Em ano de centenário daquela que foi uma das figuras mais marcantes da vida intelectual portuguesa do século XX, multiplicam-se as homenagens e eventos artísticos em torno de Natália Correia. Amplamente citada tem sido a extraordinária biografia assinada pela escritora Filipa Martins, O Dever de Deslumbrar, publicada em março deste ano pela editora Contraponto. A chegada do espetáculo homónimo ao palco acabou por surgir da vontade expressa da autora e da atriz Teresa Tavares em desafiar Ana Rocha de Sousa, realizadora consagrada pela aclamada longa-metragem Listen (2020), que assim se estreia na encenação com uma peça onde o teatro se cruza com a linguagem da dança e com o vídeo.
Em cena, estão duas Natálias: uma mais jovem (Teresa Tavares), outra mais velha (Paula Mora) – e, de certo modo, há uma terceira, silenciosa na palavra, mas presente no gesto e no movimento, a “Natália onírica” interpretada pela bailarina Ana Jezabel. Segundo Filipa Martins, a ideia de colocar “uma Natália em diálogo com a outra Natália permite dar perspetiva, quer sobre a evolução da vida dela, quer sobre a evolução do seu pensamento”, numa conversa onde passado e presente se entrelaçam com o próprio futuro. “Neste diálogo, está a própria Natália a lançar um repto aos dias de hoje e a inquietar-nos”, refere, ao apontar que “o texto faz pontes com a contemporaneidade, abordando temas como a violência doméstica, crime que ainda hoje é dos mais frequentes em Portugal, ou a censura da palavra, que verificamos neste constante julgamento entre pares, nomeadamente nas redes sociais.”
Embora esteja a passar por um período de “muitas solicitações”, Ana Rocha de Sousa assume a escolha assertiva que fez ao aceitar o desafio de encenar O Dever de Deslumbrar. “Mergulhar no pensamento de Natália Correia foi vibrante. Ao fazê-lo, descobri uma mulher que é muito responsável pela liberdade de todas nós, por mulheres como eu ou a Filipa estarmos aqui, hoje, a fazer o que fazemos. Por tudo isso, somos todas Natálias.”
Personalidade absolutamente impar, da obra escrita, que percorreu os mais variados géneros literários – do romance à poesia, passando pelo teatro e pela filosofia -, à intervenção pública e política, a riqueza múltipla do legado de Natália Correia acaba por estar também presente no desenho do espetáculo, não só através do trabalho de dramaturgia de Filipa Martins, que cruza as suas próprias palavras com excertos da obra, como na encenação de uma artista multidisciplinar como Ana Rocha de Sousa. “Sendo Natália tão multidisciplinar, ela que até pintora foi, faria todo o sentido que este espetáculo também o fosse,” assume a encenadora.
E, como isto é teatro, a inesgotável Natália Correia, com toda a sua inquietação e irreverência, com toda a sua dor e fragilidade, com todas as facetas que surpreendentemente ainda hoje se descobrem, surge em cena como figura teatral de excelência. “Isso está no constante manifesto que lhe parecia ser tão natural, mesmo na vida privada, e que a colocava sempre como que à boca de cena”, lembra Filipa Martins. Assim, “é perfeitamente normal associá-la ao teatral”, pelo que é impossível não perceber em Natália o potencial de uma grande personagem dramática.
A confirmar em O Dever de Deslumbrar, no Clube Estefânia, entre 30 de novembro e 3 de dezembro.
O festival Vale Perdido quer afirma-se como lugar de “encontro de géneros musicais diferentes e de públicos diferentes”. Com curadoria de Joaquim Quadros (programador do VAGO e da LISA), do programador cultural independente Sérgio Hydalgo e de Gustavo Blanco (da Sónar Lisboa), a ideia foi, segundo Quadros, “criar um espaço de provocação ao próprio formato de festival.”
O criativo nome – Vale Perdido – surgiu por ter “um lado mais Disney, que pudesse provocar a imaginação e fazer esquecer um bocado a ideia de festival”. Os três curadores não deixaram nada ao acaso, já que o nome remete para o vale do Tejo e para “a ideia de Lisboa acabar por ser um canto meio esquecido pelo tempo.”

O cartaz inclui 13 propostas musicais “ecléticas e aventureiras”, provenientes de países como Cabo Verde, Estados Unidos da América, França, Japão, Lituânia, Portugal, Reino Unido e Uganda, incluindo estreias de artistas internacionais, como FUJI||||||||||TA; a apresentação de novos álbuns (Nihiloxica); regressos de nomes consagrados, com destaque para Luke Vibert e Kléo; novas colaborações, como a de Gabriel Ferrandini & Xavier Paes; e colocar foco na “efervescência nacional” (Batucadeiras das Olaias, DJ Caring, Maria Reis, Patrícia Brito, Polido, Ricardo Grüssll, Tadas Quazar e Violet).
Ao pensar no alinhamento, os programadores tiveram o cuidado de escolher artistas que “contassem uma história da primeira à última noite”, começando “com um ritual que passasse por vários momentos: pelo experimentalismo, pela tradição do ritmo e pela inovação do mesmo, pelas canções, pelo clubbing, do mais introspetivo ao mais carnal e eufórico”, ou seja, “que proporcionasse várias conversas culturais dentro de si mesmo. O Vale Perdido teria sempre de instigar uma intersecção de pessoas e música”, esclarece Joaquim Quadros.

Os concertos decorrem na Igreja St. George, no B.Leza, na LISA e no 8 Marvila, salas onde a música pode “respirar vários ambientes, refletindo diferentes linguagens e incitando o movimento de um lado para outro pela cidade. A LISA e o B.Leza são os mais óbvios, por serem salas com que trabalhamos, eu e o Sérgio, de forma muito próxima. A Igreja St. George por ser um sítio que já vive o circuito musical de Lisboa e por ser lindo de morrer. O 8 Marvila por ter condições de espaço, crueza, novidade e levar-nos para o outro lado mais marginal e alternativo de Lisboa. A energia do espaço de Marvila tem um ADN de nascimento que acompanha o nosso projeto também.”

A poucos dias do arranque desta primeira edição, Quadros esclarece que a ideia é o festival ter continuidade: “assim que o começámos a desenhar, imaginámos edições seguintes através de ideias e várias colaborações para concretizar. O Vale Perdido, mal apareceu como embrião, começou a ser pensado como um percurso contínuo e de crescimento”. Houve “muita música que ficou de fora, propostas artísticas que não realizámos este ano e que queremos fazer acontecer já na próxima edição. Não fazia sentido uma pontualidade, mas sim um começo.”
Para uma peça com 14 personagens como Tom Vinagre, a jovem encenadora Carolina Serrão optou por colocar em palco apenas cinco atrizes, sendo que quatro delas interpretam as personagens que morrem enforcadas ou queimadas, sob acusação de bruxaria: “Joan por ser uma mulher viúva, Alice por ser uma mulher livre, Susan por ser uma mulher que fez um aborto e Ellen por ser uma mulher que conhece as ervas”. Sobra apenas Betty, filha de proprietários rurais, que, por não querer casar, “é diagnosticada com histeria”, enfermidade comummente apontada às “mulheres de classe alta que não cumpriam os códigos éticos e morais vigentes.”
