No sótão de um prédio de Nova Iorque prestes a ser demolido, Vitor Franz (Marco Delgado), um polícia, e a mulher, Ester (São José Correia), deambulam por entre móveis e objetos enquanto aguardam a chegada de um velho comprador de antiguidades, Gregório Salomão (João Perry). O objetivo do casal é conseguir o melhor preço pelo espólio da família Franz, da qual só resta Vitor e o irmão Walter (António Fonseca), um médico de sucesso que se afastou da família para perseguir as suas ambições.

Com a chegada do vendedor, e perante a pressão da mulher, Vitor sente-se tentado a vender tudo por um preço sem consultar o irmão, de quem está desavindo há mais de 16 anos, altura em que o pai morreu. Entre a necessidade do dinheiro e o secreto desejo de ver Walter aparecer, Vitor acaba por ser forçado a recordar e a pôr em causa todo o seu percurso de vida, desde o dia em que o pai se viu falido, no decorrer do crash de 1929 que originou a Grande Depressão, até ao momento em que está prestes a confrontar-se com o irmão e com a sombra de um passado que lhe devorou os sonhos.

‘O Preço’ tem cenário de António Casimiro e João Lourenço

 

Da autoria do dramaturgo norte-americano Arthur Miller (1915-2005), O Preço é uma peça muito pouco conhecida, escrita em 1968, e levada pela primeira vez aos palcos portugueses em 1970, numa encenação de Jacinto Ramos. Toda a ação se projeta a partir da Grande Depressão e “não será estranho ver, de certo modo, o nosso presente no drama destas vidas”, sublinha o encenador João Lourenço. Pelas suas características, a dramaturgia de Miller parece não reconhecer-se à primeira vista: “há aqui qualquer coisa de Ibsen, pelas personagens, pelo constante diálogo com o passado”, sublinha o encenador.

Nesta encenação, que surge perante a ameaça concreta de ser a última levada à cena pelo Teatro Aberto devido aos cortes nos apoios estatais, destaca-se, para além de um texto magnifico servido por uma direção notável, grandes interpretações de um quarteto de atores que encarnam extraordinárias personagens criadas pelo autor de Morte de um caixeiro viajante.

Uma palavra muito especial para João Perry que, neste seu regresso ao palco, compõe superlativamente o comprador de origem russo-judaica Gregório Salomão, naquela que, nas palavras de Lourenço, será porventura “das personagens mais modernas da dramaturgia de Miller.”

“Está ai o público.” “Que entre”, responde o Diretor de uma companhia de teatro ao ar livre ao anuncio do Criado. Por esta altura já o público percorreu um longo corredor do Teatro São Luiz e se instalou no palco. A cortina fechada oculta a plateia de cadeiras vermelhas, vazias. O público, esse, já sente as “entranhas do teatro”. Dentro de momentos, a cortina abre-se. O espetáculo está a começar, e vai representar-se Romeu e Julieta, de Shakespeare. Erguem-se as máscaras que ocultam a verdade e alimentam as ilusões, num duelo entre o lado de cá e de lá dos biombos espelhados que nos separam, a nós, o público, da plateia vazia em fundo. Este é o “teatro das convenções”, mascarado e frio, que Lorca sentia querido pelo público, normalmente indiferente e insensível à procura da verdade através da arte.

Soltando amarras, o espetáculo prossegue, como se colocasse “o céu numa sala de teatro” que agora não existe. Estamos no Largo de Camões, ao ar livre, onde se faz ouvir o “manifesto de Lorca”, lido por Margarida Vila-Nova (antes, sobre o palco do São Luiz, a actriz era Julieta), num encontro com as palavras cantadas de Poeta em Nova Iorque, pela voz de Mitó Mendes (A Naifa). Para o encenador António Pires, este momento partilhado pelo público vindo do teatro e o público acidental, ocasional ou errante da praça lisboeta fixa a mensagem de Lorca: “o público não pode nem deve intervir no mais íntimo da criação artística”. A bem da verdade através da arte.

