um público que se habituou a ver teatro, que chega generosamente para ser levado. Isso aumenta muito o valor de ser ator e a energia do momento.

Voltando à tua personagem em Doce Pássaro da Juventude, e com as devidas distâncias, temes o esquecimento como aquele a que é votada a Alexandra Del Lago?

Não sei… Nunca esperei que me chamassem, portanto não sei se alguém me vai esquecer. Cair no esquecimento no sentido de fazeres coisas que ninguém quer ver já é diferente. Não sei como reagiria a isso, mas antevejo que deve ser triste. No fundo, é envelhecer, e lembro-me sempre de um tio com 90 anos a confessar já não entender nada do que os mais novos diziam. O envelhecimento traz muitas coisas, até o esquecimento. É uma inevitabilidade, mas não penso muito nisso.