Quando passam quase 40 anos sobre o assassinato de Pier Paolo Pasolini (1922-1975), a obra deste vulto maior da cultura italiana do século XX vai marcando o panorama teatral português por estes dias. Depois da KARNART ter explorado o romance inacabado Petróleo, ou do Teatro da Cornucópia ter apresentado a “tragédia clássica” Pílades – e, antes disso, ter permeabilizado o “seu” Íon de Eurípedes com um trecho de Pasolini –, John Romão apresenta, nos próximos meses, duas leituras do díptico Teorema e Pocilga, textos que resultaram em filmes, de 1968 e 1969, respetivamente.

No primeiro espetáculo, Romão regressa ao “ambiente” que já havia contaminado a peça Cada Sopro, uma “reapropriação” de Teorema pelo australiano Benedict Andrews, coencenada com Paulo Castro para a edição de 2013 do Festival de Almada. O encenador (e, neste caso, também ator) apresenta no Teatro São Luiz “uma experiência sensorial e de contemplação”, de certo modo mais próxima do filme homónimo e das problemáticas sobre “o sagrado e a linguagem” que rodeavam Pasolini à época em que o dirigiu.

“A função de ver é essencial no filme, que praticamente não tem palavra”, sublinha Romão. Em Teorema, o espetáculo, respeita-se a tese pasoliniana da “linguagem da ação” associada ao cinema enquanto “realidade tout court” (o espetáculo integra, a propósito, o Festival Temps d’Images). Assim, a cena torna-se “cinematográfica, apesar de a cortina subir e descer recorrentemente”. Dispensa-se praticamente a “língua escrita-falada”, buscando-se uma procura do sagrado (na contemplação do movimento) aqui encarnada por 12 skaters que assumem o papel de “estrangeiros invasores” do conforto e segurança do “palácio burguês”.

Em Teorema “busco uma experiência de sacralização que encontre a graça na suspensão, no salto, na queda”, sublinha o encenador. “Os skaters [que nesta leitura substituem o enigmático ‘visitante’ que surge para colocar em causa a “ordem” burguesa que “perdeu o sentido do sagrado”] funcionam como figuras profanas, móbil para a captação do desejo, representando enquanto grupo, ícones da sociedade capitalista de hoje. Isso dá-lhe um estatuto de entidade divina, iconográfica e fetichista”. Simultaneamente, “procuro neste grupo algum paralelismo com o subproletariado que Pasolini não se cansou de filmar. Também os skaters são marginais, embora filhos da sociedade de consumo e representem, hoje, uma marginalidade que se tornou ‘estilo’, logo assimilada pelos padrões sociais em que vivemos.”

Num espetáculo para skaters e ator (esteve para ser um bailarino, por sinal o antigo colaborador de Pina Bausch, Damiano Ottavio Bigi, que Romão conheceu em 2012, em residência artística na Bienal de Veneza) há ainda outro elemento preponderante em palco: um músico – que está para o filme como a personagem do ‘mensageiro’. O acordeonista Fábio Palma interpreta, ao longo do espetáculo, a peça “religiosa, quase barroca mas muito experimental” Et exspecto da compositora russa Sofia Gubaidulina. “Agradava-me ter a presença do acordeão, um instrumento conotado com a música de raiz popular; e essa sonata de Sofia tem muito ar, esse ar que ela trabalha exemplarmente e que eleva os protagonistas em cena”, frisa.

Em janeiro, Pocilga

Se Teorema é “uma peça visual e sonora, feita em função do movimento”, Pocilga é uma peça para atores com a palavra no epicentro da ação. Aos olhos do desfecho dessa vida violenta que Pasolini viveu, reforça-se a ideia de os dois textos/filmes formarem um díptico. “Ambas parecem antecipar a morte do autor. O modo como leio Teorema sublinha, dentro das suas múltiplas camadas, as circunstâncias em que morreu; Pocilga era assumido pelo próprio como um texto autobiográfico, no sentido em que as práticas privadas do protagonista eram tão reprovadas socialmente como a homossexualidade do autor. Mas, o final vai ainda mais longe e olha sobre o modo como o desejo devora o homem”, sublinha Romão.

Na sua aparente simplicidade, Pocilga é uma peça sobre identidade e política. O encenador conjuga elementos saídos das duas narrativas paralelas do filme (uma ambientada numa comunidade canibal do século XVI e a outra na Alemanha dos anos 60 do século passado) para contar a história do filho de um candidato a primeiro-ministro que tem como segredo as visitas regulares à pocilga para manter relações sexuais com porcos. Quando o pai descobre que o seu adversário político teve um importante papel nos crimes do nazismo, é confrontado com o vício privado do filho, e enceta um jogo de ocultação que culmina num desfecho trágico.

Pela primeira vez encenada em Portugal, a peça conta com atuações de Albano Jerónimo, João Lagarto, Ana Bustorf, Cláudio da Silva, Pedro Lacerda, Mariana Tengner Barros e Paulo Pinto, no papel de Espinoza, o filósofo, encarnado num porco. Como diria Pasolini, “a burguesia é só verborreia” e Pocilga, nesta versão de John Romão, faz-lhe efetiva justiça.

Pasolini, 40 anos depois

Crime político, ou “o desejo que devora o homem”? Pasolini foi assassinado a 2 de novembro de 1975, na praia de Ostia, a alguns quilómetros de Roma. As circunstâncias da morte permanecem até hoje por esclarecer, sabendo-se que terá sido espancado e, depois, atropelado com o seu próprio carro. As rodas de skate que rolam em palco no Teorema de Romão cercam o protagonista (o próprio Romão). Projetam essa morte, mas ao mesmo tempo parecem fazer viver uma obra e um pensamento que parecem irresistíveis aos dias de hoje. Será pelo teor anticonformista? Será pela importância de voltarmos ao político?

