Com o retrato trasvisto do outro no coração

Artistas Unidos levam ao palco "Final do Amor" de Pascal Rambert

Com o retrato trasvisto do outro no coração

Depois do amor, o ódio. Inês Pereira e Pedro Caeiro dão corpo a uma espécie de duelo derradeiro entre um casal no ocaso da relação. Violenta, visceral e pungente, Final do Amor, peça de consagração de Pascal Rambert, estreia no Teatro Meridional, numa encenação de Nuno Gonçalo Rodrigues.

Pedro é quem começa. A poucos metros dela, a partir de uma aresta do quadrado suspenso do chão que compõe a cena, anuncia-lhe que acabou, que não se pode continuar “a adiar eternamente” a decisão de acabar. Gradualmente, o discurso vai-se tornando mais violento, “assassino”, como descreveria o encenador Nuno Gonçalo Rodrigues, que de Final do Amor diz ser, precisamente, “uma peça fria e assassina”.

O texto de Pascal Rambert chegou-lhe por vontade da atriz Inês Pereira. “E ainda bem que assim foi. Sinto um enorme alívio por ter sido ela a sugerir fazê-lo e não eu!”, confessa, apontando o estado de devastação emocional em que tanto a atriz como o seu par, Pedro Caeiro, terminam cada ensaio e, adivinha-se, cada récita.

É que, depois de ele estraçalhar sem contemplações a memória desse amor que já não existe, Inês responde. E não é meiga, longe disso, sobretudo a partir do momento em que vai à mais profunda fealdade de uma tríade de palavras “feias” para lhe anunciar que elas são como que o “retrato de ti no meu coração”. Aqui, “já estamos numa montanha-russa, os atores estão emocionalmente despidos, expostos perante a plateia e, devido ao dispositivo cénico [o tal quadrado suspenso] não têm onde se agarrar. É devastador”.

Chega então o momento de perguntar se haverá razão a assistir cada um deles? E quem ganha esta espécie de duelo derradeiro no “final do amor”? “Durante quase uma hora temos uma pessoa a dizer atrocidades na direção de outra sem que esta tenha algo que a proteja, nem sequer uma parede para se encostar ou uma cadeira para repousar o braço. Depois, isso volta a suceder, mas do outro lado. Portanto, e pelo que vamos percebendo por quem tem vindo a assistir a ensaios, parece ser uma impossibilidade tomar partido por um ou por outro.”

Embora exista essa “impossibilidade de nos posicionarmos, ora porque achamos que ele tem razão e ela está mal, como tão depressa percebemos que ele está a ser bruto e que ela é uma vítima”, Inês e Pedro são personagens onde se reconhece aquilo que o encenador define como “demasiada humanidade”. Perante o desnecessário e a brutalidade, eles são, como tantos outros, um casal em guerra, e como ele lhe lembra, deixando bem claro do que se trata quando o amor dá lugar ao ódio, “a guerra não é uma coisa engraçada”.

Do dramaturgo que escreve para os ‘seus’ atores

Final do Amor (Clôture de l’amour, no original), estreada com grande furor no Festival de Avignon em 2011, foi, à semelhança de quase todas as peças de Pascal Rambert, especificamente escrita para os atores, no caso, Stanislas Nordey e Audrey Bonnet. A relação do dramaturgo e encenador francês com os “seus” atores passa por uma escrita para intérpretes específicos, estando, entre muitos, as notabilizadas Emmanuelle Béart e Marina Hands ou os atores portugueses Beatriz Batarda e Rui Mendes, que protagonizaram, em 2018, Teatro, espetáculo encenado por Rambert no Teatro Nacional D. Maria II.

O texto, que os Artistas Unidos levam agora à cena, foi o que consagrou internacionalmente Rambert, tendo sido encenado em mais de uma dezena de países, dos Estados Unidos à China. Em Portugal, podemos conhecer duas versões: a de Victor de Oliveira, traduzida e interpretada pelo próprio e Gracinda Nave, em 2016; e a de Ivica Buljan, com Pia Zemljič e Marko Mandić, no Festival de Almada em 2018.

A tradução de Victor de Oliveira (publicada nos Livrinhos de Teatro) é, precisamente, a que serve a atual versão. “Procurando manter o mais possível a tradução, fiz sobre ela uma versão cénica que traduz muito da forma obsessiva com que me envolvi neste trabalho”, conta Nuno Gonçalo Rodrigues. “O objetivo foi, sobretudo, manter uma certa ambiguidade, muito presente na versão original em francês, e que em português nem sempre é possível. Acho que o espetáculo precisava disso, mais a mais, sabendo que o texto foi escrito para atores específicos e a Inês e o Pedro o estão a receber com essa desvantagem.”

Deste modo, o encenador sublinha “o intenso trabalho de adaptar ao corpo e à voz de quem agora diz aquelas palavras a tradução do Victor, pensando que tal como a peça original foi escrita para determinados atores, também a tradução foi feita para ser dita, no caso, pelo próprio Victor e pela Gracinda”.

Outro aspeto a que Nuno Gonçalo Rodrigues deu especial atenção foi à dualidade sempre presente no texto deste resvalar de “uma certa poesia, de um registo mais erudito e intelectual, para a maior banalidade, para o corriqueiro e para múltiplos estrangeirismos”. Um dos exemplos que aponta com especial graça é a evocação do mito de Orfeu e Eurídice surgir “de repente, entre um welcome, welcome ao meu mundo“.

Servido por dois atores “absolutamente incansáveis”, que fazem do texto autenticamente seu, Final do Amor prepara-se para arrebatar plateias a partir de dia 9, no Teatro Meridional, mantendo-se em cena até 25 de maio.