Margarida Vila-Nova numa cena de ‘O Público’

 

Último momento. Derradeiro. No Teatro do Bairro, em torno de uma caixa de areia, todas as máscaras caem. É, por fim, o tempo da verdade através da arte, do “teatro debaixo da areia”, da imaginação e da alegoria. Aqui pulsam os sentimentos e quebra-se a máscara. O próprio Lorca deixa cair a sua, assume e aborda a sua homossexualidade, e encontra-se consigo mesmo dentro do teatro. Deste teatro onde, partidas as portas, levantado o teto, apenas restam “as quatro paredes do drama.”

O Público enquanto manifesto pela liberdade

Não é estranho reconhecer em O Público os ecos surrealistas que abalaram Federico Garcia Lorca (1898-1936) nos finais da década de vinte e princípios de trinta do século passado, por via da influência de amigos como Buñuel e Dalí.  Mas, se a peça repercute esses ecos, acima de tudo, ela é como que um manifesto pessoal sobre o teatro e a arte, onde o mundo intimo do autor, inclusive a sexualidade, se liga estreitamente às suas conceções criativas. Ao opor aquilo a que chamou o “teatro das convenções” ao “teatro debaixo da areia”, Lorca procurou um caminho para que cada um encontrasse, nas palavras de António Pires, essa “espécie de laboratório crítico de nós mesmos”. Precisamente no último, nesse “teatro debaixo da areia”, aquele que é mais livre, mais abstrato e criativo.

Ao opor aquilo a que chamou o “teatro das convenções” ao “teatro debaixo da areia”, Lorca procurou um caminho para que cada um encontrasse, nas palavras de António Pires, essa “espécie de laboratório crítico de nós mesmos”.

 

Ao aliar ao texto de O Público passagens de Poeta em Nova Iorque e outros escritos do poeta e dramaturgo produzidos na mesma fase, o espetáculo de Pires – que o encenador chega a adjetivar como “pintura surrealista” – assume o caráter de manifesto, também ele muito pessoal, a favor da liberdade criativa dos artistas, num período em que se parece querer fazer depender a criação das vontades do público.

A peça vai estar em cena ao longo de 11 noites, de 5 a 16 de junho (exceto dia 12), e conta nos principais papéis com Adriano Luz, como o Diretor, Margarida Vila-Nova, como Julieta, e Laura Soveral, no papel de Prestidigitador.

Fazendo uso das suas palavras, nesta “espécie de arca do tesouro ou de caixa de Pandora” que é o teatro de cordel português setecentista, que surpresas encontrou?

Quanto se começam a ler estas peças avulsas, reunidas por terem sido vendidas como teatro de cordel, descobrem-se, surpreendentemente, naturezas muitos diferentes: há textos litúrgicos, satíricos e de crítica social, poéticos, filosóficos e entremezes. São precisamente os entremezes que tornam mais conhecido o teatro de cordel, porque contêm, digamos, uma forma muito volante na sua expressão dramática. Outra grande surpresa está precisamente na ideia de teatro popular. Não há dúvida que o teatro de cordel é popular, mas os seus autores eram geralmente pessoas eruditas. Dai encontrarmos textos muito bem escritos e diálogos dramáticos espantosos do ponto de vista literário. As personagens, essas sim, são populares, e correspondem a uma imagem bastante reconhecível pelas gentes de Lisboa.

Como procedeu à seleção dos textos e construiu o espetáculo?

Confesso que não houve grande critério científico na seleção. Recorri à coleção da biblioteca da Gulbenkian, que digitalizou estes folhetos de cordel e, a partir de casa, fui lendo tranquilamente os textos e tomando nota daqueles que me pareciam mais engraçados ou que me prendiam a atenção. Acabei assim por fazer uma espécie de salada, casando até cenas de textos diferentes, como uma espécie de potpourri de coisas que se associam naturalmente umas às outras.