Romão confessa ter sido absolutamente casual esta aproximação a Pasolini. “Terá acontecido em 2012 esta fixação na sua obra. Começou, penso, numa sugestão do Jorge Silva Melo que selecionou algumas peças enquadráveis no trabalho que vinha desenvolvendo, nomeadamente uma de Genet e, precisamente, a Pocilga, de Pasolini”. Mas, compreende “o fenómeno que alguém designou como Pasolini renaissance”, e que até tem filme a estrear brevemente [Pasolini, de Abel Ferrara, com Willem Dafoe no papel principal]. “Fazer Pasolini é inevitavelmente um ato político, e a sua obra e pensamento, até porque era um marxista empenhado e envolvido, mantêm-se profundamente atuais e urgentes”. Porém, nestes dois espetáculos, confessa, “não senti a necessidade de ser tão político quanto Pasolini foi.”

Como justificar então este apelo? “Sinto um eco constante de Pasolini. Encontro-me enquanto criador no trabalho dele, que é complexo e desafiante. Há muito, mesmo muito para descodificar…” E estas duas peças são isso: “nada do que se diz é, tão só, aquilo que se disse”. Tal qual a realidade que Pasolini fixou, pensou e legou aos vindouros.

Em tempos como os que vivemos, porquê escolher como tema para esta nova criação um movimento tão vincadamente romântico?

O projeto começou por nascer de um desafio da Luísa Taveira [diretora artística da CNB] para criar uma peça com orquestra, que envolvesse músicos e bailarinos de uma forma não convencional, ou seja, não ter uns no palco e outros no fosso de orquestra. Com o Pedro Carneiro, e após muitas conversas, chegámos a este movimento e às ideias que ele preconiza. Apesar de pertencer a uma época e a um contexto muito específico, a essência do sturmismo ultrapassa a questão da emoção versus razão e a oposição ao classicismo vigente no século XVIII. Este movimento está profundamente ligado à essência do ser humano, do homem em crise por apego à forma. A forma é uma recorrência humana do ser gente, que cada um de nós assume para se sentir mais seguro no mundo. Para nos libertarmos, precisamos de renunciar às formas existentes e criar outras. É essa a dinâmica do acontecer, logo todos os tempos são tempos para abordar esta temática.

Mas, aos olhos do sturmismo, essa libertação das formas que conduz a novas formas é deveras emocional…

Por isso optei por tratar a peça a partir das emoções básicas dos seres humanos, estabelecendo quatro ciclos: o do medo, o da alegria, o da tristeza e o da raiva. Através destas emoções criei uma forma coreográfica que se destrói a partir de cada uma dessas mesmas emoções. E, ao criar uma nova forma, estabelece-se um ciclo contínuo de destruição e criação.

Pedro Carneiro foi o parceiro ideal para um projeto como este?

O Pedro é um músico especialmente intuitivo e criativo. Neste espetáculo, a partir das sinfonias de Haydn, sobretudo a partir das sinfonias n.º 44 e reminiscências da 45, temos elementos de uma enorme capacidade dramatúrgica que o Pedro reajusta e recompõe de um modo extraordinário. Sinto que em Tempestades estamos a viver um momento único de plenitude criativa.

Independentemente de Haydn ser o grande compositor deste movimento, a sua música foi uma escolha inteiramente consensual?

Absolutamente. Trata-se do compositor mais representativo do sturm und drang, foi um visionário e alguém que mudou a história da música. As suas composições têm a marca do movimento…

Como é trabalhar a partir da sua música?

O coreografo não precisa de trabalhar a música tal qual aquilo que ela nos transmite. O desafio é, precisamente, não cair nessa armadilha. Por natureza, uso a música mais como ambiente do que como suporte para criar movimento. Aliás, todo o material coreográfico de Tempestades foi criado sem música para evitar contaminação. Os bailarinos trabalharam quase sempre no silêncio, ou, pontualmente, com música que nada tem a ver com aquela que vamos usar no espetáculo.

Para além da CNB, nos últimos anos tem coreografado para outras estruturas, nomeadamente as companhias de dança de Angola e Moçambique. De que modo é que estes trabalhos têm marcado a sua perceção da dança e o seu percurso enquanto coreógrafo?

Se estiver confinado a trabalhar sempre com as mesmas pessoas vou ter a tendência de afunilar as minhas ideias. Lá está aquele conforto da forma que é o mote de Tempestades. Trabalhar com pessoas de outros locais, com outras vivências e noutros contextos é extremamente enriquecedor. As pessoas têm resposta física em função da sua latitude e isso tem-me ensinado muito. Quando chego a África não vou com a pretensão de impor uma maneira de estar e de fazer. Em Moçambique, por exemplo, percebi que as pessoas pensam com o corpo, ou seja, o gesto é integralmente uma extensão do pensamento que, incrivelmente, já sai organizado em dança. Nesse sentido, quando me deixo contaminar por estes ambientes, sinto que acrescento mais-valias à minha condição de criador. Se há medo que tenho é o de achar que “já sei”. O que tal implica são riscos que não tenciono correr porque, aquilo que me move, é conseguir reinventar-me, seja como coreógrafo, seja como pessoa.

Como é que avalia o estado da dança em Portugal tendo em conta o seu passado enquanto bailarino da CNB?

