entrevista
Rogério Charraz e Zé Fialho Gouveia
"Tudo aquilo em que trabalhamos é pensado a dois, numa parceria que veio para ficar".

Um canta, o outro escreve. Rogério Charraz e Zé Fialho Gouveia são uma dupla inseparável desde o lançamento de Não tenhas medo do Escuro, disco lançado em 2016. Seguiu-se O Coreto (2021) e, mais recentemente, Reunião de Condomínio, o novo disco em forma de prédio que conta com algumas colaborações surpreendentes. O álbum - que aborda temas como a imigração, o assédio sexual, a vida nómada dos professores ou a parentalidade após os divórcios, é apresentado no palco do Teatro Maria Matos a 9 de outubro.
Mais uma vez voltam a trabalhar juntos. Em equipa que ganha não se mexe?
Rogério Charraz (RC): É uma parceria que já extravasou, há algum tempo, a parte da composição. Começa a partir daí, mas estende-se a todo o projeto – seja no palco (como vamos ver no concerto do Maria Matos) ou na gestão do projeto. Tudo aquilo em que trabalhamos é pensado a dois, numa parceria que veio para ficar.
Como teve início esta parceria?
Zé Fialho Gouveia (ZFG): Conhecemo-nos há muitos anos num jantar em casa de amigos comuns. Desde o início que houve empatia e ficou logo em cima da mesa a hipótese de podermos fazer qualquer coisa juntos. Na altura, o Rogério perguntou se eu tinha algumas letras que lhe pudesse mandar. Desse jantar inicial surgiram então os primeiros temas para o disco Não tenhas medo do Escuro (2016).
Não podendo prever o futuro, a ideia é manter a parceria?
RC: Neste caso, acho que podemos prever o futuro… [risos]
ZFG: E já temos ideias que cheguem para mais uns quatro ou cinco discos…
Como é o processo de dar música às letras do Zé Fialho Gouveia?
RC: A única coisa que não fazemos juntos é a composição das letras. Na verdade, nos últimos dois discos, temos partido do conceito, é isso que nasce primeiro. Decidimos fazer um disco que fala sobre determinado universo, conversamos sobre as personagens, que histórias vamos contar, que tipo de canções vamos fazer. A partir daí, a bola passa para o lado do Zé.
ZFG: Depois faço as letras, envio ao Rogério, ele constrói a música e nascem assim as canções. Normalmente, tirando uma ou outra exceção, a forma como ele constrói as músicas tem ido ao encontro do ambiente sonoro que imagino para a canção.
Este é um disco em forma de prédio. Como surgiu a ideia de centrar toda a ação nos moradores dum prédio?
RC: Tanto este como O Coreto são discos com narrativas, mas um pouco diferentes: O Coreto tem uma história única, em que as canções acabam por ser capítulos da mesma história. O conceito nasceu de uma ideia minha, deste fascínio que sempre tive por coretos, e de um desafio que lancei ao Zé, de fazer um projeto em que o coreto fosse o ponto central da história, para que depois pudéssemos levar o concerto aos coretos enquanto palco. Nasceu desta ideia e depois o Zé criou este projeto, em que cada canção é um capítulo desta história e há uma sequência temporal entre as canções. Já o Reunião de Condomínio nasce da cabeça do Zé…
ZFG: N’O Coreto temos uma história que vai do princípio ao fim e que tem como pano de fundo as desigualdades vividas entre o interior do país e as grandes cidades. No Reunião de Condomínio partimos de um conceito. O Coreto nasceu do fascínio do Rogério pelos coretos. Eu também dava por mim muitas vezes a olhar para um prédio e a pensar que vidas são estas que estão lá dentro. Há uma porta pela qual todos os dias entram (e saem) várias pessoas, todas elas com vidas muito diferentes, mas que acabam por coabitar no mesmo espaço. Este pensamento assaltava-me muitas vezes e um dia achei que podia ser uma ideia engraçada para um disco. Inclusivamente já tínhamos um tema feito – ainda longe de pensarmos neste conceito – que se chamava Águas Furtadas. Já tínhamos o telhado, por assim dizer, e achámos que era engraçado construir o resto do prédio. Falei nisso ao Rogério e ele gostou da ideia.
RC: O que significa que és bom em quase tudo, menos em arquitetura porque começaste a casa por cima [risos]…
São personagens baseadas em alguém que conhecem?