E o resultado é…

Um espetáculo sobre “os desastres do amor” (precisamente o título de um nosso anterior trabalho) e muito sobre as mulheres… Porque são as mulheres que estão no centro da vida, porque são as mulheres que os homens amam, porque são as mulheres que impelem os amores felizes ou não são felizes no amor…

Trata-se, portanto, de um espetáculo muito feminino…

Diria que é um espetáculo muito divertido, muito variado e é um “show” de representação das quatro atrizes que o protagonizam. Refiro-me à Luísa Cruz e à Teresa Madruga, atrizes excecionais e profundamente ligadas à minha carreira, e à Rita Durão e à Sofia Marques, que trabalham habitualmente aqui na Cornucópia. Elas são brilhantes e, citando uma frase que retirei da literatura de cordel, “a mulher é como o camaleão”, afirmo tratar-se da maior das verdades pela capacidade de inconstância e transformação que se reconhece à mulher. Essa frase ainda mais se aplica às atrizes, e, porque não, a estas em particular, que se desdobram, ao longo da peça, em múltiplas personagens e registos.

Voltando aos textos. Foi difícil selecioná-los, tendo em conta o extenso acervo da Gulbenkian?

Pela qualidade do material sim, por isso, o espetáculo é longo, contrariando até, de certo modo, o espírito da literatura de cordel. Porém, o prazer que nos deu trabalhá-lo e vê-lo em palco foi mais forte e, como prefiro pecar por excesso do que por defeito – por defeito é sempre mais preguiçoso –, decidimos aproveitá-lo o mais possível.

Luísa Cruz e Luís Miguel Cintra numa cena do espetáculo ©Luís Santos

 

Um material certamente capaz de surpreender o público…

Com certeza, porque acredito ir haver muita gente a descobrir o manancial que existe na literatura de cordel setecentista. Há milhares de textos muito bons de literatura dramática portuguesa que foram desprezados, o que, aliás não surpreende, porque Portugal é assim…

Como escolheu o título?

Vem de uma peça – da qual, por sinal, não aproveitámos nenhum diálogo – que se chama Amor sem Pés nem Cabeça. É um daqueles “disparates” (que há muitos) sobre a maneira como se tecem os casamentos e como as pessoas se comportam dentro das relações amorosas numa sociedade de burguesia pequenina que se faz passar por gente fina, muito característica do final do século XVIII. Àquele título, acrescentei um “ai” que, no fundo, transmite aquilo que de pessoal coloquei ao serviço da peça. Ou seja, uma certa melancolia sobre a vida e as infelicidades de quem não consegue no meio de complicações mais ou menos ridículas fazer a vida que quer e ser feliz. Apesar de ser um espetáculo muito engraçado, tudo isso está também na peça, e acaba como que contido nessa interjeição que antecede o título.

Refere que alguns dos textos parecem estar à espera de ser transformados em “teatro de novos tempos”. Este espetáculo é o resultado dessa transformação?

Sim. Antes de mais porque não se trata de uma reconstituição histórica da vida na Lisboa do século XVIII. Há uma brincadeira constante com a atualidade, tanto que, numa coisa que me é muito grata fazer, exploro o anacronismo do ponto de vista cénico, nomeadamente através da cenografia e do guarda-roupa. O que representamos através destes textos de época acaba por ser o contemporâneo, o que demonstra quão livre é este material.

É uma relação diferente daquela que se tem com os clássicos?

No teatro de cordel, o prazer passa por descobrir ser melhor do que aquilo que pensávamos, sem nunca provocar a sensação de não estarmos à altura dos textos. A relação com os clássicos é diferente, é um bocadinho traiçoeira. Sou de um tempo em que os clássicos atemorizavam as pessoas, impunham respeito, davam medo e assustavam pela sintaxe difícil… lembro, quando traduzimos e encenámos Ricardo III, no princípio da companhia, considerarmos uma ousadia. Hoje, tudo se banalizou pois a relação com os textos é muito mais superficial. Já não se exige a intimidade com o clássico, pelo contrário, o texto ou o autor funcionam muitas vezes como um mero aval ou um selo de qualidade.

Há, então, uma imensa liberdade neste teatro de cordel…

A arte é por definição o terreno da liberdade, abre portas ao mundo e na cabeça dos outros. Este teatro também corresponde a isso, ainda mais hoje, numa altura em que, por imposição das lógicas do mercado, a arte está a deixar de ser livre.

Neste “destemperado jogo de entremezes lisboetas”, que Lisboa se reconhece na peça?