Tudo é diferente. Na época em que dancei, a companhia teve um papel importante enquanto museu vivo da dança. Porém, durante anos, fechou-se quase por completo no repertório. Só para se ter uma ideia, ao longo dos quase 20 anos de carreira como bailarino fiz apenas um papel de criação, tudo o resto eram reposições. Hoje, tudo é diferente. Na CNB, por exemplo, tudo se altera com a entrada do Jorge [Salavisa] que abriu portas a novos coreógrafos. Algo que a Luísa continuou e aprofundou, trazendo para a CNB pessoas de todas as áreas. Hoje, Portugal tem um leque de criadores extraordinários, gente com outra visão, com uma formação que lhes dá uma perspetiva mais ampla da dança. E a minha geração também está a aprender com eles.

Ainda sente vontade de dançar?

No estúdio ainda me perco um pouco, mas subir a um palco não. Confesso que não dei conta de ter deixado de dançar, porque um dos meus maiores prazeres é transmitir com o meu movimento aquilo que estou a sentir. E ver o movimento nascer no corpo de outra pessoa é algo que me dá uma enorme adrenalina. Tal qual como quando os meus bailarinos sobem ao palco para fazerem o espetáculo.

Há pelo menos três razões incontornáveis que levam Luís Castro e a KARNART a reincidir na obra de Raúl Brandão (1867-1930): o universo das personagens, a marca daquilo que poderíamos designar como “portugalidade” e as potencialidades performativas dos seus textos. A Farsa, romance datado de 1903, conjuga-as na perfeição. As personagens são um “espelho social”, tão particulares como universais; “os lados sociológico, antropológico e telúrico” vincam uma certa ideia de portugalidade, que se encontra mais próxima dos nossos tempos do que supomos; e o modo como a palavra “humaniza as coisas do mundo” oferece um amplo campo de experimentação ao nível performativo e plástico.

Para adaptar o texto de Brandão à linguagem criativa da KARNART, Castro procedeu a um intenso trabalho dramatúrgico que conduziu à expressão cénica de duas partes distintas no espetáculo. Numa primeira, o móbil é sobretudo performativo, com Sara Carinhas a entregar-se à corporalização das várias personagens do romance, sendo o movimento e o gesto partículas materializáveis do caráter dessas mesmas personagens e da sua imanente ligação ao mundo, à paisagem e à terra (o “lado telúrico” da obra de Brandão que muito seduz o diretor do espetáculo). A atriz é peça de museu, “objeto instalado”, até substituir a narração em off e humanizar-se ao ser ela mesma a assumir a palavra. Segundo Luís Castro, um trabalho como este requer “a capacidade técnica e o rigor de uma atriz como Sara Carinhas [que trabalhara com a KARNART em 2010, em Húmus], tão eficaz no campo performativo e plástico como enquanto atriz no sentido mais ‘clássico’.”

Na primeira parte do espetáculo, a atriz entregar-se à corporalização das várias personagens do romance de Brandão.

 

Na segunda parte do espetáculo, a “materialização” da atriz encontra um novo desafio. Tal qual objeto vivo (uma boneca, talvez) de olhos vazos, cega como uma sombra, percorre sete mesas, cada uma com três níveis, construindo 21 pequenas instalações, num processo que o público é convidado a assistir bem de perto, enquanto a narrativa e a excelente paisagem sonora criada por Adriano Filipe nos conduzem pelas tortuosas fragas do humano. Para Sara Carinhas, “apesar da exigência e da meticulosidade requerida, a construção dos objetos em tempo real assemelha-se ao trabalho sobre os textos. É necessário dominá-los, senti-los e saber como os manipular.”

A Farsa, que estreia a 25 de setembro na Sala-Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, é mais do que um espetáculo de teatro. É uma experiência sensorial de luz e sombra pelos trilhos das palavras e das imagens, onde somos livres de desfragmentar contextos e emoções a cada momento. Um processo que não se esgota na última récita no D. Maria II. A partir de 29 de outubro, o espetáculo continua no Gabinete Curiosidades Karnart, onde, como esclarece Luís Castro, será apresentada “uma variável perfinst de reflexão sobre este mesmo objeto”.

É para lá que uma parte importante da humanidade deseja ir quando chegar o seu tempo. Desde tempos imemoriais, é tido como a morada dos deuses e é fonte de assombro e reverência. Não é de estranhar que a arquitetura monumental aponte para o céu, de uma maneira muito mais exagerada do que a funcionalidade ou prudência justificariam. Menires, torres sineiras ou de menagem e minaretes dominaram a paisagem de fabrico humano até muito recentemente, quando a arquitetura civil conquistou as alturas.

Fomos visitar uma seleção destas estruturas religiosas de maior relevo em Lisboa, algumas das quais oferecem acesso público para vistas únicas da cidade. Os Urban Sketchers de Portugal, um grupo com formações heterogéneas, unido pelo gosto do desenho, oferece-nos a uma visão mais pessoal e artística destes monumentos.

 

Igreja de São Vicente de Fora. Desenho de Eduardo Salavisa

A visita ao mosteiro inclui o acesso ao terraço.A sua localização única oferece uma visão imperdível da cidade e do estuário do Tejo.

Largo de São Vicente
Tel. 218 244 400

Mosteiro dos Jerónimos. Desenho de José Louro

Está ao nível do mar mas é um dos pontos altos da arquitetura religiosa portuguesa. A sua nave, com colunas de 16 metros de altura, é também das mais impressionantes do país.

Praça do Império
Tel. 213 620 034

Sé de Lisboa. Desenho de Pedro MB Cabral

A Sala do Tesouro da Sé tem uma sacada virada para o rio, onde se podem apreciar os telhados de Alfama.

Largo da Sé
Tel. 218 866 752

Igreja de Santa Engrácia / Panteão Nacional. Desenho de João Catarino

O guardião da nossa memória e identidade, exemplar destacado do barroco português, oferece um miradouro privilegiado da cidade e do rio.