São estas cinco mulheres que, invertendo o ponto de partida da peça de Caryl Churchill, como que “reencarnam e contam a sua história pessoal”, passada na Inglaterra do século XVII, como se fosse aqui e agora, no palco de um teatro, com as cenas a serem pontuadas pela eletrónica de um live act de DJ Salbany.
Escrita em 1976, Tom Vinagre, ou Vinegar Tom no original, nasceu de uma colaboração de Churchill com a Monstrous Regiment, uma companhia de teatro assumidamente feminista, fundada apenas um ano antes na cidade de Cardiff, no País de Gales.
A partir do tema da “caça às bruxas”, a dramaturga construiu um texto admirável sobre uma época histórica, porém, empregando-lhe uma perturbante atualidade a que nunca é estranha a denúncia da opressão exercida por uma estrutura social patriarcal sobre as mulheres ao longo dos tempos. Como a própria autora assumiu, é “uma peça sobre bruxas sem bruxas”, ou, nas palavras de Carolina Serrão, uma peça sobre mulheres que pagaram com a própria vida “o serem diferentes, o não quererem comportar-se como a sociedade desejaria que o fizessem ou, mesmo, o serem pobres.”
O perigo de se ser mulher… e diferente
Tom Vinagre começa com o encontro amoroso de Alice com um desconhecido sobre quem, mais tarde, caiem suspeitas de ser o diabo. A jovem é filha de Joan, mulher viúva e dona do gato Vinegar Tom, que dá título à peça. Os seus vizinhos são os abastados Jack e Margery, agricultores e donos de terras, a quem a vida começa a correr mal subitamente. Em causa, uma peste que vitima os animais e uma série de problemas na leitaria. A isso, somam-se as constantes dores que assolam Margery e a impotência de Jack, posta a nu quando tenta violar Alice.
Como Deus não castiga “pessoas de bem”, o casal depressa procura uma justificação para tanto infortúnio. Nada mais fácil do que acusar Joan e Alice de bruxaria. Afinal, aquela mãe viúva de língua afiada e a sua filha tida como promiscua pelos aldeões são vítimas perfeitas para arcar com culpas alheias. Até porque não há figura masculina que as defenda.
Mas, em tempos obscuros, ter apenas duas bruxas não pareceria suficiente. Por isso mesmo, a comunidade acolhe de braços abertos a chegada de um reputado caçador de bruxas. Através do terror e da tortura, depressa se descobrem outras mulheres cuja acusação de bruxaria se configura na fuga à norma, na prática do aborto ou no interesse pelo saber.
Tal como Churchill apontou na sinopse que assinou para a estreia da peça, há quase 50 anos, neste tempo e neste lugar “é perigoso ser-se mulher sem um marido; é perigoso ser-se mulher e diferente; é perigoso ser-se mulher e usar ervas medicinais (…)”
Assumindo o espetáculo não apenas como objeto artístico, mas também como parte do seu ativismo feminista militante, Carolina Serrão conta que, “para além da profunda admiração por Caryl Churchill, a escolha desta peça passou muito pela leitura de um estudo de Silvia Federici”. Em O Calibã e a Bruxa, a filósofa italiana radicada nos Estados Unidos sustenta que “a caça às bruxas foi um dos acontecimentos mais importantes para o desenvolvimento da sociedade capitalista”, uma vez que, na fase final do feudalismo, “as mulheres assumiam muitas vez a liderança na luta e na resistência do campesinato europeu contra a tomada de terras por parte da nobreza e do Estado, e que estão na origem do capitalismo moderno.”
“A campanha de terror contra as mulheres foi incomparavelmente maior do que qualquer outra perseguição”, sublinha a encenadora ao lembrar que, como observou a escritora portuguesa e fundadora do Movimento de Libertação das Mulheres, Madalena Barbosa, “o número de mulheres queimadas na Europa durante três séculos chega a ser avaliado em nove milhões.”
Nos dias de hoje, em pleno século XXI, é com preocupação que Carolina Serrão verifica “tantos sinais de retrocesso quanto aos direitos das mulheres, inclusive no mundo ocidental”, lembrando, a exemplo, a reintrodução de leis de criminalização do aborto em vários Estados norte-americanos. Por isso, sublinha ser em nome do “combate pela igualdade de género e pela denúncia desta sociedade patriarcal que continua a domesticar os corpos”, que encenar este “texto maravilhoso” de Caryl Churchill é também “dignificar o legado das feministas que vieram antes de mim.”
A partir da tradução de Vera Palos, Tom Vinagre é um espetáculo interpretado por Catarina Marques Lima, Diana Narciso, Lúcia Pires, Márcia Cardoso e Mariana Branco, com cenário de Fabíola Emendabili e Frederico Pauleta, desenho de luz de Rui Seabra e figurinos da própria Carolina Serrão. Estreia dia 8 no Teatro do Bairro, permanecendo em cena até 26 de novembro.
O Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival decorre entre 9 e 16 de novembro no Cinema S. Jorge, com um programa que inclui 57 filmes de 22 países. O objetivo mantém-se: divulgar o cinema feito por mulheres oriundas de países do Mediterrâneo. Questões de género, racismo, colonialismo, terrorismo e radicalização, acesso à habitação, mas também histórias pessoais e familiares são os temas presentes nas várias obras exibidas. Este ano, a Turquia é o país homenageado com uma retrospetiva de filmes de cineastas turcas na Cinemateca Portuguesa.
A Agenda Cultural de Lisboa convidou seis realizadoras portuguesas a refletirem sobre os desafios e perspetivas das mulheres no cinema e, claro, que nos falassem sobre os filmes que apresentam nesta edição do festival.
Cláudia Clemente
Quatro Mulheres ao Pé da Água, exibe a 10 novembro, às 21h30
Nasceu no Porto onde estudou arquitetura, porque o cinema não era levado a sério pela família para prosseguir uma formação superior. Foi arquiteta durante 13 anos, mas, paralelamente, estudou cinema. Realizou o primeiro filme em 2007.
Sobre o papel das mulheres na realização considera que este é um mundo de homens e por isso é sempre um desafio. Quando afirmam que as mulheres “são dadas” ao documentário, porque permite uma visão mais intimista, discorda: “Fazemos mais documentário porque implica menos meios, equipas mais reduzidas e menos custos. É preferível trabalhar este formato do que não realizar, mesmo quando se prefere fazer ficção.” Há um lobby masculino que dificulta a entrada das mulheres mas, por outro lado, concorda que as coisas estão diferentes e que hoje mais realizadoras vingam na profissão.
Procura no seu trabalho dar protagonismo às mulheres. Preocupa-a o facto de a partir de uma determinada idade, ou por serem de origem africana, não conseguirem papéis como protagonistas. Foi com isso em mente que escreveu Quatro Mulheres ao Pé da Água onde as protagonistas – Maria do Céu Guerra, Lara Li, Ana Padrão e Mina Andala – têm todas mais de 50 anos. A história acompanha os relatos que as quatro fazem de um homem que morreu e a quem estavam ligadas de forma diferente.