Há vários exemplos ao longo da peça, mas sublinharia um local recorrente nos textos: o Cais do Sodré. Na Lisboa setecentista aquele era um local de grande centralidade, com comércio, com barraquinhas de comes e bebes, com gente de toda a índole. Em suma, era um verdadeiro microcosmos da cidade. Hoje, é pouco mais que um local de passagem, e não serão poucos os que venham a pensar como o Cais do Sodré daqueles tempos é tão semelhante ao Centro Comercial Colombo dos nossos dias.

Porquê esta peça quando a Cornucópia completa 40 anos de teatro?

Depois de termos feito tantas obras-primas, tantos grandes textos da história do teatro, porque não fazer peças portuguesas que são secundárias neste nosso aniversário?

O teatro continua a ser um prazer?

Prescindi de muito para fazer teatro durante quase toda a vida. Tenho 60 e tal anos e o privilégio de não ter dado conta de aqui chegar. E tudo porque se faz teatro para nunca deixar de ser miúdo. Fi-lo sempre pelo prazer de brincar, mesmo quando as brincadeiras se tornaram muito complicadas intelectualmente.

Nesta peça, interpreta Peggen Mike, a principal personagem feminina. O que nos pode dizer sobre ela?

A Peggen é a filha do dono da taberna onde decorre a ação da peça. É uma rapariga de “pelo na venta”, como se costuma dizer, muito prática, muito trabalhadora, muito objetiva… Ela está de casamento marcado com um camponês, até que aparece o “campeão”. À semelhança de toda a gente, fica fascinada, acabando por se apaixonar por ele, pela sua poesia, pela sua bravura, pela novidade que ele representa. Mas, o desfecho de tudo isto não irá ser muito feliz…

O que mais a fascinou na Peggen?

Como não gosto de personagens lineares, encontrei na Peggen muito mais do que a dureza que normalmente surge associada a ela. O ser humano é sempre mais do que isto ou aquilo, é muitas coisas. E a Peggen, na forma como se relaciona com a família e com os outros, contem uma multiplicidade fascinante.

Há alguma característica nesta personagem que reconheça facilmente em si?

Há uma frase no texto, dita em relação à Peggen, que responde a essa pergunta: “Ela muda como o vento.”

Estreou-se no teatro, em 2006, precisamente com os Artistas Unidos, na peça A Mata, dirigida por Franzisca Aarflot. No espaço de um ano, voltamos a vê-la nas produções da companhia, nomeadamente em A Morte de DantonA Estalajadeira e, agora, nesta peça. É uma relação para continuar?

O primeiro trabalho que fiz foi, de facto, um bom começo, e aconteceu com os Artistas Unidos. No ano passado voltei a trabalhar com a companhia no Danton, e correu tudo tão bem que o Jorge Silva Melo me chamou para estes projetos. Aconteceu tudo muito naturalmente, e provavelmente é assim que irá continuar a ser.

Maria João Pinho estreou-se nos palcos, em 2006, numa produção dos Artistas Unidos

 

Teatro, cinema, televisão. Em qual das áreas prefere trabalhar?

Confesso que não tenho preferência. Tudo depende da equipa e do projeto. Claro que há paixões… adoro cinema! Mas também já fiz trabalhos no cinema onde as coisas não foram propriamente simpáticas.

E o teatro?

O teatro tem a relação com o público e dá-nos uma estrutura e uma bagagem que me preenchem enquanto atriz. Adoro o palco, mas também adoro a câmara… e também já houve trabalhos em televisão que gostei imenso de fazer. Se puder estar nos três, ótimo!

Vê-se que não concorda muito com aquela ideia, partilhada por muitos atores, de que se pudessem só fariam teatro…

Acho que esse discurso é algo presunçoso… É verdade que há trabalhos em televisão porventura pouco gratificantes, sobretudo porque os textos não são bons. Mas isso também acontece no teatro e no cinema. Seria demasiado romântico pensar que só o teatro é que é bom…

De entre os muitos cineastas que a dirigiram constam dois grandes nomes, infelizmente já desaparecidos: Raul Ruiz (Mistérios de Lisboa) e Fernando Lopes (Em Câmara Lenta). Que memória guarda deles?