Campo de Santa Clara
Tel. 218 854 820

Basílica da Estrela. Desenho de Rosário Félix

O acesso à Basílica contempla a possibilidade de subir ao zimbório, ainda que apenas do lado interior.

Praça da Estrela
Tel. 213 960 915

“Não há dias sem morte”, constata Luzia no quarto fechado onde remexe em papéis, faz ginástica compulsivamente e exaspera, enquanto persente estar no caminho para o esquecimento, o que a faz estar só e cada vez mais perto do fim. Foi uma enfermeira dedicada, colecionou nomes, muitas histórias e muitos homens. Foi, diz a momentos, o que a tornou “uma puta dos mortos”.

Luzia sabe que vai morrer. Sabe, porque o deseja. O quarto onde a encontramos é a sua cabeça, uma prisão; o corpo, o rasgo da sua libertação. É assim que Gonçalo Amorim vê a personagem do monólogo original de Cecília Ferreira, texto vencedor do Grande Prémio Teatro Português Sociedade Portuguesa de Autores/Teatro Aberto, em 2013.

Para interpretá-lo, conferindo-lhe uma densidade que extravasa (no melhor sentido) os limites das emoções e da fisicalidade, está Mónica Garnel. “Sendo um monólogo e não havendo contracena, era importante ter uma atriz com as suas capacidades”, sublinha o encenador. “Até aos 12 anos, a Mónica fez ginástica de competição, e há muito tempo que desejava encontrar no teatro um papel a que desse uso aos recursos físicos que adquiriu em criança”.

Quanto ao texto, Amorim considera-o de uma enorme riqueza, tanto pela complexidade de uma personagem “esquizoide como Luzia”, como pela “sua inequívoca teatralidade”, não descurando um “humor apurado e desconcertante”. A música de Joana Sá e Luís Martins estabelece “as três temperaturas” (como “andamentos”) que a encenação definiu para o espetáculo: a primeira “em que se mergulha na depressão”, a segunda de “euforia e violência”, e uma terceira em que se cumpre a ritualização da morte, “a lembrar a simbologia do Dia dos Mortos mexicano”.

Uma vez que o julgamento de Flaubert é ponto de partida para este espetáculo, pode presumir-se que Bovary seja muito mais do que a adaptação do romance?

Para ser rigoroso, diria que Bovary é também uma adaptação do romance. Interessou-me pegar no julgamento de Flaubert, sob acusação de atentado à moral, como partida para esta adaptação. Como tal, parti da relação íntima que cada um de nós estabelece com um grande romance, como é Madame Bovary, fazendo-a acontecer paralelamente com o material histórico provindo do julgamento. Ao invés do encontro estrito com o romance, interessa confrontar essa mesma obra de arte com a sociedade, a lei e o Estado, à procura de descobrir como eles se relacionam com uma forma de arte que é simultaneamente crítica e intima. Esta mesma relação é avivada nos dias de hoje, tornando-se um assunto sobre o qual importa refletir.

É, então, através do julgamento que se conta a história?

É curioso constatar que, mais do que o próprio Flaubert, quem estava a ser julgado era a protagonista do romance, Emma Bovary – uma mulher em busca da embriaguez da felicidade, que a procura fora de todas as convenções sociais da época. Durante o julgamento, tanto a acusação como a defesa tratavam as personagens como se fossem pessoas reais, culpadas ou inocentes. Daí, o romance ir sendo constantemente citado, através das palavras e dos atos dessas mesmas personagens, como uma maneira de contar a história a partir do ponto de vista dos advogados de acusação e defesa. É, já em si, um debate dramatúrgico.

A tua admiração pelo romance foi determinante para o adaptar ao teatro ou pesou igualmente o facto de ter existido um processo legal contra ele?

A genialidade de Flaubert é ser lido hoje com a mesma intensidade e intimidade com que era há 150 anos. É muito estimulante lidar com uma obra de arte genial e preciosa na forma como usa a palavra e, ao mesmo tempo, abordarmos aquele processo que levanta questões prementes. Mas, se há algo que se sobrepõe a tudo é o mistério e “a inquietação injustificada”, para citar o romance, da personagem Emma. Esse é o verdadeiro motor da nossa adaptação.

Como é que este projeto nasceu e se desenvolveu?

Como em todos os meus projetos, o primeiro passo é descobrir o vocabulário que vou desenvolver. Bovary começou com uma conversa com a Carla Maciel, que pretendia fazer qualquer coisa em torno desta personagem. Como gostávamos tanto do romance, desafiámo-nos mutuamente. Depois, encontrámos cúmplices (o Pedro Gil, o Gonçalo Waddington e a Isabel Abreu). Formada essa família de atores, sem pensar ainda em papéis, preocupou-me o conceito de adaptação – iríamos deixar inspirar-nos pelo romance? Iríamos ser-lhe fiéis? Ou, quem sabe, iríamos subverte-lo? Até que surgem as atas do julgamento, e percebemos que seria aí que iríamos encontrar o mecanismo pretendido para o espetáculo.

Como é que descobriste essas atas do julgamento?

Apesar de haver alguma literatura sobre o caso, e ai ter começado por me basear, por mero acaso encontrei uma versão integral do julgamento em língua portuguesa. Foi quando estava a preparar o By Heart [espetáculo apresentado por ocasião dos 10 anos do Mundo Perfeito], e onde atuo com caixotes cheios de livros que tinham pertencido à minha avó. Num deles descubro uma edição de Madame Bovary dos anos 60, com o julgamento integral em apêndice.

Para quem desconhece a história do julgamento, qual foi o veredito?