Leonor Rocha Oliveira
Borderline exibe a 9 novembro, às 19h30
Quando terminou o 12.º ano entrou na Faculdade de Belas Arte, em Arte Multimédia, e foi no final do curso que percebeu que queria seguir cinema. Inscreveu-se na Licenciatura de Cinema, na Universidade Lusófona, ainda sem saber bem qual dos ramos pretendia. Borderline, a curta-metragem que realizou sozinha durante a pandemia e que serviu, também, como trabalho final de uma das cadeiras do curso, foi determinante na decisão de ser realizadora.
Começou recentemente a trabalhar num segundo filme e, por isso, a sua experiência no meio profissional do cinema é praticamente nula, no entanto, afirma que no meio académico sentiu que, tanto professores, como alunos, preferiam ter um rapaz no cargo de realização. Ser rapaz conferia credibilidade. “Achei curioso que houvesse uma maior confiança quando era um rapaz a liderar. Eu queria esse papel e nunca o consegui.”
Foi também por isso que decidiu escrever, realizar e filmar a curta Boderline, completamente sozinha. O filme, que reflete sobre o que mais afeta a vida da realizadora, o distúrbio de personalidade borderline, venceu a Melhor Curta-Metragem Documentário, nos Prémios Sophia Estudante 2022 e foi exibido em festivais no Brasil e Nova Iorque. Considera que a questão da saúde mental é um tema muito desconfortável para a sociedade portuguesa e isso é uma enorme motivação para falar do assunto. Aliás, são os temas mais desconfortáveis que a desafiam e dos quais pretende falar nos seus filmes futuros.
Ânia Bento
A Temporary Situation exibe a 10 novembro, às 17h
Teatro, dança e fotografia já faziam parte da vida de Ânia Bento, faltava explorar a imagem em movimento. Resolveu por isso deixar o Algarve, onde nasceu e vive, e vir para Lisboa estudar cinema na Cascais School of Arts & Design. Quando terminou o curso, em 2022, teve a certeza que queria escrever e filmar, mas percebeu que é muito difícil entrar no meio: “Não há respostas, nem apoio. É como se existisse um muro entre quem chega e quem já lá está.”
No entanto, a vontade de fazer um filme era grande e mesmo sem meios, apenas com o telemóvel, começou a filmar a sua realidade enquanto vivia em Lisboa, longe da terra natal. “Fiquei chocada com o que via: pessoas a comer do lixo, a dormir na rua, a viver em tendas… Trabalhamos 12 ou 14 horas e não chega, vivemos com uma dívida constante. É sufocante!”. A Temporary Situation, documentário que nomeou com alguma ironia, nasceu da vontade de dar a conhecer as suas dificuldades, que são também as de tantas outras pessoas. “A arte em geral e o cinema são essenciais para dar voz a este tipo de problemas.”
Independentemente do género ou da idade, acha que todos têm coisas interessantes para dizer. No entanto, considera que vivemos ainda numa sociedade machista e essa é uma questão que lhe interessa. Futuramente gostaria de abordar o tema, através de um filme que refletisse sobre o corpo da mulher e o porquê de tantos homens continuarem a oprimir ou assediar as mulheres.
Cátia Alpedrinha e Catarina Eduardo
Natan exibe a 9 novembro, às 17h
Conheceram-se no curso de realização da ETIC e a ligação foi imediata quando descobriram que tinham tirado um curso de fotografia, na mesma instituição, com 20 anos de diferença. A Catarina estava a nascer quando a Cátia iniciava o curso.
Para a realização do documentário académico Natan, que aborda o tema da exclusão social, através da história do jovem Natan, a partilha de uma estética e dos temas a abordar foram determinantes. Também a realização surgiu na vida de ambas, um pouco, pelas mesmas razões: a fotografia já não chegava e era necessário dar movimento às imagens, faltava um lado sinfónico e uma essência própria das personagens.
Relativamente à presença das mulheres na realização, Cátia Alpedrinha considera que ainda há um longo caminho a percorrer. “Já sentia que a fotografia era uma profissão de homens e nessa área as coisas estão hoje muito diferentes, houve progressos, mas no cinema e na publicidade os circuitos continuam muito fechados às mulheres.”
Foi com o objetivo de lutar pela paridade e defender as mulheres que trabalham no cinema e audiovisual que foi criada a MUTIM, associação da qual Cátia é associada. Na opinião de Catarina o departamento onde se quer chegar faz toda a diferença: “Vêem-se muitas mulheres na produção, mas na parte técnica é difícil. Num estágio que fiz, referi que tinha como objetivo a direção de fotografia, disseram-me que devia rever os meus objetivos. Era a única mulher no estágio e nunca consegui chegar perto de uma câmara.”
Eliana Caleia
Dentu Zona exibe a 11 novembro, às 16h
Quando terminou o ensino secundário, na área das artes, não tinha ainda uma perspetiva definida sobre qual o percurso académico a seguir. A licenciatura em cinema cativou-a e resolveu concorrer, acabou por entrar no curso de Cinema da Universidade Lusófona. Foi no último ano que a realização assumiu um papel mais preponderante e que sentiu que era o que queria fazer.
Dentu Zona, filme que realizou no âmbito da cadeira de documentário, é o seu primeiro trabalho. O documentário, que retrata um dia na vida de Vítor Sanches, proprietário de uma livraria, no bairro da Cova da Moura, foi buscar o título à expressão do crioulo cabo-verdiano “dentu zona” que significa “no bairro”.
Enquanto mulher, sente que por vezes não a levam a sério e sendo uma mulher negra a situação torna-se ainda mais difícil. A sua experiência reflete a vivência académica, uma vez que ainda não teve contacto com o meio profissional. No futuro, enquanto realizadora, afirma que pretende abordar questões sobre identidade e memória. “O Dentu Zona foi um ponto de partida para mim pois trata-se de um espaço que contraria a ocultação das pessoas que vivem na periferia, nomeadamente os africanos da diáspora, de forma a mostrar que aqueles corpos existem desocultando-os e às suas histórias. E, é esse o mesmo efeito que quero que futuros projetos meus tenham.”
