Os livros de maio

Oito novas propostas de leitura

Os livros de maio

“Uma biblioteca usada desperta-me sempre um arrepio qualquer, como se os livros que pertenceram a outras pessoas guardassem nas suas páginas todos os olhares que um dia os visitaram – e tais olhares passassem a ser meus”, escreve Fernando Pinto do Amaral no seu mais recente livro, Contos Suicidas. Para o mês de maio, sugerimos oito novas edições para juntar à sua biblioteca e preencher com o seu olhar.

Fernando Pinto do Amaral

Contos Suicidas

Uma pecadora compulsiva, um ator do Método, uma cardiologista sem coração, um professor de filosofia incendiário, uma avó e uma neta que estabelecem um pacto de sangue na noite de Natal, um provocador artista plástico subjugado pela voragem sexual, um alfarrabista misantropo, um homem que alimenta uma paixão carnal pelas línguas. O que une personagens aparentemente tão distintas? A resposta encontra-se na mais recente obra de Fernando Pinto Amaral, um regresso ao conto quase 20 anos depois de Área de Serviço e Outras Histórias de Amor. Um mergulho num mundo interior de sombras marcado pela solidão, incomunicabilidade, amargura, ressentimento, remorso, ódio, raiva vingança, depressão e pelo suicídio, claro. Lá fora, um mundo que nem sempre vale a pena viver: guerras, epidemia, cidades poluídas e inabitáveis, pobreza, elites de bilionários, ganância do mercado, crueldade para com os velhos… A orquestrar tudo isto, um inequívoco talento narrativo apto a condensar a verdade interior dos personagens e evocar ambientes e atmosferas em poucas páginas. O autor brinca com essa capacidade logo no início do primeiro conto, escrevendo: “Esta história tem mais de cem anos, mas demora menos tempo a contar”. LAE Dom Quixote

António Jorge Gonçalves e Ondjaki

O Tempo do Cão

António Jorge Gonçalves e Ondjaki criaram em conjunto um dos mais belos livros da recente literatura de expressão portuguesa: Uma Escuridão Bonita, Prémio Nacional de Ilustração 2013. A novela gráfica para todas as idades, O Tempo do Cão, volta a juntá-los. Da primeira obra mantém-se a ideia de um fundo escuro (que evoca uma noite brilhante no Lago Tanganica) e das ilustrações em branco. Neste novo trabalho elas surgem rápidas, com uma impressiva marca gestual, como se tentassem com urgência captar um momento fugidio: o encontro e a separação de um homem e de um cão por entre as balas, o voo rasante dos helicópteros e das casas incendiadas. O clima é obviamente o da guerra, e por aqui afloram os temas inevitáveis da fome, da destruição e do medo. Contudo, os autores escolhem centrar-se na fábula da amizade apta a transformar a incandescência das balas em estrelas, o voo dos helicópteros em pássaros e o clarão das casas que ardem em fogo de artifício. De repente, evocando a memória da música, da dança e dos ritmos de Cuba, as ilustrações aproximam-se das técnicas tradicionais das xilogravuras latino-americanas. Esta história tocante, escrita a duas vozes – a do guerrilheiro e a do cão que “queria tanto saber falar” -, confirma o extraordinário talento desta dupla de autores: a singular capacidade de aliar a beleza poética de um texto a ilustrações que recusam o referente das palavras, para irem além delas. LAE Caminho