Flaubert é absolvido, mas o julgamento serve como aviso. Assim, apenas uns meses depois, o mesmo advogado de acusação consegue condenar Charles Baudelaire pela obra As Flores do Mal, entretanto proibida. É curioso constatar como a França daquela época parecia esquecer os valores da revolução e assumia uma tendência conservadora, marcadamente instituída pela “boa moral cristã”.

Pedro Gil, Tiago Rodrigues, Carla Maciel, Isabel Abreu e Gonçalo Waddington numa cena da peça.

 

Por falar nessa tendência conservadora, podemos considerar que Bovary surge na continuidade de um projeto como Três dedos abaixo do joelho, concebido a partir dos textos dramatúrgicos censurados pela ditadura portuguesa?

Podemos considerar que sim, mas não é um espetáculo semelhante. Acho que no meu percurso há questões que se repetem, há uma preocupação latente em relacionar-me com temas sociais e políticos. Se por um lado me interessa procurar mecanismos para contar histórias em palco, por outro não alimento um teatro de ilusão. O espetáculo tem de estar em aberto para o público criar, se assim o entender, as suas próprias ilusões. Em muitos dos meus trabalhos, parto de documentos reais que digerimos e manipulamos descaradamente para inventar um espetáculo. Não me interessa o rigor de um teatro documental que imite a realidade. O meu teatro é da ficção e da imaginação. Porém, quero que ele se relacione com o mundo…

Como um teatro de intervenção?

Não no sentido de intervir politicamente. No teatro que faço, e com as pessoas com que o faço, procuro uma expressão pública da minha intimidade. É no encontro entre a intimidade e o espaço público que se opera aquilo que podemos considerar intervenção. O mais político que creio existir nos meus espetáculos é assumir que quando nos expressamos surge uma relação direta com a política. No fundo, a minha intimidade (e a de todos nós) tem uma relação com a vida pública.

Este espetáculo encerra o Alkantara Festival , que pode muito bem ser o último devido aos cortes de financiamento na área da cultura. Sentes ser uma responsabilidade acrescida?

Sinto que é uma honra, mas também uma tragédia se assim for. O Alkantara é um festival de dimensão europeia que significou, ao longo dos anos, um enorme investimento em novos artistas e criadores. Faz parte de Lisboa, parte do país, e não pode ser visto como um custo. É lamentável que se condene um projeto desta importância à mera sobrevivência, por isso respeito a decisão de quem o dirige de acabar, caso se mantenham os atuais quadros de financiamento.

Imagine um armazém, amplo, luminoso e arejado. Lá dentro, dois artistas plásticos – os escultores Lagoa Henriques e Carlos Amado – erigiram, no seu tempo, várias estruturas a lembrar casas de um bairro típico alfacinha, com divisões espalhadas por vários pisos, tetos com claraboias para deixar entrar a luz, janelas que permitem olhares acutilantes e vivos sobre os espaços comuns. “Algo a lembrar Alfama”, como refere Luís Castro, membro fundador e diretor artístico da KARNART, o novo inquilino do espaço.

Desde a saída da secção de Anatomia da antiga Escola Superior de Medicina Veterinária, em Picoas, há cerca de cinco anos, a KARNART instalou-se num armazém do Beco da Mitra. Em janeiro deste ano, a Câmara Municipal de Lisboa assinou, com a estrutura fundada em 2001 pelo ator e encenador Luís Castro e pelo artista plástico Vel Z, um protocolo de cedência do espaço deste ateliê na Avenida da Índia, a pouco mais de 300 metros do Centro Cultural de Belém.

No novo espaço, Luís Castro pretende prosseguir a investigação perfinst que marca o percurso da KARNART desde a sua fundação.

 

Nesta nova morada, o coletivo pretende criar um polo cultural à medida do ímpeto artístico e criativo dos seus associados e amigos. Mas, também, do percurso inovador da KARNART, estrutura que tem marcado o panorama artístico e teatral português com as suas criações perfinst – aliança entre performance e instalação, a bem da “humanização do objeto e da materialização do performer”. Para isso, a estrutura passará a ter à disposição um espaço marcadamente identitário, “tão imprevisível no seu ordenamento quanto os espetáculos e criações” de Luís Castro e seus associados. “Essa é a nossa marca criativa, porque é assim que apelamos à imaginação de quem vê os nossos espetáculos”, completa.

No espaço da Avenida da Índia, a estrutura passará a dispor de um pequeno auditório para espetáculos e acolhimentos, salas de leitura e ensaio, um espaço de galeria para exposições, oficinas e um salão de chá. Futuramente, nas traseiras do edifício, esperam criar-se condições para um espaço de lazer ao ar livre e, nem os mais pequenos serão esquecidos: haverá uma sala num dos pisos do armazém, o que permitirá aos visitantes mais graúdos ter onde deixar as crianças enquanto assistem a espetáculos ou visitam exposições, ao mesmo tempo que os seus filhos se entretêm e aprendem com atividades especialmente criadas para eles.

O perfinst consiste na aliança entre performance e instalação.

 

De enorme importância para a estrutura será o centro de documentação. Conforme confidenciou Mónica Garcez, que nos guiou pelas instalações, “é essencial para a KARNART ter um espaço que compile e sistematize toda a documentação relacionada com a atividade desenvolvida ao longo dos anos, estando aqui à disposição de criadores e investigadores que se interessem pelo estudo do perfinst”. A atriz, associada da estrutura desde 2007, sublinha também outro vetor de enorme importância, aliás coerente com as preocupações ambientais da KARNART: a ecosustentabilidade do espaço. Os trabalhos de restauro que ocuparão associados e amigos ao longo destes próximos meses terão, precisamente, esse aspeto em consideração.