Simone de Beauvoir
Memórias de uma Menina Bem-Comportada
Simone de Beauvoir (1908-1986) partilhou a vida e a filosofia existencialista com Jean Paul Sartre. Viviam separados, numa “relação aberta”, pois Simone, como feminista, rejeitava o casamento e a noção de família convencional. De Beauvoir escreveu novelas (O Mandarim, de 1954, ganhou o Prémio Goncourt), ensaios e contos sobre temas políticos e ideológicos, do colonialismo ao comunismo, do papel do intelectual na sociedade à análise da existência humana. Em 1949, publicou O Segundo Sexo, estudo sobre a história da opressão da mulher, no qual denunciava a noção de “eterno feminino” como um mito calculado para perpetuar o domínio patriarcal. As Memórias de uma Menina Bem-Comportada descrevem os seus primeiros 21 anos e a construção de uma identidade. A sua educação no seio de uma família burguesa empobrecida e o seu inconformismo face à sociedade da época, fomentado pela sua relação com a literatura e a filosofia e pela influência de algumas ligações humanas fundamentais. A sua orientação no sentido de um compromisso social e filosófico (sempre o motor da sua existência) e na determinação do seu próprio destino. Simone que, após a publicação de O Segundo Sexo, tinha sido percecionada pela crítica como uma mulher amarga e desencantada, revela nestas páginas o seu intenso prazer de viver. Quetzal
Alves Redol
Os Reinegros
Alves Redol (1911-1969), membro destacado do neo-realismo português, introduziu no movimento uma vertente documental com forte influência etnográfica com o romance Gaibéus (1939), nome dado aos camponeses da Beira que iam fazer a ceifa do arroz ao Ribatejo. Os Reinegros é um romance póstumo do escritor cuja ação decorre na década entre o Regicídio e o final da Primeira Grande Guerra. Descreve as mudanças sociais que contribuem para as identidades e tomadas de consciência que os personagens, Alfredo e Julia Reinegro, adquirem ao longo da narrativa. Procurando sobreviver numa época de grandes convulsões sociais, Alfredo, estivador no porto de Lisboa, abraça ferverosamente a causa republicana na busca de um mundo melhor. Apesar da passagem do tempo, as condições dos mais desfavorecidos não mudam, levando-o a partilhar o seu desencanto com os camaradas: “A república deve ser uma coisa bonita. (…) Mas não chega à gente, fica lá muito por cima”. Contudo, face à Revolta Monárquica de Monsanto, resolve juntar-se de novo aos que se dispõem a oferecer a vida para que a republica não morra, “esquecendo todos os agravos e injustiças daqueles anos.” Caminho
Bertolt Brecht
Poemas
Bertolt Brecht (1898-1956) é um dos nomes cimeiros do teatro épico que se opõe, quanto aos fins que pretende atingir, ao teatro clássico. Através do efeito de distanciação privilegia a narração e nega qualquer princípio de ilusão. Ao ator compete representar a ação e não vivê-la e ao espectador tomar uma posição crítica relativamente ao que vê sem reagir emocionalmente. Mas, como escreveu Jorge de Sena, Brecht “foi também um grande poeta quer na poesia que escreveu a vida inteira, quer nos poemas que intercalou (…) nas suas peças”. Este volume acolhe a totalidade das versões brechtianas do ilustre tradutor Paulo Quintela, apresentando-as numa ordenação cronológica. Quintela tinha o propósito de apresentar ao leitor português uma perspetiva muito abrangente da produção lírica de Brecht, tendo no conjunto traduzido mais de 400 dos seus poemas. Entre eles, estes belos versos de forte pendor confessional intitulados Eu, o Sobrevivente: “Sei naturalmente: só por sorte / Sobrevivi a tantos amigos. Mas a noite passada em sonho / Ouvi estes amigos dizerem de mim: ‘Os mais fortes sobrevivem’ / E odiei-me.” Relógio D’Água
Elie Wiesel
Noite
Uma questão se impõe face a este título: o que poderá um livrinho de pouco mais de 100 páginas acrescentar a uma tão vasta literatura sobre o Holocausto? O grande escritor francês François Mauriac, no prefácio a esta edição, procura dar-lhe resposta identificando dois elementos únicos na obra. Em primeiro lugar, a descrição da cegueira dos judeus da cidade de Sighet, na Transilvânia, “diante de um destino do qual teriam tido tempo de fugir mas ao qual, com uma passividade inconcebível, se entregaram, surdos às advertências, às suplicas de uma testemunha que escapou ao massacre e lhes narrou o que tinha visto com os próprios olhos”. Em segundo lugar, a revelação da morte de Deus na alma de uma criança de 14 anos que descobre o mal absoluto: “nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram o meu Deus e a minha alma, e que transformaram os meus sonhos em cinzas. (…) Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram para sempre a minha Fé”. Noite, de Elie Wiesel, sobrevivente dos campos de concentração, Prémio Nobel da Paz em 1986, é um relato comovente e lúcido de uma descida aos infernos que transformou seres humanos em “almas malditas errando no mundo do nada, (…) à procura da sua redenção, em busca do esquecimento – sem esperança de o encontrar.” Dom Quixote
Hervé Guibert
A Imagem Fantasma
Hervé Guibert foi um escritor e crítico francês que morreu aos 36 anos de uma intoxicação farmacológica, quatro anos após ter sido diagnosticado com SIDA. A presente recolha de textos sobre fotografia, uma das suas paixões, teve a primeira edição em 1981, vindo a tornar-se uma obra de culto para os estudiosos da imagem. “Ela fala da fotografia de uma forma negativa, fala apenas de imagens fantasma, de imagens que não apareceram, ou então de imagens latentes, imagens íntimas ao ponto de serem invisíveis. Também se torna como uma tentativa de biografia através da fotografia: cada história individual é duplicada pela sua história fotográfica, feita imagem, imaginada”. Os 64 breves ensaios aqui presentes recaem muitas vezes naquilo que podemos designar por autoficção. A clareza da escrita, de uma objetividade que não tem receio da crueza, era a forma do autor imprimir a sua personalidade em tudo o que fazia. Hervé Guibert era alguém que não tinha medo de se mostrar, nem escondia o seu fascínio consigo mesmo. RG BCF Editores
W. B. Yeats
As Tábuas da Lei
W. B. Yeats (1865-1939) notabilizou-se como poeta nacionalista irlandês e como escritor simbolista de inspiração visionaria e mística. A sua poesia caracteriza-se pelo espiritualismo e esoterismo e centra-se na paixão pelo folclore irlandês, mitos e lendas celtas. Apesar de acompanhar a sua carreira, da juventude à maturidade, a ficção ocupa uma parcela reduzida dentro da produção literária de William Butler Yeats. A ficção passa pelas mesmas fases que a sua poesia ou ensaísmo. Assim sendo, o leitor encontra contos e novelas mais tradicionais a par de alguns mais poéticos ou místicos. Uns de simples compreensão, outros que exigem alguns conhecimentos da cultura tradicional e mitologia irlandesas, outros ainda baseados no oculto tão presente na sua obra. Yeats inspira-se nas lendas celtas e no folclore irlandês para dotar os seus personagens de dons quase divinos, como é o caso do Ruivo Hanrahan (que surge em cerca de uma dezena de contos), apresentado como um fanfarrão bebedolas, que, ao mesmo tempo, parece ter poderes sobrenaturais. Esta edição reúne mais de 25 contos e novelas do autor, bem como a versão mais completa do seu romance biográfico inacabado. E-Primatur
David Grann