Eram pessoas muito diferentes e é um privilégio para mim tê-los conhecido e trabalhado com eles. Dos Mistérios tenho memórias extraordinárias. O Raul Ruiz era um senhor encantador, uma criança num corpo adulto, muito sensível e disponível. Havia uma liberdade e um espaço de criação muito, muito agradável. E depois, como adoro filmes de época, com aqueles vestidos e perucas, senti-me sempre tão confortável que o meu trabalho fluía de uma maneira impressionante. Recordo ainda o casting e a empatia que criei desde o primeiro momento com o Raul: o tom de voz dele, o que quis saber na conversa que mantivemos, o modo como me olhava… Era um grande senhor.

E o Fernando Lopes?

Durante a rodagem do Em Câmara Lenta, senti que o Fernando estava muito zangado com a vida, com o cinema, com a cultura em geral… isso custava muito. Percebia-se o quão frágil e debilitado ele estava. Dávamo-nos muito bem… Recordo quando me sentava de joelhos ao lado dele e o via, incessantemente, a acender cigarros, uns atrás dos outros… Foi pena ele estar tão amargurado.

Voltando ao teatro, há alguma personagem que gostaria de inscrever na sua já extensa galeria?

Às vezes leio umas peças e penso: era mesmo esta personagem que gostaria de fazer. Mas, não tenho propriamente nenhuma personagem que ambicionasse interpretar. Isso acontecia-me nos tempos de escola… hoje não.

E projetos para o futuro? Onde a vamos poder ver após O Campeão do Mundo Ocidental?

Espero que não me vejam nas férias [risos]… Provavelmente, irá estrear nas salas um filme do Vítor Gonçalves, que apenas tem título provisório, e que rodámos há dois anos. Quanto a novos projetos, para já não tenho nada em mãos.

Porque o fado também é moda, o MUDE – Museu do Design e da Moda e o Museu do Fado apresentam Com Esta Voz Me Visto – O Fado na Moda, uma mostra que propõe um olhar sobre os trajes e acessórios que vestiram, e vestem, a “canção de Lisboa” desde os anos 40 do século passado. Inevitavelmente, o destaque maior da exposição vai para os vestidos de Amália, a fadista que reuniu à voz espantosa a importância da imagem, derrubando, nas palavras de Bárbara Coutinho, diretora do MUDE, “uma série de estereótipos, enquanto [se] afirma como uma mulher independente e emancipada, moderna e segura de si, atenta às novas modas e detentora de uma sensibilidade inata, elegante e sofisticada, plena de feminilidade.”

A marca de Amália nessa rutura acontece precisamente na predominância do negro no vestuário. Mais de uma dezenas de vestidos pretos, com ornamentações subtis e de extrema elegância, caracterizam a maioria das peças da fadista agora expostas, provenientes sobretudo do acervo do Museu Nacional do Teatro e da Fundação Amália Rodrigues.

Como sublinha a diretora do Museu do Fado, Sara Pereira, nos retratos de inícios de quarenta, Amália surgia normalmente “vestida com uma blusa branca, saia e xaile tradicionais”. Posteriormente, a adoção do preto tornou-se imagem de marca da fadista que confessava não ter dúvidas “que o vestido preto com o xaile preto que comecei a usar, deu uma presença mais agradável ao fado.”

A construção dessa imagem, ainda hoje tão vincada como é possível perceber no núcleo dedicado às fadistas da nova geração, deveu-se sobretudo a três mulheres: Anna Maravilhas, Maria-Thereza Mimoso e, mais tarde, Ilda Aleixo, com quem a fadista idealizou inúmeros figurinos. Ao longo das décadas, foram estas mulheres que criaram para Amália uma imagem que tanto contribuiu para fazer dela, citando Sara Pereira, “a Voz mais universal da nossa identidade”.

