A BoCA convida ao desvio para distorcer o real

Edição de 2025 da bienal apresenta-se, pela primeira vez, nas duas capitais ibéricas

A BoCA convida ao desvio para distorcer o real

Entre Lisboa e Madrid, mas com portas e janelas escancaradas para o mundo, a BoCa - Bienal de Artes Contemporâneas promete marcar a rentrée com criações em estreia mundial de Kiluanji Kia Henda, João Pedro Rodrigues & João Rui Guerra da Mata, Tânia Carvalho & Rocío Guzmán e Dino D’Santiago, que assina uma ópera.

Do cruzamento vivo entre as artes performativas e visuais, a música e o cinema, nasce o “Camino Irreal” que dá título a esta inédita edição da BoCA, passada simultaneamente em Lisboa e Madrid, reforçando, no entender da direção da bienal, “o eixo ibérico de criação e apresentação artística”.

Para John Romão, na última vez que dirige a programação (o curador é, desde abril, o diretor artístico nomeado para Évora 2027 – Capital Europeia da Cultura), trata-se de “um convite ao desvio, ao deslocamento simbólico e à possibilidade de reconfigurar o lugar do artista e do espectador” nesta “realidade atual cada vez mais distorcida”. E, se a era da pós-verdade já impôs uma percepção da realidade, de tal modo que “questionamos tudo o que julgávamos adquirido”, acredita Romão, serem os artistas aqueles a quem cabe “trazer os novos imaginários capazes de a contrariar”. Talvez por isso, as dezenas de artistas envolvidos nesta BoCA apostam em projetos desviantes e de resistência.

O primeiro grande momento desse “desvio” cabe ao músico Dino D’Santiago que, a convite de Romão, aceitou o desafio de montar uma ópera em cinco atos onde “cruza história, cultura e a identidade multicultural portuguesa”. Adilson, conta o músico, resgata o título ao nome do protagonista, “um homem afrodescendente, nascido em Angola, filho de pais cabo-verdianos, que vive há mais de 40 anos em Portugal sem nunca ter conseguido obter a cidadania portuguesa”. Com libreto de Rui Catalão, a peça entrelaça esta história passada entre o “labirinto burocrático que impede Adilson de ser plenamente reconhecido pelo país onde sempre viveu” com “outros testemunhos de injustiça social e discriminação”. Estreia a 12 de setembro, no Centro Cultural de Belém.

O músico Dino D´Santiago estreia-se na ópera com “Adilson”, um dos projetos mais aguardados desta edição da BoCA

Um par de dias antes, a 10 de setembro, começa oficialmente a bienal com uma obra emblemática de Alberto Cortés, considerado um dos artistas “com maior destaque na cena teatral espanhola da atualidade”. Depois de ter passado pelo Porto, em maio último, Analphabet traz ao Teatro do Bairro Alto “a invenção de um mito queer” através do qual, uma espécie de Peter Pan, “um espírito romântico”, se vai manifestando a casais em crise, “não para curar, mas para revelar”.

Cortés tem ainda outro projeto em curso nesta BoCA, desta feita numa colaboração artística surpreendente com o pintor português João Gabriel. Com estreia agendada para o início de outubro no Teatro de La Abadia, em Madrid, Os Rapazes da Praia Adoro tomacomo referência a intimidade presente no arquivo audiovisual do cinema pornográfico dos anos 70 e 80 [do século XX] que inspira as pinturas de João Gabriel” com a poesia das palavras e dos corpos que se revelavam como paisagens no teatro de Cortés. A peça chega a Lisboa, também ao Teatro do Bairro Alto, nos últimos dias da bienal, a 25 e 26 de outubro, e é uma das colaborações presentes entre criadores portugueses e espanhóis – há peças de Tânia Carvalho com Rocío Guzmán (Nossas Mãos) e de Francisco Camacho com Elena Córdoba (Uma ficção na dobra do mapa).