Assassinos da Lua das Flores
No início de 1870, os índios da Nação Osage foram expulsos das suas terras no Kansas e levados para uma reserva rochosa sem qualquer valor aparente. Contudo, passadas algumas décadas, sob esse solo rochoso descobriram-se as mais vastas jazidas de petróleo dos Estados Unidos da América. Em 1923, os Osage eram considerados o povo mais rico per capita do mundo. Subitamente começam a ser mortos: o povo mais rico estava a tornar-se o mais assassinado. O caso é levado ao recém-criado FBI, e o seu jovem diretor J. Edgar Hoover cria uma equipa secreta para investigar o caso. Este livro segue a investigação que expõe um bando organizado com o objetivo de matar com veneno, balas e bombas os herdeiros Osage dessas terras ricas em petróleo. O jornalista David Grann resgata esses crimes hediondos, que foram apagados da história do seu país, e constrói uma narrativa americana modelar baseada na supremacia branca, no ódio racial, no homicídio, na corrupção e na ganância. Paralelamente, descobre uma conspiração mais profunda e aterradora que o FBI nunca expôs. Relato impressionante, agora transposto para o cinema por Martin Scorsese. O cineasta, um dos membros da geração da Nova Hollywood com maiores pretensões autorais, volta a demonstrar, com esta penosa adaptação, que a sua obra perdeu todo o fulgor criativo. Quetzal
Françoise Vergès
Um Feminismo Decolonial
Importa, antes de mais, clarificar o uso do vocábulo “decolonial”. Como se lê na nota de tradução da presente obra: “A “descolonização” é associada ao momento de desvinculação das antigas colónias. No entanto, a colonialidade e a lógica colonial perduram, não terminam de um dia para o outro com o fim do colonialismo e com o processo (histórico administrativo e politico) de independência”. É isso que Françoise Vergès, politóloga, historiadora e especialista em estudos pós-coloniais, põe a nu neste livro sobre o trabalho de milhões de mulheres racializadas e sobre-exploradas que limpam o mundo em que vivemos. Sem o seu trabalho, milhões de empregados e agentes do capital, do estado, do exército, das instituições culturais, artísticas e científicas não poderiam ocupar os seus escritórios, comer na cantinas, ter reuniões, tomar decisões em espaços asseados. Trabalho indispensável, mas que se procura manter invisível (executado geralmente à noite ou de madrugada) para evitar a consciência de que é marcado pela raça e pelo género, revelando o passado colonial e esclavagista da sociedade ocidental. A autora denuncia esta opressão normalizada e desafia-nos a combatê-la, criando as condições para um feminismo político e emancipador. Orfeu Negro
Lembra o encenador e diretor artístico da Comuna, João Mota, que Isabel I terá encomendado a Shakespeare, na viragem do século XVI para o século XVII, uma comédia que tivesse como protagonista Sir John Falstaff, o anafado cavaleiro surgido em Henrique IV. Fanfarrão, cobarde, egocêntrico e beberrão são apenas alguns dos adjetivos passíveis de usar para o caracterizar. Foram assim tão baixas “virtudes”, o suficiente para tornar o bufão Falstaff numa das personagens mais célebres da cultura ocidental e, provavelmente, a mais famosa das personagens cómicas do teatro de Shakespeare. Como exemplo, basta lembrar que “notáveis” como Verdi e Orson Welles não conseguiram escapar à sedução deste personagem que, como dizia Harold Bloom, tomara “vida própria e roubado a cena” aos demais, tornando-se o centro das atenções nas duas partes da peça Henrique IV.
A popularidade desta magnifica “encarnação do vício”, com todo um lado cómico irresistível que o aproximava do homem comum, levou Shakespeare a coloca-lo diretamente no centro da ação e a escrever a comédia As Alegres Comadres de Windsor, estreada em 1602.
Na peça, Sir John Falstaff chega a Windsor completamente falido, mercê de uma vida viciosa e boémia. Crente em não deixar as suas capacidades por mãos alheias, decide dar resposta aos problemas financeiros que o apoquentam seduzindo as senhoras Ford e Page, mulheres casadas com os homens mais abastados da cidade. No entanto, o que Falstaff desconhece é que ambas são comadres e partilham entre elas os segredos mais íntimos, estando convictas, como dizem, que “duas mulheres juntas valem mais do que o próprio diabo.”
Para complicar a situação do fanfarrão, o marido da senhora Ford é um ciumento obsessivo, capaz de não deixa pedra sobre pedra no intuito de evitar que a sua amada o traia. Para além de uma capacidade quase animalesca de farejar o adultério, o senhor Ford é um mestre no disfarce. Será assim através dessa arte que acaba por um encontrar um engenhoso estratagema para antecipar as movimentações de Falstaff.
Entretanto, na casa Page, a filha Anne atinge a idade de casar e os pais estão apostados em conseguir o melhor pretendente. Contudo, nenhum dos possíveis noivos agrada à jovem donzela cujo coração já tem dono. Há então, que recorrer à astucia e ao engano. Mas, tudo pela mais nobre das causas, ou seja, o triunfo do amor.
Pensada para ter sido levada a cena no D. Maria II aquando da sua passagem enquanto diretor artístico do Teatro Nacional (tendo João Perry no papel de Falstaff), João Mota cumpre agora, na “sua” Comuna, o sonho de dirigir As Alegres Comadres de Windsor. Baseando-se na versão de Francisco Ribeiro (Ribeirinho) – encenada, precisamente, no D. Maria II em 1978 –, Mota sublinha que a peça é “um hino à inteligência das mulheres. São elas que desarmam a personificação do pecado, da luxúria e do dinheiro que está tão presente em Falstaff.”
Ao mesmo tempo, o histórico encenador destaca “o lado brejeiro do teatro quinhentista” que tanto lhe agrada e transforma a comédia “na farsa”. Nesse sentido, As Alegres Comadres de Windsor torna-se um divertimento frenético onde a cupidez e a irracionalidade do ciúme são derrotadas através do poder mágico do amor, sublinhado num final feliz que é aqui encaminhado cena a cena pela música de Mozart.
Protagonizado por João Grosso, em Falstaff, e pelas atrizes Maria Ana Filipe e Margarida Cardeal, nos papéis das cobiçadas “comadres”, o espetáculo conta com um notável elenco de secundários composto por Almeno Gonçalves, Francisco Pereira de Almeida, Gonçalo Botelho, Hugo Franco, Luciana Ribeiro, Miguel Sermão, Luís Gaspar, Sofia Maduro Grilo e Rogério Vale.
Há quantos anos se conhecem?
Samuel Úria (SU): Há mais de 15 anos. Conhecemo-nos por intermédio de amigos. Na altura eu estava a viver em Évora e trabalhava numa agência de marketing e comunicação. Tinha uma colega de Braga que tinha sido namorada do B Fachada, que sabia que eu fazia música e pôs-nos em contacto. O B Fachada era amigo do Luís e falou-me nele. Encontrei-o no MySpace, essa rede social extinta…
Benjamim (B): Na altura, o Samuel mandou-me a canção Barbarella e Barba Rala. Foi logo amor à primeira audição e mandei-lhe uma mensagem de fã pelo MySpace [risos].
SU: Na verdade, fomo-nos encontrando porque acabámos por frequentar os mesmos sítios, como o Cabaret Maxime, que era um sítio muito agregador, dávamos muitos concertos por lá. Mesmo não tocando juntos, éramos próximos de pessoas com quem um e outro tocava.
B: Fazíamos parte do mesmo ecossistema…
Em janeiro deste ano, atuaram no Maria Matos no ciclo de concertos Conta-me uma Canção. Foi o primeiro que deram juntos?
