A utopia do recomeço

Raquel André e Tonan Quito estreiam “Começar Tudo Outra Vez” na Culturgest

A utopia do recomeço

O teatro como possibilidade de ensaiar a vida e esta como uma torrente de possibilidades. A comunidade como abraço e a família como colo. Em Começar Tudo Outra Vez, Raquel André e Tonan Quito olham para o momento do nascimento como o princípio de todas as esperanças.

A toalha está posta e, à volta da mesa comprida que enche o palco, contam-se 23 cadeiras. No vídeo, projetado na enorme tela ao fundo, há também uma mesa comprida e 23 cadeiras. Hão de ser trazidos pratos, copos, talheres, guardanapos, tudo o que é preciso para um almoço de família. Em cena, estão Raquel André e Tonan Quito, no vídeo vemo-la a ela, a ele e aos seus pais, mães, filha/enteada, irmãos, amigos e parceiros neste projeto… Em Começar Tudo Outra Vez, que se estreia na Culturgest a 25 de junho e aí fica até ao dia 28, o teatro ensaia a vida e esta reinventa-se através dele.

É a primeira vez que os atores e encenadores trabalham em conjunto e, para este espetáculo, quiseram trazer as práticas artísticas tanto de uma como de outro. “A minha linguagem tem muito mais a ver com documentar o real, levar pessoas reais para a ficção; e o Tonan trabalha a partir da ficção para pensar a realidade. O vídeo foi onde juntámos esses dois mundos. A nossa família alargada faz, num palco, cenas das peças já encenadas pelo Tonan”, explica Raquel André. Na boca dos familiares, ouviremos deixas de O Ginjal e de As Três Irmãs, de Tchekhov, de Ricardo III, de Shakespeare ou de Entrelinhas, criada por Tónan Quito e Tiago Rodrigues. Experimentam-se relações de parentesco e todas as pessoas em torno da mesa têm um papel – no teatro, como na vida, mesmo que nem sempre coincidam.

No almoço de família, serve-se cozido, mas no palco da Culturgest servem-se memórias e inquietações sobre o futuro. “O que acontece quando alguém nasce?”, como foram os nascimentos dos seus pais? E os seus? “E se eu decidir não engravidar?”, pergunta Raquel, “e se eu sentir um vazio depois?”. Todas as interrogações são possíveis ali, todos os cenários podem ser imaginados. Raquel e Tonan hão de começar e recomeçar, uma e outra vez e mais uma e outra vez. “Olhamos para o teatro como uma possibilidade de ensaiarmos a vida. No teatro – e na arte em geral – podemos testar perspetivas ou ver perspetivas que, na vida, ainda não estamos a ver. Umas que estão mais invisíveis, outras que nunca existiram”, diz a atriz e encenadora. “O título do espetáculo remete para esse recomeço e vem até do próprio fazer do teatro. Sempre que fazes do início já não repetes da mesma forma, há uma possibilidade de mudança. Assim como quando nasce uma criança, tudo muda. Aparece uma nova organização e novos papéis, toda uma aldeia. E sempre uma possibilidade de se fazer melhor, uma reinvenção, de certa forma. O teatro como essa grande metáfora para o mundo”, reforça Tonan.

“O parto é poder”

Em Começar Tudo Outra Vez, ficção e realidade entrelaçam-se, para nos interrogarem sobre o que haveria de diferente se, ao invés de pormos em palco as mortes que abundam nas dramaturgias, falássemos dos nascimentos. “São mais importantes os fins do que os inícios”, há de acusar Raquel em cena. “Na história do teatro e do cinema não existem nascimentos. Vemos imensas personagens a morrer, mas não sabemos como nasceram. O nascimento está associado ao corpo feminino e as peças sempre estiveram dominadas por perspetivas masculinas, seja na forma como se escreve, seja na forma como se encena”, aponta a atriz.

Por isso, vale a pena “começar tudo outra vez” e ensaiar as tais possibilidades. À volta da mesa, tem-se a liberdade para imaginar o nascimento de Édipo, por exemplo, ou o de um possível filho de Romeu e Julieta, se não tivesse existido um fim trágico para estas personagens. “Sempre que nasce uma criança, há uma nova esperança. E no mundo, sobretudo no estado em que está agora com tudo aquilo a que estamos a testemunhar, que responsabilidade é que todos nós temos, enquanto aldeia dessa criança, em educá-la numa perspetiva política, para que isto não falhe? Há uma utopia nesse recomeçar”, sublinha Raquel.

Como se afirma em palco, “o parto é poder”; como se constata na apresentação deste espetáculo, “educar uma criança é um ato político”. Que cada bebé que nasça tenha em seu redor uma bolha de amor e que consiga os direitos devidos a qualquer ser humano neste mundo. Saibamos recomeçar, uma e outra vez, saibamos defender a utopia.