Georges Simenon

A Neve Estava Suja

Georges Simenon (1903-1989) foi um dos raros escritores que conheceu simultaneamente, os favores da crítica especializada, dos seus pares (como Gide, Faulkner ou Cocteau) e do público leitor. Produziu 425 obras literárias, vendendo mais de 600 milhões de cópias pelo mundo fora. Porém, a sua fama e popularidade repousam na série policial protagonizada pelo comissario Maigret. Contrariamente a Holmes ou Poirot, Maigret não possui poderes sobrenaturais de dedução, o que o torna mais humano e credível. É um inspetor que faz o seu trabalho de investigação zelosa e pacientemente, mediante uma cuidada análise psicológica dos suspeitos e um estudo aprimorado do meio sociológico em que ocorreu o crime. A Neve Estava Suja não pertence a essa série, mas apresenta o mesmo apuro psicológico e sociológico. Durante a ocupação, numa zona miserável e sórdida da cidade, Frank, um jovem de 19 anos, vive com a mãe, que dirige um bordel clandestino. Um dia mata um suboficial do exército ocupante, crime acidentalmente testemunhado por um vizinho com quem estabelece uma relação obsessiva, “um jogo” que desafia o destino “de manhã à noite”. Trata-se de um intenso romance psicológico que tem Crime e Castigo, de Dostoiévski, ou, no domínio literatura francesa, Thérèse Raquin, de Zola, como ascendentes diretos. LAE Cavalo de Ferro

Enzo Traverso

Gaza Perante a História

A partir de 7 de outubro de 2023, data do massacre perpetrado pelo Hamas em Israel, o establishment ocidental (ou seja, a generalidade dos Estados e media) concebeu uma narrativa em que foi “o súbito aparecimento do mal que desencadeou uma guerra de reparação”, no caso, perpetrada pela vítima (o Estado de Israel) contra o agressor (o Hamas). “Naquele dia, o contador recomeçou do zero”, fazendo parecer legítima a fúria da sofisticada máquina de guerra do regime de Benjamin Netanyahu abatendo-se sobre os mais de dois milhões de palestinianos da Faixa de Gaza. Na linha das declarações proferidas por António Guterres, secretário-geral da ONU, considerando que os ataques do Hamas “não surgiram do nada”, em Gaza Perante a História, Enzo Traverso desmonta a narrativa, considerando que o grupo islamista e nacionalista palestiniano recorreu a “meios inapropriados e repreensíveis”, mas que não podem ser dissociados “de décadas de ocupação, colonização, opressão e humilhação”. Neste ensaio breve, escrito como diria Sartre “en situation”, logo, “sem procurar ocultar os sentimentos de espanto, incredulidade, desânimo e raiva” perante a destruição de Gaza, o investigador e académico italiano, professor de História na Universidade de Cornell, reivindica o direito do povo palestiniano ao reconhecimento histórico, denunciando frontalmente o papel conivente e cúmplice do Ocidente (com particular enfase na Alemanha que, ainda em processo de expiação da culpa, “se apresenta como uma inimiga inflexível do antissemitismo”, que estrategicamente usa como “arma de arremesso contra os imigrantes e as minorias associadas ao islamismo”) para com a política expansionista e genocida de Israel. FB Antígona

Pauline Delabroy-Allard

Tudo Isto É Sarah

Entrevistada para a Fondation La Poste, que lhe atribuiu um prémio por este romance de estreia, Pauline Delabroy-Allard afirmou concordar com a formulação de António Lobo Antunes quando disse, “escrever é o modo como se escreve”, secundarizando a importância do enredo. A autora reconhece que a intriga em Tudo Isto É Sarah é algo que já vimos relatado muitas vezes: a história de um amor louco (aqui entre duas mulheres), que uma vez terminado conduz à alienação e finalmente à destruição da protagonista. O livro está organizado num prólogo e duas partes, representando os ritmos contrastantes de uma história de amor obsessiva e sôfrega, onde as amantes correm para os braços uma da outra, e em que a palavra mais usada é “ela”, ela e sempre ela, no início de frases curtas que marcam a atração crescente da narradora por uma jovem violinista, Sarah, que lhe é apresentada numa festa de fim de ano; e, mais tarde a fuga (rumo à imobilidade) à realidade que permanece para lá da possibilidade de Sarah nela existir. Pauline Delabroy-Allard tem sido comparada a Annie Ernaux (Prémio Nobel da Literatura em 2022), pelo caráter autêntico de uma escrita da intimidade. RG Alfaguara

André Bazin

O que é o Cinema?