Falando em teatro, a KARNART prevê estrear, a 18 de junho, Petróleo, espetáculo inspirado no conto O Campo da Casilina de Pier Paolo Pasolini. Antes do final do ano, há um regresso ao universo de Raul Brandão e, para a temporada de 2015-2016, uma desafiante incursão em A Divina Comédia de Dante. Tudo a acontecer nesta “casa de cultura” que, como refere Luís Castro, “estará à altura das nossas expetativas enquanto artistas e da imaginação de quem nos visita.”

Sopros de Vida / GITELO77 é o título desta exposição. Quer explicá-lo?

Sopros de vida tem sido aquilo que eu tenho tido. Infelizmente a vida tem sido terrível no sentido da doença. Desde bastante jovem que vivi uma série de situações de risco de vida, com várias intervenções cirúrgicas, especialmente ao coração. Isso começou na altura do meu último concurso para professor catedrático da escola, portanto um pouco antes de 71 e terminou em 99 com um coração novo, com um transplante cardíaco. Uma pessoa transplantada é, como se costuma dizer, um bebé prematuro, tem que ter muitos cuidados porque é sempre muito frágil. Apesar deste currículo clínico, praticamente nunca parei. Houve sempre a tentativa de fazer coisas, porque tinha mesmo que ser. E é a esses diversos momentos que eu chamo sopros de vida. Porque quando tudo apontava para que eu não aparecesse mais, eu aparecia. Para mim, os sopros de vida são alentos que se vão tendo para ir dando azo aos sonhos que ainda não desapareceram.

Trata-se de uma exposição antológica? O que se pode ver nesta mostra?

Chamem-lhe antológica, chamem-lhe retrospetiva, tudo o que quiserem. O que eu entendo é que qualquer pessoa que tem um percurso bastante grande e que se dedica a muitas matérias tudo aquilo que apresenta é retrospetivo. Aliás, se posso classificar esta exposição é uma retroprospetiva, porque apresenta sempre coisas anteriores, como resultado de pesquisas prévias, mas está sempre a querer apresentar coisas novas e para isso é necessário o indivíduo estar atento ao que se vai fazendo e agitado de maneira a poder produzir.

O corpo feminino é uma constante na sua obra. Porquê?

Uma vez perguntaram-me o porquê da obsessão pelo corpo feminino. E eu disse: o corpo feminino encerra muita coisa. Há coisa mais entusiasmante que a curva e a contra curva? Ora o corpo feminino está pleno de curvas e contra curvas, está sempre em movimento de altos e baixos como a própria vida, num jogo de saliências e reentrâncias. Por outro lado, há recantos, lugares no corpo feminino que nunca conseguimos proferir totalmente. Há sempre um mistério. Daí que a figura feminina, quando eu a aplico, e tento nunca ser demasiado literal, encerra sempre um mistério, como a própria vida em si. Por isso é difícil existir um sentido de posse total; há sempre mundos e mundos na figura feminina. Por alguma razão o corpo feminino foi sempre o tema mais abordado nas outras civilizações e em várias outras épocas, é precisamente porque encerra virtudes que não existem noutros lados.

A sua obra pictórica não se filia diretamente em nenhuma corrente estética. Porém, será correto falar em expressionismo a propósito dela?

Expressionismo, entre outras. O expressionismo é importantíssimo porque é aquele que nos dá uma série de sentimentos e de reações; dá-nos toda a vivência da própria vida em si. E isso é fundamental em mim. É uma das características fortes do expressionismo: a reação àquilo que se vê e que nos pode tocar. E até vou mais longe: em determinados momentos da expressão, tem de haver um estado de graça para que o artista possa trabalhar. Eu sou contra os prazos, porque não se pinta por pintar, pinta-se por necessidade. Pinta-se porque algo nos tocou e sentimos uma necessidade de reação. Ora bem, o expressionismo é exatamente isso. É fundamental que o indivíduo tenha espaço para criar, que se encontre no que eu chamo estado de graça, para se poder expressar e valer a pena.

É habitual falar-se numa certa vertente social e política do seu trabalho. Quer comentar?

Tem que refletir sempre essas vertentes, até pela vida em si. A minha vida nunca foi de berço de ouro, foi uma vida subida a pulso, ainda hoje o é. Até para conseguir esta exposição. E depois não podemos esquecer que eu sou do período pós-guerra, onde havia toda a miséria. Ainda mais numa terra no interior, em Mirandela, na altura do racionamento e da vinda dos refugiados de Espanha. Portanto, a vida naquele tempo era rude, terrível. O frio, o quente, seis meses de inverno, seis meses de verão, tudo isso pesa e molda a pessoa.

A sua pintura assume-se também como um diálogo com os mestres do passado. Quais as suas maiores influências?

Quando entro numa exposição, a primeira coisa que eu faço é assimilar o ambiente e ver se há alguma coisa que me toca. Quantas vezes vou a uma exposição de que nem gosto tanto e depois volto lá segunda e terceira vez e acabo por gostar. Quando consegui uma bolsa da Academia de Belas Artes fui para Madrid e a primeira coisa que fiz quando lá cheguei foi ir direito ao Prado e à sala do Velasquez. Dei a volta à sala e perguntei: isto é que é o Velasquez?! E fui-me embora. Depois passei os vinte dias seguintes a ver os seus quadros. Era fantástico! Como é que um homem consegue transmitir aquilo que ele transmite? Por isso influências são muitas. De todas as épocas. Estou sempre aberto a poder encontrar. Aliás, já Picasso dizia isso: “eu não procuro, encontro”. E é verdade. É o encontrar que vai despoletar a faísca para haver necessidade de fazer. Isso pode acontecer no meio da rua, como já me aconteceu, quando encontro um pedaço de uma fotografia. Portanto, tudo é possível, tudo está à mão, é preciso é termos capacidade de ver. E ver é um ato crítico.

