Os livros do verão

Dez leituras para os dias quentes

Os livros do verão

Escreveu Pedro Homem de Mello no poema Homenagem: “Poetas podeis crer: / Nosso destino / É pedir vida, ainda, às coisas mortas!”. Para os meses de julho e agosto sugerimos a leitura de dez publicações recentes, entre elas, precisamente, o segundo volume da poesia completa do poeta de Povo que Lavas no Rio. Dez livros repletos de vida para ler no período de férias.

Pedro Homem de Mello

Poemas 1964-1979

Cobrindo os anos entre 1964 e 1979, este segundo volume de poemas de Pedro Homem de Mello vem encerrar a publicação da obra completa do autor. A sua poesia, única e inconfundível, é marcada, como salientou José Régio, pela “sinceridade profunda do seu interesse pelo folclore vivo e do seu amor pelo povo” (“Povo! Povo! Eu te pertenço / Deste-me alturas de incenso”, imortalizado por Amália Rodrigues). Centrada na contradição entre “corpo e alma”, explora o tema do desejo (frequentemente homoerótico), contrapondo a experiência da fugacidade do prazer à permanência do remorso e à noção de culpa e de pecado. “Um pagão com o hábito de ser católico”, lhe chamou David Mourão-Ferreira acrescentando, ao associar o seu universo poético à pintura de Leonardo: “Há em Pedro Homem de Mello, muito de certos artistas do Renascimento, pagãos por natureza, – presos no entanto à letra (que não ao espírito) da religião estabelecida”. A edição ficou a cargo de Luís Manuel Gaspar, com um posfácio incindindo sobre os dois volumes de Fernando Cabral Martins. Eis o tão aguardado regresso do poeta de Eu Hei-de Voltar um Dia, que escreveu: (…) E cumprindo uma promessa, / O Poeta que fui eu / Em cada verso regressa / Do país onde morreu?” LAE Assírio & Alvim

Ernest Hemingway

O Jardim do Paraíso

Ernest Hemingway (1899-1961) nasceu em Oak Park, a pouca distância do local onde Frank Loyd Wright começou a construir os seus projetos. Na realidade, a revolução que o escritor promoveu na prosa em tudo se assemelha à que o famoso arquiteto empreendera nas suas “casas da pradaria”: redução da forma ao essencial e despojamento de toda a ornamentação. O Jardim do Paraíso é um romance póstumo, publicado pela primeira vez em 1986. Hemingway terá trabalhado nele por mais de uma década, sem nunca o ter dado por terminado. David e Catherine Bourne, apesar de parecem irmão e irmã, são um jovem casal americano. Em lua-de-mel no sul de França, entregam-se a uma série de jogos eróticos que exploram essa semelhança, enquanto David, aspirante a escritor, se dedica a redigir o manuscrito de um “romance africano”. Conhecem então a bela Marita e entre os três estabelece-se um relacionamento complexo que se adensa à medida que a escrita do livro se aproxima penosamente da conclusão. Uma obra ímpar no universo do autor, que explora com ousadia e elegância os temas do triângulo amoroso, da fluidez de género e da fusão de homem e mulher numa mesma entidade. Foi um dos livros de referência para o artista português Julião Sarmento. LAE Livros do Brasil

Samanta Schweblin

O Bom Mal

Samanta Schweblin nasceu em Buenos Aires em 1978 e vive em Berlim desde 2012. Vencedora de prémios importantes, como o Juan Rulfo e Casa de las Américas, é autora dos volumes de contos Pássaros na Boca e Sete Casas Vazias, e do romance Distância de Segurança, que, assim como Kentukis, foi finalista do International Man Booker Prize. A revista Granta inclui-a na lista dos 22 melhores escritores de língua espanhola com menos de 35 anos. O título da presente coletânea de contos, O Bom Mal, é profundamente revelador do universo literário da autora que explora o território do ambíguo, da estranheza, da inquietação, do fantástico e até do terror. Como escreveu o crítico do Expresso, José Mário Silva, Samanta Schweblin “insiste em rasgar o tecido do quotidiano com as lâminas da estranheza e do desajuste”. Curiosamente, estes seis contos têm todos origem na vida real, inspirados em pessoas, animais, factos ou acontecimentos que Samanta conheceu ou testemunhou. Sobre a narrativa William à Janela, declara: “aconteceu verdadeiramente. Talvez seja o conto mais autobiográfico que escrevi, e talvez também por isso seja melhor não dizer mais nada.” LAE Elsinore