André Bazin (1918-1958), um dos elementos fundadores da célebre revista de crítica Cahiers du Cinéma, está entre os principais teóricos da sétima arte no século XX, sendo esta súmula dos seus escritos uma obra de referência para todos os que se interessam por pensar sobre o que constitui a especificidade da linguagem cinematográfica. De uma série de quatro volumes publicados entre 1958 e 1962, o autor produziu esta seleção de escritos nos quais encontrou maior interesse retrospetivo. Bazin relaciona o cinema com a fotografia, o teatro e a literatura, e debruça-se sobre aquilo que individualiza o cinema da escola soviética, o neorealismo italiano, e o western norte-americano. As suas análises formaram uma espécie de consciência cinematográfica que se alastrou a toda uma geração de críticos e realizadores. Bazin distinguia entre os cineastas da imagem e os da realidade, demarcação que ainda hoje observamos ser mais dominante, alternadamente, nuns filmes e noutros. As muitas indagações presentes neste O que é o cinema? constituem o enunciar de interrogações que Bazin levantou a si mesmo e que nos põe ainda hoje a pensar em conceitos estruturantes da arte cinematográfica. RG Bookbuilders

Poesia, Substantivo Feminino

Manuel Alberto Valente, o organizador desta antologia, pretende oferecer um panorama abrangente do que é hoje a poesia portuguesa escrita por mulheres nascidas depois do 25 de Abril de 1974, sem o qual, em sua opinião, alguma desta poesia dificilmente existiria. Com ela procura materializar a sua convicção de que a qualidade média da poesia escrita por estas mulheres “é, em linhas gerais, superior à escrita por homens nascidos no mesmo período histórico”. Na poesia destas 25 poetas, nascidas entre os anos de 1974 e 1997, são tão diferentes as vozes quanto os temas tratados. Alguns mais próximos do universo tradicionalmente associado à sensibilidade feminina: a condição da mulher, o corpo, a experiência da maternidade, a evocação da figura materna. Outros de natureza mais geral: a memória da infância, o amor, a morte, a História, a guerra, o colonialismo, a reflexão sobre a natureza da linguagem e da própria poesia. Mas também, e diretamente associado ao propósito deste volume, o tema da liberdade e da vivência transformadora do 25 de Abril, essas “flores de revolução” (Sara Duarte Brandão) que permitiram às mulheres abandonar “um jeito quase póstumo de existir” (Inês Dias). LAE Dom Quixote

Jeff Wall

Escritos de Arte

Até ao próximo dia 1 de setembro, o MAAT apresenta a primeira exposição individual de Jeff Wall (n. 1946) em Portugal e uma das mais extensas dos seus 40 anos de trabalho. Nascido em Vancouver, Canadá, começou a trabalhar em fotografia nos anos de 1970 explorando as suas articulações com a pintura, a literatura, o teatro e o cinema, que entende como outros modos de representação e ficção da realidade. Produzido no âmbito da exposição, este livro reúne treze ensaios, escritos entre 1982 e 2010. Crítica e reflexiva, a sua escrita propõe um diálogo abrangente entre áreas distintas, da pintura ao cinema, da arquitetura à instalação, e reflete sobre influências e transições artísticas, os limites e possibilidades da fotografia ou o papel da Arte enquanto campo de reflexão e interpelação cultural, social e política. A publicação dá a conhecer alguns dos textos mais significativos de uma das maiores figuras contemporâneas das artes visuais, que escreve sobre a sua obra: “O meu trabalho baseia-se na representação do corpo. (…) As pequenas ações contraídas, os movimentos corporais involuntariamente expressivos que tão bem se prestam à fotografia, são aquilo que resta na vida quotidiana da ideia antiga de gesto enquanto forma corpórea e pictórica da consciência histórica.” LAE Orfeu Negro