ZFG: Eu diria que todos nós conhecemos estas personagens. São vidas dos nossos quotidianos. Todos nós conhecemos pessoas que vieram de outros países e que poderão ter tido alguma dificuldade inicial em instalar-se; casos de casais que se divorciaram; alguém que vive numa relação tempestuosa e tóxica; professores que trabalham muito longe do seu lugar de origem… Todos nós conhecemos estas pessoas ou já nos cruzámos com elas. Nenhuma delas é inspirada em ninguém concreto.
RC: Muitas delas nasceram do assunto que queríamos falar. Quisemos, por exemplo, abordar a situação dos professores, de serem colocados longe de casa, então criámos uma personagem – que neste caso é a própria casa. Em alguns casos nasceu assim, o assunto nasceu primeiro e depois criou-se o ângulo certo para isso.
A realidade de todos os dias é uma verdadeira fonte de inspiração?
RC: Sim. Com O Coreto queríamos que as pessoas se identificassem, que ouvissem a história e se relacionassem com ela. As pessoas vinham falar connosco e contavam histórias semelhantes porque reconheciam aquelas personagens das suas aldeias ou das suas famílias. Gostamos disso, porque, por um lado, aproxima as canções do público, por outro lado, como temos este objetivo de pôr as pessoas a pensar nos problemas atuais, na nossa construção enquanto sociedade, é mais fácil fazê-lo com personagens onde as pessoas se reveem.
Sebastião, personagem d’O Coreto, também está presente neste disco…
ZFG: A ideia surgiu durante o processo de composição. N’O Coreto, o Sebastião era alguém que tinha passado toda a vida na grande cidade e que decidia arriscar a mudança para a aldeia, mas acaba por não se dar bem porque não arranja emprego e decide voltar à cidade. O Coreto aborda uma realidade mais rural, enquanto Reunião de Condomínio é um disco profundamente citadino. Temos um disco da cidade e no disco anterior tínhamos uma pessoa que saiu da cidade, mas que acabou por voltar. Por uma questão de curiosidade narrativa, fazia sentido trazer esta personagem para este disco.
RG: Há uma coisa que assumimos sempre, é que teria de haver uma continuação d’O Coreto. Irá acontecer daqui a uns tempos. Começou a ser apelativa a ideia de alguns destes personagens poderem entrar n’O Coreto II. Para as pessoas, e felizmente temos tido muita gente que vai acompanhando o nosso trabalho, isto faz todo o sentido. Cria uma relação com os ouvintes, que de alguma forma ficam curiosos por saber o que vamos inventar a seguir…

O disco conta com várias colaborações, temos Quim Barreiros num registo raríssimo. O que vos levou a convidá-lo para o disco?
RC: Nunca ninguém tinha ouvido o Quim Barreiros num ambiente mais sério, sem trocadilhos malandros, sem o seu acordeão, sem aquele universo que o caracteriza. Eu gosto dessa malandrice de fazer algo que ninguém está à espera. Não chamaria alguém de quem não gostasse. O Quim Barreiros faz um tipo de música muito diferente do meu, não é um estilo de música que eu ouça muito, mas é muito genuíno naquilo que faz. Não é por acaso que se mantém há tantos anos a dar tantos concertos, toda a gente o reconhece, é praticamente uma marca nacional. Em Portugal há um bocadinho esse pudor de misturar universos. No Brasil fazem isso sem nenhum problema, misturam samba com forró, com MPB… Acho que também o podemos fazer, desde que haja admiração mútua. Depois a própria personagem é meio dramática meio cómica, isso também puxou um bocadinho para o Quim porque há algo de cómico no Vitorino. Esta participação só veio confirmar aquilo que eu já suspeitava: o Quim é um bom músico, canta e toca bem. Foi muito fácil trabalhar com ele em estúdio.
Como foi a reação dele ao vosso convite?
ZFG: foi fácil convencê-lo a aceitar o desafio. Na primeira chamada telefónica expliquei-lhe quem éramos, falámos do projeto e não foi preciso convencê-lo. Mostrámos-lhe a canção e ele disse que sim.
Também há duas colaborações femininas – Catarina Munhá e Luciana Balby. Como surgiram estes convites?
ZFG: Já éramos fãs da Catarina Munhá antes de partirmos para este projeto. A canção de que falei há pouco, Águas Furtadas, nasceu depois de ouvir o disco dela de uma ponta à outra, e em que ela fala de divisões de uma casa mas de forma um bocadinho mais abstrata. Ela tem uma canção que também se chama Águas Furtadas, mas que é completamente diferente da nossa “Águas” Furtadas (cujo título alterámos para Mágoas Furtadas). Foi daí que nasceu a inspiração para esta música. Fazia todo o sentido convidá-la porque éramos os dois fãs dela e ela tinha aqui um papel de madrinha de uma das canções, sem ter noção disso. Foi um nome que fez sentido desde o início.