Nesta exposição apresenta também algumas peças de escultura. Há quem sugira uma associação das suas peças escultóricas ao existencialismo. Concorda?

Infelizmente poucas. Concordo com isso tudo e ainda mais alguma coisa. Eu estou sempre disponível a poder absorver tudo aquilo que me toca e a poder experimentar. A mim interessa-me, essencialmente, é experimentar, interessa-me é fazer.

A sua obra gráfica, tão reconhecida e premiada, está ausente desta exposição. Porquê?

Apesar de ter começado a minha obra gráfica ainda na Casa Pia, foi entre 71 e 81 que me dediquei inteiramente à gravura. Não só no âmbito da cadeira de gravura que lecionava na Faculdade de Belas-Artes como à gravura virada para o internacional. Foi aí que começaram a surgir os prémios nas principais bienais europeias, como a medalha de ouro na Bienal de Florença. Uma dessas gravuras está, inclusivamente, a representar Portugal na Biblioteca de Washington. A gravura que eu fazia era uma gravura diferente da que se fazia então. Era de grande dimensão e de grande colorido. Em 2002, fiz uma grande retrospetiva de gravura no Centro Cultural da Casa Pia e a partir daí nunca mais me dediquei à obra gráfica. A gravura nunca foi verdadeiramente reconhecida em Portugal.

A Modéstia marca o teu regresso ao trabalho com os Artistas Unidos (AU), mais de três anos depois de Comemoração, de Harold Pinter. O que se sente quando se volta a uma “casa” onde trabalhaste com tanta regularidade ao longo dos anos?

É muito agradável, não sendo esta a minha “casa-mãe” – essa foi o Teatro da Garagem, onde estive, ininterruptamente, mais de sete anos. Mas, com os AU, comecei precisamente em 1995, numa das peças fundadoras da companhia, António, um rapaz de Lisboa, do Jorge Silva Melo. Era um elenco enorme e todos nós éramos tão novinhos [risos]… Agora, e no caso de A Modéstia, foi o João Meireles que me convidou para ser encenada pelo Amândio Pinheiro, que apenas conhecia como ator. Para mim, está a ser uma experiência nova porque, até aqui, nos AU, tinha sido sempre dirigida pelo Jorge Silva Melo.

O que costuma ser mais desafiante no trabalho com os AU?

Tenho trabalhado com pessoas muito diferentes ao longo da minha carreira e, quando volto aos AU, sei que, por norma, vamos estar no campo da dramaturgia contemporânea, e num universo de autores com caraterísticas muito peculiares, como o Pinter, por exemplo. É um trabalho muito diferente do que desenvolvi recentemente no Teatro Meridional, com a Natália Luiza, em As Centenárias, de Newton Moreno.

O que podes desvendar sobre a tua, ou melhor, as tuas personagens nesta “comédia de enganos”, para citar o autor?

Esta é uma peça desconcertante, com um texto que desconstrói, de certo modo, os clássicos, brincando mesmo com eles. Por vezes, parece soar a Tchékov… As minhas personagens são a Ania e a Angela. A Angela tem uma situação familiar complicada e é muito empenhada politicamente, sobretudo na defesa das minorias étnicas. A Ania é precisamente o oposto, uma mulher resignada que tudo faz para salvar o marido. Porém, nada disto é absolutamente óbvio. Depois, há ainda uma terceira personagem que é a atriz Sílvia, aquela que conta a história…

Uma brincadeira com o teatro dentro do teatro?

Sim. A atriz é, também, uma personagem que joga na dificuldade de contar a história. No fundo, esta peça é isso mesmo: um jogo de desconstrução do próprio teatro. Pode parecer complicado, mas estou certa que o público vai gostar de ser parte neste jogo.

Antes de começarmos esta entrevista, falavas na constante surpresa que cada ator reserva aos outros em palco. Podes explicar um pouco melhor?

Vamos surpreender-nos uns aos outros. A única obrigatoriedade neste trabalho é sermos fiéis ao texto, mas não temos um modo cristalizado de agir em palco, ou seja, podemos improvisar nas marcações, no estar em cena. Digamos que esta é outra das faces do jogo que é A Modéstia.

Esta peça foi escrita nos dias da última grande crise económica argentina. Sentes que, em certa medida, isso vai fazer o público português aproximar-se do texto?

Antes de falar com o Amândio, e quando li o texto, achei-o um grande devaneio, por vezes tenebroso e cruel. Depois, falámos e ele diz-me para ter calma que as coisas não eram assim tão sérias… Há, de facto, aspetos muito ligados à realidade argentina, mas parece-me um texto universal e, infelizmente para nós, contém muitas situações que se aproximam daquelas que estamos a viver por estes dias.

Apesar de teres presença regular nos palcos, nos últimos anos tornaste-te uma atriz muito reconhecida devido à televisão. Sentes que isso mudou a tua vida?

A televisão faz-nos entrar diariamente na casa das pessoas, algo que provoca um tremendo impacto na vida de um ator. Já não consigo entrar num restaurante com o meu filho e permanecer incógnita [risos]. As pessoas abordam-nos, olham-nos… Mas, já aprendi a lidar com isso. Acho que somos olhados pelo público como vendedores de sonhos. E, as pessoas confundem-nos mesmo com as personagens. Lembro-me que, na telenovela Laços de Sangue, interpretava uma mãe com um filho problemático e, um dia, uma senhora aborda-me na rua confessando ter um problema semelhante ao da minha personagem. Foi desconcertante e, às tantas, já era eu própria a torcer para que tudo corresse bem à mulher que interpretava, sabendo que isso iria significar dar esperança a um sem número de pessoas que acompanhavam aquele drama pela televisão.