Julian Barnes

Mudar de Ideias

“Alguns de nós temos convicções fortes fracamente sustentadas, outros têm opiniões fracas fortemente sustentadas. Sempre presumi que os liberais como eu têm opiniões moderadas moderadamente sustentadas. Mas não tenho a certeza de que continue a ser esse o caso. Quando agora pedem a minha opinião sobre um assunto público qualquer, a tentação que me assalta é replicar: ‘Bom, na República Benigna de Barnes…’ Neste breve conjunto de ensaios e palestras cujos temas são Memórias, Palavras, Política, Livros, Idade e Tempo, nunca saímos em boa verdade dessa “República Benigna de Barnes”, onde o escritor, com recurso a histórias da sua vida e da de outros, vai dando conta daquilo em que as suas ideias se mantiveram inalteradas (sobretudo no uso rigoroso das palavras e nos valores sociais e civilizacionais a que a política devia corresponder), ou em que houve mudança de opinião (nomeadamente sob a influência da memória dinâmica e nunca estável, e na apreciação de determinados escritores). Terminamos a leitura deste livrinho ligeiro e divertido com uma ideia benigna sobre a pessoa do autor. São textos que geram empatia e proximidade, onde apenas uma pessoa discursa, mas em que a ilusão da conversa acontece. RG Quetzal

Paulo José Miranda

Máquinas de Ficção

Paulo José Miranda evoca a tradição de “textos acerca de textos” referindo como influência maior e mais antiga a de Pseudo-Dioníso que se fez passar por Dionísio o Aeropagita, um ateniense que se teria convertido ao cristianismo após escutar as palavras de São Paulo.  Pseudo-Dioníso não só inventou um autor que teria vivido 400 anos antes dele, como se referiu a livros que teria escrito e que nunca apareceram. Livros que cita mais de uma vez. Para além disso, “parece usar as citações de livros que não escreveu para construir aqueles que escreveu”. A propósito, Paulo José Miranda conclui; “A pós-modernidade surgiu algures no Médio Oriente entre os séculos V e VI”. Ora, Máquinas de Ficção é, justamente uma invulgar recolha de textos sobre textos. Originalmente publicados no jornal Hoje Macau, convidam o leitor, de forma provocatória, a explorar resenhas de livros que nunca foram escritos — “mas que talvez devessem existir”. Cada texto é uma porta aberta para um universo literário alternativo, onde a crítica se torna criação. Mantendo o jogo com o leitor, Paulo José Miranda cita um excerto de um suposto ensaio de Hélder Macedo, autor que muito admira: “No universo não há lado de fora e lado de dentro, tudo é lado de dentro. E assim acontece no romance. (…) Tal como no universo, no romance tudo é intertextualidade.” LAE Caminho

Fernanda Cachão

O Estado Novo em 101 Objetos

A jornalista Fernanda Cachão lança uma obra, resultante de uma pesquisa de cerca de cinco anos, onde reúne uma seleção de 101 objetos que representam como se vivia antes do 25 de abril de 1974. Esta iconografia de objetos e documentos ilustra, muitas vezes melhor do que palavras, a ideologia que, com firmeza e com tato calculado, dominou Portugal durante 48 anos. Para as novas gerações será, porventura, com alguma surpresa que realizarão que em tempos era preciso licença para usar isqueiro, ter autorização do marido para sair do país e tantas outras condicionantes impostas ‘a bem da nação’. O livro pode ser lido abrindo as páginas ao acaso, ao sabor da curiosidade, para saber um aspeto do regime e o seu enquadramento, pessoal e público. Ficam-se a conhecer ou recordar aspetos curiosos e pessoais como as alcunhas de Salazar: ‘o Botas’, por ter sido fotografado numa cena bucólica, em Almourol, com António Ferro, mostrando as solas das botas esburacadas, uma prova da sua apregoada frugalidade (ainda que normalmente usasse botas de canos alto de boa pelica); ou ‘o Esteves’, por serem constantes as notícias que informavam ‘esteve ontem em visita o Sr. Presidente do Conselho…’. Em suma, trata-se de um compêndio ilustrado do que não convém esquecer. TCP Lua de Papel