A canção tem uma mensagem forte…
ZFG: Há esse outro lado, a canção fala sobre assédio, sobre tentativas excessivas de procurar um contacto mais íntimo e a Catarina, no trabalho que tem feito, também tem um olhar atento sobre a sociedade, sobre o papel da mulher, sobre os direitos das mulheres e também encaixava por causa disso.
Outra revelação são os desenhos de Samuel Úria que, para quem não sabe, foi professor de Educação Visual. Como surgiu a ideia de ser ele a fazer as ilustrações?
RC: Já tínhamos trabalhado com ilustração n’O Coreto e tínhamos gostado muito. Queríamos manter essa linha e lembrei-me do Samuel, até porque já tinha visto no Instagram algumas coisas desenhadas por ele. Mais uma vez foi também uma tentativa de surpreender as pessoas, dar-lhes alguma coisa que não estão à espera. Toda a gente conhece o Samuel como cantor e compositor. Somos os dois grandes fãs, mas pouca gente conhecia este talento dele para a ilustração. Embora tivesse gostado das coisas que vi dele, devo confessar que aquilo que ele nos apresentou excedeu as minhas expectativas. Acho que criou verdadeiras obras de arte. Tentámos que o objeto que acompanha o disco fosse algo muito valorizado. Além de querermos fazer o disco no formato retangular (como um prédio), também achámos que as ilustrações em formato normal de CD ficariam muito pequenas e não iam ser valorizadas. Queríamos dar todo o destaque porque é um trabalho incrível. Mesmo em palco estamos a fazer todos os esforços para conseguir projetar estas ilustrações e usá-las como fundo na narrativa do concerto.
A 9 de outubro apresentam o disco ao vivo no Teatro Maria Matos. Vamos ter convidados em palco?
RC: Vamos ter a Catarina e a Luciana. A agenda do Quim é muito complicada. Foi fácil ter o sim dele para gravar, mas é difícil que ele esteja disponível para os concertos.
ZFG: É bem possível que ele apareça no Maria Matos dia 9 para assistir ao concerto [risos]…
RC: E vamos ter o Zé em palco – como já acontecia n’O Coreto – para criar uma narrativa que em parte está no disco, mas que ele aprofundou ainda mais para os concertos. Ele estará em palco para ir contando a história…
ZFG: N’O Coreto criámos essa solução de eu estar em palco a narrar a história e isso foi muito bem recebido pelas pessoas. Inicialmente tínhamos algum receio de não conseguir agarrar as pessoas à história, mas acabou por resultar muito bem. No Reunião de Condomínio importámos este conceito sendo que, n’O Coreto, havia uma história que tinha um princípio e um fim. Aqui temos várias histórias que moram no mesmo prédio. Criámos um enredo extra que não aparece no disco, mas que permite fazer essa ligação do início ao fim do concerto, interligando as várias personagens.
Teremos Coreto II para breve?
RC: Sim, depois de uma pausa para refrescar as ideias até porque, quando se fazem muitas canções em pouco tempo, ficamos com receio de cair em repetições. Não podemos cansar as pessoas até para não termos a sensação de que já não estamos a fazer nada de realmente novo. O Coreto II há de aparecer, isso é ponto assente, mas a seu tempo…
Projetos futuros?
RC: Ideias para projetos não nos faltam. Estamos a pensar seriamente em criar uma empresa para vender projetos e ideias [risos]. Acho que, no tempo de vida que nos resta, mesmo que a vida seja generosa connosco, não vai chegar. Estamos a lançar um que comemora os 50 anos do 25 de Abril, chamado Anónimos de Abril, com o Júlio Resende, com o João Afonso e com a Joana Alegre, que é um projeto original baseado em figuras menos conhecidas das gerações nascidas depois de 1974 e que ficaram ligadas à revolução, mas que ficaram um pouco esquecidas na História. O Reunião de Condomínio está a começar o seu percurso. Temos cinco concertos marcados entre outubro e novembro e alguns a começarem a aparecer para o próximo ano. O Coreto vai voltar a aparecer, ainda tem estrada para fazer. O Reunião de Condomínio há de voltar lá mais para a frente. Vamos gerindo os vários projetos ao mesmo tempo.