SU: Enquanto dupla sim, foi a primeira vez…
B: Embora já tivéssemos feito uma perninha nos concertos um do outro.
Esse espetáculo tinha um formato muito próprio, em que tocavam músicas um do outro e conversavam sobre elas. Foi aí que surgiu a ideia para este concerto que agora levam ao Tivoli?
B: Há uns dois ou três anos enviei um email ao Samuel com uma ideia musical básica, ao piano, a trautear uma melodia sem letra. Perguntei se ele não queria fazer uma letra para aquela canção mas, como não havia urgência o assunto ficou adormecido. Quando estávamos a ensaiar para o Conta-me uma Canção, perguntei se ele não queria fazer a letra para a canção que lhe tinha enviado e ele respondeu que já a tinha escrito. Andei quatro semanas a chateá-lo para me enviar a letra e isso acabou por ser o mote para sairmos do registo do Conta-me uma Canção, que era um formato que servia para várias duplas, e para assumirmos um concerto que não é só uma conversa, mas sim um diálogo musical assente numa colaboração concreta.
SU: Apesar de tudo, no Conta-me uma Canção, embora colaborássemos em algumas canções, o formato era mais segmentado. Ora tocávamos uma canção do Luís, ora uma minha. Agora a ideia é estarmos ambos a tocar as canções quase como se fossemos uma banda com dois autores.
Estão a referir-se ao tema Os Raros. Como foi o processo de criação?
B: Eu já tinha a base musical desta canção há muito tempo… para mim, foi libertadora a experiência de ter alguém a trabalhar a letra de uma canção – que é uma coisa tão íntima –, apropriar-se dela e atribuir-lhe um significado concreto. Achei isso muito interessante, nunca o tinha feito.
SU: É um trabalho que faço com alguma regularidade, mas as parcerias que tenho são de escrever letras para outras pessoas. Também já fiz o inverso, mas não gosto tanto. Custa-me mais musicar uma letra pré-existente até porque às vezes as métricas não são muito regulares ou então são regulares demais… Por exemplo, com os Clã, a minha colaboração nos últimos anos tem sido eles enviarem-me canções com a Manuela [Azevedo] a trautear ou a cantar versões de músicas em inglês já existentes, e eu depois a fazer uma versão em português. Com o Luís não foi difícil – assim que arranjei um conceito – porque ele tinha-me enviado a canção trauteada já com uma métrica muito certinha, por isso foi fácil pensar nas sílabas que encaixariam naquela canção. Não foi um exercício complicado. Quando escrevi a canção, as sílabas até batiam muito com a interpretação original do Luís. Depois, a partir do momento que a canção foi interpretada e ensaiada, ganhou outra vida e mais liberdade.
Como foi decidido o alinhamento para este concerto?
SU: Fizemos uma espécie de apresentação no festival Chefs on Fire, que foi um formato que congregava mais do que no Conta-me uma Canção, onde havia muita conversa pelo meio e uma mudança de foco, embora participássemos os dois. O concerto no Tivoli terá essa energia de funcionarmos quase como uma banda que tem dois autores, mas que tocam as canções um do outro, com um formato que somos nós a criar. Não nos estamos a adaptar a um palco, estamos a adaptar o palco àquilo que queremos fazer. Já temos uma ideia bem definida do que queremos. Há muitos momentos, há partes individuais, mas vai ser um concerto muito coeso no sentido de estarmos os dois em palco, será homogéneo.

Vai também haver conversa durante o concerto e vão partilhar histórias das vossas canções?
B: Antes de entrarmos em palco no Conta-me uma Canção, o Paulo Salgado – que foi a pessoa que pensou no formato – disse-nos: “atenção que isto não é um concerto!”. Aqui será um concerto, mas é inevitável que conversemos em palco, até porque o Samuel é a pessoa mais bem-falante da música portuguesa [risos], seria um desperdício de recursos não o pôr a falar… Penso que o público também estará à espera dessa dinâmica.
SU: Acaba por se tornar um chavão quando duas pessoas se juntam para fazer um concerto e dizem: “isto é uma celebração da nossa amizade”. Nós queremos fazer um concerto, mas é inevitável, temos uma relação que não se confina à música, e quando estamos em palco não somos impermeáveis a isso.
Têm planos para fazer um disco juntos ou nunca pensaram nisso?
SU: Se a oportunidade surgir estarei recetivo a isso.
B: As coisas têm acontecido naturalmente e gosto de acreditar que acontecem por uma razão que não seja forçada. Tivemos aquele encontro em palco no Conta-me uma Canção, depois surgiu esta canção que fizemos os dois e que, por sua vez, deu azo a este encontro de dia 4 no Tivoli. Mesmo que estejamos dois anos sem tocar juntos, se calhar nessa altura teremos ideias para fazer outra coisa…
SU: A não ser que aconteça algo que destrua a nossa relação… [risos]
Que canção um do outro gostariam de ter escrito?
B: Há muitas músicas que poderia dizer. É raro e é bom quando trabalhamos com alguém que admiramos de tal maneira que essa pessoa estabelece um standard para aquilo que queremos fazer. Quando comecei a escrever em português, um dos meus standards era o Samuel Úria, portanto há muitas canções dele que eu gostaria de ter escrito. Por outro lado, era impossível eu ter escrito a maior parte delas [risos]. Mas, se tivesse de escolher, se calhar seria Barbarella e Barba Rala, porque foi a primeira canção dele que ouvi e que me influenciou muito. Marcou muito a maneira como escrevo.
SU: Vou escolher uma canção que seria impossível para mim conseguir escrever. Gostava de a ter escrito, para já porque ganhava uma data de recursos técnicos que não tenho, e porque acho que é uma das melhores canções portuguesas da última década: Vias de Extinção. Já disse isto várias vezes, o meu apreço por essa canção é uma opinião que é bastante pública.
O último disco do Benjamim, Vias de Extinção, foi lançado em 2020. No mesmo ano, o Samuel lançou Canções do Pós Guerra. Para quando novos discos?
SU: Acho que estamos os dois a pensar em 2024, só que há aqui uma grande diferença, é que o Luís tem o disco quase pronto e eu não tenho quase nada… o excesso de tempo, por não ter havido muita urgência nos últimos dois anos, fez com que eu acumulasse muitas canções e isso às vezes não é bom. Quando o tempo é restrito, dentro daquelas cantigas que me surgem há um imediatismo que faz com que eu queira muito pô-las em disco. Tendo tempo e não tendo obrigação, começo a duvidar muito das canções que tenho. Tenho este espírito um bocado conservador de continuar a pensar nas músicas como um conjunto. Tenho canções que acho que até podem ter algum potencial, mas que não fazem sentido estarem no mesmo disco. Tive de fazer umas “escolhas de Sofia”…
B: O meu deve sair no início do próximo ano.
Depois de Lisboa e Porto, há planos para uma digressão nacional?