Mas, não se pense que a cor não tem lugar no espólio de Amália. Na sua versatilidade de intérprete, a fadista atuava muitas vezes, nas primeiras partes dos espetáculos que eram dedicadas ao folclore, com vestidos mais garridos e vivos, como é o caso daquele que encomendou a Pinto de Campos, inspirado em motivos regionais, para uma atuação no Lincoln Center de Nova Iorque, em 1966. A propósito dessa peça magnífica, também presente nesta mostra, Sara Pereira relembra que essa quebra na utilização do negro se deveu a uma sugestão do maestro Andre Kostelanetz “que lhe recomendou que não usasse preto, à frente de uma orquestra com todos os músicos vestidos de preto.”

O renascimento do fado e a sua projeção internacional na década de 1990, acabaria por proporcionar uma reinvenção da sua própria imagem. Mísia, com a sua irreverência e sofisticação, e Paulo Bragança, com uma “transmutação estilística total”, surgem como os primeiros representantes dessa mudança. As fadistas da nova geração, como Mariza, Ana Moura, Carminho ou Aldina Duarte “atestam um cuidado renovado com a imagem”. Ao longo da exposição é possível compreender esse percurso, como se as peças de João Rôlo, José António Tenente, Fátima Lopes, Ana Salazar ou Luís Buchinho para as atuais estrelas do fado se tornassem extensões das suas próprias vozes.

Em Com Esta Voz me Visto expõem-se ainda alguns acessórios marcantes para a história do fado, sublinhando-se a icónica boina e o cachené de Alfredo Marceneiro, o Cristo em ouro e diamantes de Rodrigo ou as chinelas que Tiago Cardoso fez para Raquel Tavares que tinham como referência a iconografia associada a Severa.

O que o atraiu neste filme do realizador Bille August?

Já tinha trabalhado com Billie August no filme Casa dos Espíritos. É um realizador muito gentil, interessante e atencioso. Sabe o caminho a seguir, é alguém em quem podemos confiar. É muito bom poder trabalhar com uma pessoa de quem realmente se gosta.

Adaptar um livro com sucesso ao cinema é sempre uma tarefa difícil. O que acha que os leitores do livro esperam do filme?

Adaptar um livro ao cinema é de facto muito difícil. O filme parece que nunca vai estar ao nível do livro. Claro que há romances, como Anna Karenina ou Dr. Jivago, que os leitores pensam: ainda bem que podemos ver o filme, o livro é tão grande. Acho que no caso do Comboio Noturno para Lisboa, o romance não é tão denso, e é mais fácil de se captar o espírito do livro. Espero que neste caso haja muitos espetadores que vejam o filme e queiram ler o livro.

A sua personagem, Raimund, é um homem solitário. Gabriel García Marquez disse que “a solidão é o contrário de solidariedade”. Acha que a solidão é um problema persistente da nossa sociedade?

Sim, acho que a solidão é um problema, principalmente das grandes cidades. Penso que quanto mais concentrados estamos, quanto mais barulho e informação nos rodeia maior é a necessidade de nos isolarmos. No campo as pessoas respiram de outra forma. As casas têm mais espaço e o meio envolvente é amplo. Isso permite uma maior abertura por parte das pessoas, mais convívio e uma menor necessidade de isolamento.

Já esteve em Lisboa várias vezes. Há algo em particular que o faça gostar da cidade?

Gosto bastante de Lisboa. É uma cidade com história e isso faz dela necessariamente uma cidade interessante. Fascina-me o facto de muita gente, essencialmente idosos, conseguir viver em casas muito antigas e degradadas (desmoronamento), mas muito belas, no centro da cidade por uma renda razoável. Sinto que estas pessoas fazem de Lisboa uma cidade habitada. Desta vez descobri o fado, e gostei bastante. Sou um grande apreciador de música irlandesa e encontrei algumas semelhanças com o fado.

O que pode esperar o público português do filme?

Espero que o filme permita ao público conhecer um pouco melhor determinados aspetos da sua história. Espero que faça com que se sintam orgulhosos por serem portugueses.

Existem novos projetos para breve?

Para já há mais uma série dos Bórgia. Tenho também alguns guiões. No entretanto, espero fazer uma série de coisas como montar a cavalo, passear de barco, arranjar partes da casa que precisam de pintura, viver um pouco.

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