Sentes-te bem a fazer teatro e televisão?

Sem dúvida. O teatro é ritualístico, acontece ali, damos tudo no momento. A televisão é intensiva. Mas, gosto de ambos e sinto-me bem, tendo noção que trabalhar em televisão é ainda, para mim, um processo em aprendizagem. Ao mesmo tempo, o trabalho em televisão acaba por me poupar mais enquanto atriz e, sobretudo, enquanto mãe, já que me permite dispor de noites e gerir o tempo de um outro modo.

Para além de atriz, tens também formação em canto. Tens saudades de fazer teatro musical?

Muitas saudades. Fiz muito teatro musical no Teatro Aberto, aqui nos AU, no Esta Noite Improvisa-se, e foram experiências fantásticas. Agora que falas nisso, pergunto: quando é que me convidam para voltar a fazer um musical [risos].

Enquanto não chega o convite para o musical, tens outros projetos?

Não sou pessoa de projetar a longo prazo. Nunca delineei propriamente uma estratégia de carreira para não criar ilusões que se transformam em desilusões. E, se calhar ainda bem, porque o mais certo é não haver trabalho [risos]. Mas agora, logo a seguir à peça, vou continuar as gravações da série Bem-vindos a Beirais e, quem sabe, reincidir com um novo projeto nos AU, se a conjuntura o permitir. Até porque, a situação está, de facto, muito difícil para as companhias de teatro em Portugal e nenhum de nós pode contar seja com o que for como certo.

Para uma geração que andará entre os 30 e os 40 anos, a última grande referência que subsiste do fulgor do teatro de revista remonta há mais de duas décadas, quando Filipe La Féria levou ao palco do Teatro Nacional D. Maria II Passa por mim no Rossio. Apesar de dezenas e dezenas de atores, bailarinos, autores e cantores terem, com assinalável tenacidade e perseverança, feito o esforço de não deixar morrer o género – sobretudo na sua “casa” de eleição, o Parque Mayer – ao longo dos últimos anos, são poucas, ou nenhumas, as referências que os mais jovens têm da revista à portuguesa.

Porém, desde a segunda metade de 2013, Lisboa deixou-se, de novo, surpreender por uma nova vida do teatro de revista. Primeiro, e uma vez mais, com La Féria, que leva à cena, no Teatro Politeama, a sua Grande Revista à Portuguesa. Meses depois, com o produtor Hélder Freire Costa a estrear, no coração do Parque Mayer, Lisboa Amor Perfeito. O sucesso destas duas revistas à portuguesa justifica que ambos os espetáculos permaneçam em cartaz há já longos meses. Surpreendentemente, ou talvez não, o improvável aconteceu: ao desafio do Teatro Nacional D. Maria II, pelo diretor artístico João Mota, para conceber um espetáculo para a Sala Garrett, o Teatro Praga respondeu com… uma revista à portuguesa!

Para Pedro Zegre Penim, dos Praga, “não é tão surpreendente assim criarmos uma autêntica revista à portuguesa. Sempre nos sentimos fascinados pelo género, e olhando ao nosso percurso é particularmente interessante reconhecer algumas caraterísticas do nosso teatro na revista à portuguesa”. O diretor e encenador sublinha essas similitudes em aspetos como “não nos apoiarmos numa linha narrativa com princípio, meio e fim; estabelecermos sempre uma relação de grande frontalidade com o público; ou apostarmos constantemente na colaboração interdisciplinar entre teatro, vídeo, música ou artes plásticas.”

No grande caldeirão que é criar uma revista à portuguesa cumprindo a sua melhor tradição, Tropa-Fandanga conta com textos escritos a várias mãos (a abertura da revista vinca, precisamente, essa caraterística de criação coletiva que sempre fez escola no género). Ao mesmo tempo, e à sombra dos 163 anos da história do teatro de revista, colaboram neste espetáculo criadores de diferentes escolas e sensibilidades, como os artistas plásticos Vasco Araújo e João Pedro Vale, o músico Sérgio Godinho, que assina as canções originais, o cenógrafo José Capela, ou a fadista Filipa Cardoso, presença assídua em algumas das mais recentes produções do teatro de revista que veem sendo feitas no Parque Mayer.


A estes nomes, junta-se inevitavelmente a grande atração deste espetáculo dos Praga, José Raposo. À relutância que muitos possam ter quanto a uma revista à portuguesa criada pelo coletivo liderado por Penim, José Maria Vieira Mendes e André e. Teodósio, o popular ator responde: “Tropa-Fandanga é mesmo uma revista bem à portuguesa!” Raposo refere, precisamente, a importância de fazer parte de um projeto liderado por artistas “completamente descomplexados quanto a um género que tem sido tão maltratado nos últimos anos”. “Por ser um espetáculo do Teatro Praga, espero que outros públicos, sobretudo as novas gerações que nunca viram um espetáculo de revista ao vivo, possam descobrir este género de teatro tão português.”

Tendo como tema central a guerra – num assinalar dos 100 anos do início da I Guerra Mundial e dos 40 anos do fim da Guerra Colonial –, Tropa-Fandanga proporciona uma viagem do século XX à atualidade, frisando a herança histórica da cultura popular portuguesa. Aos textos e temas musicais originais, junta-se um momento antológico, interpretado por José Raposo, de homenagem a Raul Solnado no célebre quadro da revista Bate o PéA Guerra entre Aspas; a recuperação de temas do cancioneiro popular; ou a recriação de fados célebres, como Fado Falado, que João Villaret interpretou, e Fado do 31, de Pereira Coelho. Porque, como nos confessou Vieira Mendes, “nesta ‘guerra’ queremos espalhar a revista pelo mundo e fazer do fado a sua banda sonora.”

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