SU: Muitas vezes esses planos surgem da vontade das salas em programar. Não podemos arriscar fazer produção própria pelo país fora sem termos a certeza que irá resultar. Penso que o concerto vai correr bem, estou muito confiante no que estamos a preparar, mas a nossa expectativa está limitada àquilo que sabemos que vamos fazer. Às vezes há aquele equívoco de que quando não vamos tocar a um sítio, as pessoas acham que é porque não queremos e isso muito raramente depende dos artistas. Sobretudo num país pequeno, estas produções ainda estão muito centralizadas.
B: Neste concerto estamos a criar um palco novo, um formato novo. O nosso limite para arriscar foi pensar nestes dois concertos. Nós queremos fazer isto. Mesmo que as salas estivessem vazias íamos querer fazer na mesma porque faz sentido para nós. Tudo o que vier a seguir será consequência disso.
Com uma vida empresarial repleta de sucessos, Pedro Henrique (Adriano Luz) desprezou a família e perdeu-a. Literalmente, porque um acidente de avião vitimou-a por inteiro. Quando toma conhecimento de que padece de uma doença terminal, o empresário decide contratar vários atores durante uma semana, levando-os para a sua casa de campo e pedindo-lhes que interpretem cada membro da família desaparecida. Contudo, a decisão desesperada deste homem à procura de ajustar contas com o passado depressa se vai revelar caótica. Afinal, como assume Ricardo Neves-Neves, encenador deste O regresso de Ricardo III no comboio das 9h24, “trata-se de um grupo de atores muito desequilibrado, em que cada um deles tem um parafuso a menos.”
Senão, vejamos: para interpretar Isa (Susana Blazer), mulher de Pedro Henrique, a atriz é demasiado jovem e, talvez, excessivamente preciosista para as exigências de um papel que se quer secundário; a interpretação da irmã, Manuela (Ana Nave), cabe a uma atriz inconformada com o sentido descendente da carreira, estando constantemente a convencer-se a si e aos outros de que ainda será capaz de trocar os recitais de poesia em lares de idosos por um regresso apoteótico aos grandes palcos.
Depois, há os filhos. A mais nova, Elisabete (Jessica Athayde), é interpretada por uma atriz em crise de identidade, muito capaz de vir a perceber que a solução para a sua vida passará por mudar de profissão. O papel do filho pródigo, Ricardo (Samuel Alves), começa por ser interpretado por um ator que abandona o papel ao receber uma chamada a anunciar que foi selecionado para filmar um spot publicitário, em Nova Iorque, para uma conhecida marca de automóveis, ao lado de Leonardo Di Caprio. Em sua substituição chega um novo Ricardo (Rui Melo), desempenhado por um ator irrascível, pouco polido e abusivamente dado ao improviso.
A estes junta-se ainda o melhor amigo e sócio brasileiro de Pedro Henrique, William (Miguel Thiré), interpretado por alguém que crê que só faz sentido ser-se ator se se for um sedutor (com tudo o que isso pode implicar); e o papel da mulher de Ricardo, Maria Cristina (Raquel Tillo), é entregue a uma atriz decidida a dar, à semelhança daquilo que é na vida real, uma personalidade inabalável ao papel que lhe calhou em sorte.
Como se calcula, tudo isto acaba por fugir muito rapidamente ao controlo de Pedro Henrique que, tal encenador em desespero, vai-se tornando cada vez mais impotente para manter os atores nos seus papéis e evitar que a “sua” ficção tome conta da realidade. Até porque, como a dado momento se escuta, “no teatro é tudo verdade desde que estejamos dispostos a acreditar.”
Mas, será que estaremos dispostos a isso quando, em palco, se questionar a tragédia da família, ou a doença de Pedro Henrique? Ou o porquê de em cena estar presente um amigo e sócio de negócios? Ou até quando algum dos atores achar que, talvez, seja melhor trocar de papel com outro?
Nomeada para o prestigiado Prémio Molière na categoria de melhor comédia, a peça do ator e dramaturgo francês Gilles Dyrek chegou às mãos de Neves-Neves por intermédio de Sandra Faria, da Força de Produção. “A Sandra investiga peças contemporâneas que estão a fazer sucesso pelos palcos da Europa e um dia falou-me nesta. Li-a e gostei imediatamente desta coisa de colocar os atores a mostrarem-se por dentro, deste jogo entre o teatro e a vida. E, também, de uma certa melancolia que há nesta comédia”, assume Neves-Neves.
Garantido um turbilhão de riso e gargalhadas, mas também de alguma introspeção sobre os mecanismos de relação do teatro com o faz de conta e a realidade, O regresso de Ricardo III no comboio das 9h24 é a nova proposta da Força de Produção para o Teatro Maria Matos, com estreia marcada para 26 de outubro.
É um tour de force para Tânia Alves que, para interpretar uma mulher cujo “palco pesa sobre o corpo” – mulher essa a quem se ouve, logo nos primeiros minutos do espetáculo, a pergunta: “como se pode representar uma tragédia estando no meio dela?” -, vai aprendendo “a superar o desconforto e a privação” implícitas a estar quase uma hora prostrada num estrado rígido, praticamente imóvel, “fazendo da palavra, ação”. Em Um Nó Apertado encontramos uma mulher despojada da vitalidade do corpo, onde ressoam vozes de heroínas trágicas do teatro clássico que, como que chegadas à atualidade, se debatem com aquilo que Lígia Soares, autora do texto, define como a “fatalidade iminente”, ou seja, com a procura desse “fatal desígnio” que, como escreve na folha de sala do espetáculo, não podemos “evitar senão estivermos dispostos à subversão e desobediência caraterísticas das heroínas trágicas que desafiaram leis, reis e estados para poderem honrar, salvar ou condenar filhos, irmãos e maridos.”
Mas, quem é, afinal, esta mulher que convoca a memória e o peso de um tempo de violência que é o nosso? Para encontrar pistas que nos levem a esta resposta importa, talvez, voltar ao início, recordando como tudo começou.
“Este espetáculo insere-se num ciclo sobre a memória que, por sua vez, tem as heroínas trágicas como sub-temática”, explica a encenadora Marta Lapa. “Depois de termos desafiado o David Pereira Bastos [que encenou o espetáculo Dirty Shoes Don’t Go To Heaven no final da temporada passada], a Escola de Mulheres convidou a Lígia a escrever uma peça inspirada nesta temática”, lembra, recordando que terá mencionado “a Medeia, a Hécuba, a Cassandra e, provavelmente, a Antígona,” como referências para se procurar saber “o que é, nos dias de hoje, uma heroína trágica.”
Ainda com o texto “muito em bruto”, a autora, a encenadora e a atriz Tânia Alves começaram “a procurar o lugar do espetáculo” ou, dito de outro modo, “a descobrir o lugar certo para que o texto atravesse a atriz e nos atravesse a nós, público”. Num ensaio, a atriz apercebe-se que “o texto projeta a queda”, sendo aquela mulher “alguém caído no chão”. Inesperadamente, Marta Lapa, artista “da dança e do corpo”, percebe que o caminho será dirigir uma atriz que acaba de descobrir, precisamente através da privação do corpo, como fazer “o texto ecoar” e “atravessar e atravessar-nos”. E assim, conta Tânia Alves, “encontrámos o sítio justo para o fazer: o sítio da privação, do ermo, da violência.”
