Infinitos corpos de possibilidades

“O Lago dos Cisnes” apresenta-se no CCB de 28 a 30 de maio

Infinitos corpos de possibilidades

Com texto de André Tecedeiro, Daniel Gorjão estreia, no Centro Cultural de Belém, “uma especulação” sobre O Lago dos Cisnes. Levando para o teatro a peça de Tchaikovsky, questiona as regras do bailado clássico e fala sobre transformação, amor e desejo.

Odile e Odette dançam entrelaçados, num amor que acreditam capaz de criar futuro e de fazer uma revolução. Mas já sabemos que, em O Lago dos Cisnes, não há histórias com finais felizes. Nem no clássico bailado de Tchaikovsky, nem nesta “especulação”, como lhe chama o encenador Daniel Gorjão, a dias da estreia no Centro Cultural de Belém, a 28 de maio.

Há muito que Gorjão queria levar esta obra para um palco de teatro e desviá-la do cânone do bailado clássico. Foi agora que aconteceu, depois de, já há uns anos, ter desafiado o escritor André Tecedeiro a escrever um texto “sobre a forma como pode reverberar nos dias de hoje”.

“Tinha vontade de trazer uma história da dança para o teatro, no sentido inverso ao que se costuma fazer. É raro trazer peças marcadamente do repertório da dança clássica para o teatro e dar-lhes palavras. Fui perseguindo essa ideia, mas o que podia fazer com ela já foi muitas outras coisas que não isto que é agora”, explica o encenador. O texto final, diz, acabou por ser muito partilhado entre os dois e também com os intérpretes. “Acredito que o espetáculo agora comunica mais com o tempo atual do que se o tivesse feito há dez anos.”

Fotografia de ensaio

Em cena, reconhecemos nomes de personagens, mas nem sempre elas correspondem ao perfil e à posição na trama que originalmente Tchaikovsky lhes deu. O Lago dos Cisnes está lá, com toda a sua carga dramática, mas está também com leituras que nos levam para outros caminhos: os da mutação, da aceitação (ou não) do outro, da violência e do medo, da culpa e da mentira. “Penso que toca vários temas ao mesmo tempo: a fluidez, o género, a família, o amor, o desejo – para mim, o desejo é muito presente no espetáculo”, sublinha Gorjão.

Questionar o padrão

Ao contrário do ballet clássico, que elege corpos perfeitos capazes de gestos coreográficos irrepreensíveis, aqui procuraram-se corpos disruptivos que nos confrontam com conceitos pré-estabelecidos. No palco, Batata, Duarte Melo, Inês Cóias, Rita Carolina Silva e Zé Couteiro não nos parecem menos admiráveis nos seus movimentos. “É o que dá esperar coisas de corpos alheios”, havemos de ouvir, na peça, a filha dizer à mãe – mulher tóxica, que tudo quer controlar –, perante a desilusão desta e a rejeição a que a condena. “Queria questionar o padrão dos corpos usados naquilo que é uma companhia de repertório. Em audição, escolhi estes atores, com estes corpos e estas histórias e, de alguma forma, quis trazer isso para cena”, afirma Gorjão.

Fotografia de ensaio

Por isso, nas audições onde escolheu os intérpretes, conta, foi em busca de “corpos reais”, sem nenhuma ideia já definida. “Estava aberto a ver pessoas que nunca tinha visto. Para este espetáculo, não podiam ser só os atores que conheço.” Depois, pediu-lhes movimentos a que não estavam habituados e foi de encontro ao que daí resultou. “Não quis anular o lugar de onde isto partiu. Há muitas coisas na coreografia que remetem para uma codificação coreográfica que existe no bailado clássico e fui à procura de outras referências, nomeadamente ao universo da revista Vogue. Foi uma tentativa de ver como é que isso se comporta nestes corpos que não estão treinados como estão os dos bailarinos clássicos. São corpos reais, com pouco treino a nível de movimento. Queria perceber como é que isto ressoava neles. Para mim, estas pessoas dançam com os seus corpos e isso está certo. É dentro dos seus movimentos que isto se torna bonito, frágil e vulnerável.”

Num cenário espelhado e ao som de música composta por Máximo propositadamente para o espetáculo, este O Lago dos Cisnes lembra-nos que somos todos “um corpo de possibilidades”. Ali naquele bosque, naquela água, todos se hão de transformar, de alguma maneira e será assim, afinal, que se criará um futuro. Bem vistas as coisas, “uma forma é só uma forma” e não há como mergulhar em nós mesmos para perdermos o medo. Haverá poesia maior no fim dos tempos?