Inês Lampreia

No tempo dos super-heróis

É o segundo livro de Inês Lampreia, que tem publicado textos de crónica, ficção e prosa poética nos últimos anos. No tempo dos super-heróis reúne 12 contos e é a um deles que vai buscar o título. No posfácio, afirma o poeta e ensaísta João Rasteiro: “Mais do que uma escrita feminista, julgo estarmos perante uma escrita feminina, comprometida com a contenda por uma sociedade mais justa”. Tendo sobretudo mulheres como protagonistas, mas não reivindicando nenhuma causa, a autora deixa-as subentendidas nas várias histórias que nos conta, passadas desde os tempos das nossas avós e bisavós aos dias de hoje. Cada conto vale por si, no entanto, avançando na leitura, vamos percebendo que se ligam uns aos outros e que, todos juntos, criam um retrato de Portugal no último século. Inês Lampreia usa uma escrita tão descomplicada e “da terra” como as histórias que imaginou. Evoca vidas duras, seja na pobreza ou na solidão, seja na crueza dos campos alentejanos ou na alienação dos dias em Lisboa – cada uma no seu contexto, vidas impregnadas de infelicidade, algumas ainda com réstias de esperança, outras nem isso. Porque, se ali existe uma avó que se refugia nas nuvens ou uma mãe que voa atrás do canto dos rouxinóis, parece que hoje a poesia se foi. GL Urutau

Afonso Cruz

O vício dos livros II

“Há aqueles que não podem imaginar um mundo sem pássaros; Há aqueles que não podem imaginar um mundo sem água; Ao que me refere, sou incapaz de imaginar um mundo sem livros”. É com esta frase do argentino Jorge Luis Borges que Afonso Cruz inicia O vício dos livros II. Depois de, em abril de 2021, ter lançado O vício dos livros, o autor regressa com mais histórias, reflexões e curiosidades para aqueles que não podem viver sem a literatura. Sempre a pensar no leitor e na recorrente questão de como incentivar hábitos de leitura, este volume reúne cerca de 40 textos, alguns autobiográficos, sobre o processo de escrita e sobre a capacidade de a poesia dar vida a tudo aquilo que é objeto da sua arte, dando a conhecer histórias de autores como Eduíno de Jesus, Lídia Jorge, Marguerite Duras, Rainer Maria Rilke ou Raul Brandão, entre outros. A paixão pelos livros é transversal a todos os textos, como se pode também constatar nas pinturas alusivas ao ato de ler, de artistas como Diego Rivera, Matisse, Picasso ou Matisse, escolhidas para ilustrar a presente edição. Refere Afonso Cruz: “os livros só alcançam sucesso através do murmúrio”. Aceite, pois, o nosso murmúrio. SS Companhia das Letras

Louisa Yousfi

Em Nome do Bárbaro

“Mas o que será que perde o bárbaro que a civilização arrastou na sua corrida para o progresso humano, alimentando-o generosamente com as riquezas culturais de que tanto se orgulham os impérios (…)?” Esta é a questão-chave à qual o presente manifesto estético e político sobre a condição dos descendentes da imigração pós-colonial, procura responder. De autoria de Louisa Yousfi, jornalista, crítica literária e escritora, filha da imigração argelina em França e uma das vozes centrais do pensamento decolonial, aqui se expõem as armadilhas e a violência das políticas de integração e mostra como a assimilação pode equivaler à perda de identidade, língua, religião e cultura. Elogiado por figuras como Françoise Vergès e Annie Ernaux, este ensaio revela a estranheza da condição pós-colonial: “bárbaros” no coração do Império, que habitam os seus subúrbios, falam a sua língua, dominam perfeitamente os seus códigos, mas que têm sérias contas a ajustar com ele. É em nome deles que fala, dos que se atrevem a “fitar o nosso sol da Barbárie de frente”, como escreveu o autor argelino Mohammed Dib, citado em epígrafe. Uma espantosa viagem à alteridade radical, desmistificando, sem concessões, as narrativas do ocidente e as suas falhas morais. LAE Orfeu Negro

Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa

As Cartas do Boom

No romance Adão no Éden, Carlos Fuentes escreve: “(…) a mimese é inevitável na literatura e, no fim, escolher bem os mentores é uma demonstração de talento”. Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa são os quatro principais romancistas do chamado “Boom Latino Americano”. As cartas trocadas entre eles revelam as múltiplas e valiosas correspondências que se estabeleceram entre as suas obras no auge deste quarteto. Citando os editores do presente volume, as cartas documentam “um momento em que os criadores pareciam ter começado a escrever menos sozinhos para ‘tocar’ em conjunto, como parte integral de uma mesma literatura”. Mentores uns dos outros, de certa forma, como confessa o escritor mexicano: “(…) sei que cada um de nós está muito consciente do que os outros estão a fazer”. Este intercâmbio permite um acesso sem precedentes às suas relações pessoais e coletivas, e desvenda de forma privilegiada a literatura e a política latino-americanas no contexto histórico entre os anos de 1959 e 1975. Testemunha igualmente a relação sincera de amizade e respeito que os unia e que põe definitivamente em causa a máxima de Carlos Fuentes, expressa no citado romance: “Lê os escritores, mas não os conheças pessoalmente.” LAE Dom Quixote