A pintura de João Gabriel ao encontro do teatro de Alberto Cortés em “Os Rapazes da Praia Adoro”

Com o programa ainda por fechar, e enquanto se aguarda o anúncio de mais artistas, na apresentação à imprensa, Romão apontou como “uma das principais apostas desta edição” a estreia mundial de Coral dos Corpos sem Norte, a mais recente criação do angolano Kiluanji Kia Henda. Para além de um espetáculo sobre a viagem e as migrações, que estreia na Sala Estúdio Valentim de Barros a 20 de setembro, o projeto comporta uma instalação de grande impacto no MAAT, visitável entre 4 de outubro e 3 de novembro, com três ativações performativas, de entrada livre, a 5, 12 e 19 de outubro.

Outro grande destaque da bienal em Lisboa é a mais recente criação de Milo Rau com a dramaturga e ativista francesa Servane Dècle, O Julgamento de Pelicot. Estreada em Viena e depois da passagem pelo Festival de Avignon, chega a Lisboa esta “leitura performativa” que se assume como um tributo a Gisèle Pelicot, mulher que foi vítima de mais de 200 violações sob submissão química ao longo de uma década. Uma peça que procura devolver “a dignidade da voz a quem foi silenciado” para ver, a 11 de outubro, no Panteão Nacional.

Na área do cinema, a BoCA, com a Cinemateca Portuguesa e a Filmoteca Española, apresenta Malamor/ Tainted Love, um ciclo em que os cineastas João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata colocam a sua obra em diálogo com a de outros, como John Waters, Pedro Almodovar, Rainer Werner Fassbinder ou Lucio Fulci. Para além desta “espécie de carta branca”, que decorre simultaneamente em Lisboa e Madrid, há ainda duas criações inéditas: a estreia mundial da curta-metragem 13 Alfinetes, uma encomenda da BoCA dedicada à iconografia de Santo António, também presente na capital espanhola através dos frescos de Goya na Ermida de San Antonio de la Florida; e a instalação fílmica Sem Antes Nem Depois, patente na Sociedade Nacional de Belas Artes a partir de 11 de setembro.

Outros destaques da bienal na capital portuguesa: Toda la Luz del Mediodía, do artista espanhol, residente em Lisboa, Julián Pacómio (a 13 e 14 de setembro); Ocean Cage, “um espetáculo imersivo e poderoso”, inspirado em “histórias dos habitantes de Lamalera”, centradas em “questões de solidariedade, coexistência económica e ecossistemas em vias de desaparecimento”, assinado pelo artista visual chinês Tianzhuo Chen e pelo performer indonésio Siko Setyanto (19 e 20 de setembro);Yo No Tengo Nombre, uma instalação performativa na Estufa Fria da autoria do coletivo teatral catalão El Conde de Torrefiel (de 9 a 15 de outubro); A Beginning #16161D, da dupla espanhola Aurora Bauzà & Pere Jou (a 24 e 25 de outubro); e Totentanz, de Marcos Morau e La Veronal (também a 24 e 25).

Quatro dramaturgos de referência no Museu Nacional do Prado

Na sequência de residências artísticas realizadas no Museu do Prado, em Madrid, Tiago Rodrigues, Patrícia Portela, Angélica Liddell e Rodrigo García escreveram e dirigirem agora criações inspiradas em obras da coleção de um dos maiores museus da Europa, num ciclo intitulado Palavras e Gestos: para uma coleção performativa no Museu do Prado. Explica John Romão que as performances vão ser “apresentadas em quatro salas distintas, têm cerca de 20 minutos, e proporcionam um percurso único que o público é convidado a fazer num Museu do Prado à porta fechada”. Para quem estiver a pensar numa ida a Madrid, anote na agenda que este acontecimento raro decorre a 27 e 28 de setembro e a 4 e 5 de outubro. Desvendada está já a pintura da coleção do museu que inspirou Patrícia Portela e que dará mote à peça que, com uma performer, a dramaturga portuguesa está a preparar: Os Fuzilamentos de 3 de Maio, de Francisco Goya.