Encontrado “o sítio”, parte-se na procura de descobrir quem é esta “heroína” que nos lembra, diz Marta Lapa, como “o futuro se esvazia à nossa frente”. Nesta demanda, reconhece-se uma mulher “no meio da tragédia”, sendo ela todas as filhas e todas as mães, talvez cansadas de sofrimento e de ausência de paz. Como explica Tânia Alves, “ainda estou à procura de saber quem ela é, mas creio que todas a reconhecemos em nós mesmas, e mesmo não tendo vivido aquilo que nos conta, sabemos que a conhecemos.”
Embora tenha sido um espetáculo intimamente “construído pelas três”, Marta Lapa destaca “o apoio precioso e imprescindível” de Vítor Alves da Silva (que também assina o figurino), “a música original da Sandra Martins, a luz do Paulo Santos e, claro, de toda a Escola de Mulheres”, companhia que dirige com Ruy Malheiro desde o desaparecimento de Fernanda Lapa.
Estreado no passado dia 20 em Ponte de Lima, Um Nó Apertado chega ao Clube Estefânia a 25 de outubro, permanecendo em cena de quarta a domingo, até 5 de novembro.
No final desta viagem a uma cidade sem nome, assalta-nos uma profunda perturbação: como é que um texto escrito em 1994, tendo como eco a guerra nos Balcãs, pode ter-se tornado, em menos de duas décadas, tão atual? Passado o efeito do choque, talvez consigamos concluir que, afinal, todas as questões levantadas pela peça de David Greig nunca deixaram de estar presentes na realidade europeia.
“O problema”, como sublinha o encenador Pedro Carraca, “é que muito provavelmente nos deixámos adormecer na paz”, e naquilo que na viragem do século fazia da Europa “um projeto cheio de futuro”. Agora, como diz um personagem da peça a dado momento, “arriscamos deixar este sítio para os lobos“. Europa é, por isso mesmo, um espetáculo para despertar e, consequentemente, contribuir para que isso não aconteça.
A ação situa-se num pequena cidade fronteiriça, importante em tempos porque, como revela ainda com orgulho o chefe da estação, Fret (Américo Silva), até chegou a haver alfândega. Um dia, o principal empregador da cidade, uma fábrica de lâmpadas, anuncia o fecho e muitos dos seus trabalhadores, como Berlin (Gonçalo Carvalho), tornam-se desempregados. Ao clima de tensão que começa instalar-se, junta-se a chegada de “gente de fora”, nomeadamente de Sava (Pedro Pinto) e Katia (Rita Rocha Silva), pai e filha em fuga, que passam a pernoitar na estação de Fret, onde os comboios já não param e só por inoperância burocrática ainda não está definitivamente encerrada.
Entretanto, é com os olhos cada vez mais fixos no horizonte, para lá da orla da floresta, e ansiando por ser levada pelos comboios que já não param na estação, que encontramos Adele (Inês Pereira). Enquanto o companheiro, Berlin, passa o dia a beber com os amigos Billy (Pedro Caeiro) e Horse (Simon Frankel), e a aderir cada vez mais ao discurso da extrema-direita, que se alimenta das frustrações dos desempregados para apontar responsabilidades aos estrangeiros que chegam, Adele aproxima-se da “refugiada” Katia, prometendo ajudá-la a conseguir documentos. Para isso, conta com os “truques de magia” do recém regressado Morocco (Nuno Gonçalo Rodrigues), um muito viajado e pouco escrupuloso “contrabandista”.
Era uma vez “uma peça datada”
Autor de eleição dos Artistas Unidos (AU), quando se menciona o escocês David Greig (n.1969) é quase impossível não lembrar a encenação que Franzisca Aarflot fez para a muito agridoce comédia Cantigas de Uma Noite de Verão – que Pedro Carraca protagonizou, ao lado de Andreia Bento –, um dos grandes sucessos da companhia na década passada (temporada de estreia no Teatro da Trindade em 2010 e, três anos depois, uma reposição com igual sucesso no Teatro da Politécnica).
“Antes disso, ainda n’ A Capital [antiga casa dos AU no Bairro Alto] tínhamos feito leituras de duas peças anteriores do David: A última mensagem do cosmonauta para a mulher que um dia amou na antiga União Soviética e, precisamente, Europa”. Esta última, lembra Carraca, “chegou a estar pensada ser levada a cena” mas, na altura, “havia dificuldades em reunir um elenco tão grande. Quando se tornou viável fazê-la, a paz chegara aos Balcãs e a questão dos refugiados não parecia premente. De repente, um texto que tinha feito tanto sucesso estava datado.”
Estreada em outubro de 1994, no Traverse Theatre, em Edimburgo, Europa foi a primeira peça longa e da consagração internacional do então muito jovem David Greig. A Guerra Fria acabara poucos anos antes, mas, no centro da Europa, na sequência da desagregação da Jugoslávia, a guerra “quente” voltava ao velho continente. Dos Balcãs, chegavam a outros países europeus pessoas em fuga, enquanto a globalização económica acelerava e as grandes empresas se deslocalizavam para oriente em busca de mão de obra barata, deixando para trás um rasto de desemprego.
Ao mesmo tempo, a Europa abolia fronteiras (o chamado Espaço Schengen, criado em 1985, continua a estender-se e, ainda este ano, recebeu o 27.º Estado aderente: a Croácia) e a extrema-direita reorganizava-se, ganhando palco com o apelo nacionalista e o ênfase nas ameaças “externas”, nomeadamente na chegada de migrantes que, como diz uma personagem na peça, “nos vêm roubar os empregos.”
Greig conjuga notavelmente estes temas, revelando através das oito personagens de Europa várias nuances de todo um sonho que desaba. E, de repente, apercebemo-nos que o que nos liga a 1994 continua a estar demasiado presente. “Os migrantes já não são, essencialmente, outros europeus”, e chegam do Sul, cruzando o Mediterrâneo em busca de uma vida condigna. A leste, voltou a guerra, e a extrema-direita “deixou de ser essencialmente skin head e reinventou-se”, vestiu fato e gravata e, hoje, até ocupa instâncias de poder em vários países da Europa.
Não foi, portanto, necessário mudar praticamente nada no texto para que Europa voltasse a fazer sentido. “O [tradutor] Pedro Marques limitou-se a rever a tradução anterior para substituir alguns termos que estão desatualizados”. Porém, “há umas semanas, soube que o David fez algumas adaptações ao texto original para encenações recentes em Inglaterra. Estou muito curioso em saber quais foram, mas desconfio que se prendam com nomes de cidades para que não se sublinhe tantos os Balcãs.”
Para cumprir “o objetivo do teatro, que é suscitar a discussão”, aí está Europa em estreia na Sala Luís Miguel Cintra do Teatro São Luiz a 18 de outubro. O espetáculo permanece em cena, de quarta a domingo, até ao próximo dia 29, prosseguindo carreira em novembro, com passagem pelo Festival de Teatro do Seixal (dia 9) e com récitas marcadas para Palmela (dia 11), Barcelos (dia 18), Covilhã (dia 25) e Évora (dias 29 e 30).
paginations here