Como surgiu esta parceria com o LU.CA?
A primeira vez que falámos sobre este projeto foi há dois anos. A ideia materializou-se no ano passado, com três pequenos vídeos chamados Ficções Coolinárias, criados para as plataformas digitais do LU.CA, e que abordavam o tema dos doces tradicionais de Natal. Começámos com os sonhos, as rabanadas e o bolo-rei para contar uma história que não é necessariamente estanque, que se vai construindo. Cada vez que praticas alguma coisa que é tradicional, podes acrescentar-lhe a tua camada de intervenção sobre isso. Este Ciclo das Comidas é o culminar de uma coisa muito bonita surgida quando, através do universo da gastronomia, me tornei uma pessoa muito mais visível. Isso coincidiu com o momento em que a minha filha mais velha começou a fazer introdução alimentar e surgiram uma série de constatações muito práticas, que também partiam das minhas inquietações. O facto de eu ter o pensamento mais condicionado e forjado para o lado artístico teve uma influência muito grande.
E de repente começaste a ser associada à culinária…
O meu marido convenceu-me a explorar este universo das receitas de uma forma que fosse pública e que tivesse uma certa utilidade. Porque a comida tem mesmo a ver com o sentimento de partilha, de comunhão, de criação de laços… começou por aí e culminou com Nhom Nhom, o meu primeiro livro de receitas. Nhom Nhom são as onomatopeias do prazer e esse livro está todo construído em torno de uma herança gastronómica que tenho e que não sabia ter um potencial tão interessante. De repente, fazer caldeirada, ensopado de borrego ou sopas de tomate para dar a uma criança, como as avós faziam antigamente, tornou-se uma coisa enorme e começou a ocupar uma parte ainda mais central da minha vida. Percebi, com a pediatra dos meus filhos, que isso era uma prática pouco comum porque há uma camada de conveniência que surge na nossa alimentação mais contemporânea, que tem a ver com a introdução dos ultraprocessados. Esse lado da degradação alimentar é uma coisa que me preocupa. Isto tudo eram coisas que eu não sabia que poderiam ser transformadas noutros objetos: livros, espetáculos, programas de televisão. Não tinha consciência de que era, de facto, um campo de oportunidades.
O ciclo inclui uma exposição, uma oficina, um podcast, uma sessão de contos, um espetáculo e uma leitura encenada. Foi fácil encontrar as pessoas certas para integrarem este projeto?
Grande parte da escolha está intimamente ligada a este percurso. Por exemplo, na sessão de contos temos o Paulo Pascoal, que já tinha feito parte das Ficções Coolinárias; o Tiago Miranda, que também participa na sessão de contos, é um artista que aprecio imenso e que tem muitos filhos, portanto é uma pessoa que está perto da infância; a cenografia e a imagem estão comissariadas à Margarida Alfacinha, uma artista de quem gosto muito e que também tem um traço muito especial. Existe uma particularidade muito interessante na Margarida, porque é pintora, e a pintura enquanto atividade física também é uma coisa muito interessante que as crianças continuam a gostar de explorar. A Patrícia Azevedo Silva, curadora do ciclo de conversas, é alguém com quem tenho muitos anos de relação, não só de amizade, mas de intercâmbio de conhecimento e experiências, sempre relacionadas com comida, comunidade e maternidade; o Rogério Nuno Costa faz os podcasts comigo, é um artista performativo que há muitos anos anda a brincar com a comida, e havia uma vontade muito antiga de trabalhar em conjunto; a Cristina Taquelim contava histórias na Biblioteca Municipal de Beja, onde cresci. Quis proporcionar a mais crianças a hipótese de ouvirem histórias contadas por uma pessoa que marcou para sempre a minha forma de ouvir uma história. O espetáculo também tem a participação da Rita Blanco, que faz o papel de uma mãe abstrata, mas está ali a servir esse propósito muito importante. A minha experiência de infância é extraurbana, é mais rural, especialmente a minha ligação à gastronomia, que vem de uma forte ligação com a terra, com o campo. Portanto, estas coisas nunca deixam de ser extremamente autobiográficas.
Mostrar às crianças que cozinhar (e comer de forma saudável) pode ser divertido é um desafio?
Pela minha experiência pessoal não é um desafio, é uma prática quotidiana. Quando somos crianças, possuímos uma curiosidade latente e inata que nos faz querer descobrir imensas coisas. E comer na infância, pelo menos nesta experiência que eu tenho com os meus filhos, é uma coisa muito aventureira. Podemos viajar através da boca, que é uma cavidade que manda imensa informação para o cérebro e isso é um campo imenso de oportunidades. É importante desmontar a ideia do que é saudável e do que não é, de como é que se come… à medida que pesquiso e mergulho no universo da alimentação, mais coisas vou descobrindo que não têm um significado único. Há muitas camadas de informação e de conhecimento e há muitas coisas que convergem para isto. E através da comida tu podes falar de tudo, portanto, como não utilizar este veículo?
Os teus filhos foram uma grande fonte de inspiração para este projeto?
É uma resposta bastante óbvia [risos]. Peço-lhes opiniões. Vou fazendo, vou mostrando e vou dando para ler, e eles são muito críticos, obviamente. A dada altura, nas nossas vidas, esquecemo-nos da nossa criança interior. Deixamo-la num sítio qualquer e, de repente, já não sabemos brincar, já não sabemos divertir-nos, mas continuamos a poder fazê-lo. Mesmo sendo adultos e tendo um trabalho sério, não podemos deixar que isso desapareça. Devíamos manter a capacidade para rir, para descobrir, para nos contentarmos com coisas simples.

Os figurinos também são da tua responsabilidade. Afinal, há alguma coisa que não saibas fazer?
Tantas coisas [risos]. Os figurinos funcionam como um prolongamento daquilo que queremos dizer no espetáculo. Não esquecer que faço parte do Teatro Praga e venho dessa escola. Não ter oportunidade de intervir nessa linha discursiva extra, seria uma grande tristeza. Na possibilidade de poder refletir um bocadinho sobre isso, achei que me apetecia também fazer. Nem sequer pus a hipótese de pôr outra pessoa a fazer figurinos.
A comida tem um papel determinante na tua vida. Como surgiu esta paixão?
Passei mais de metade da minha infância sentada à mesa em jantares e almoços de família e de amigos dos pais. Depois, os meus pais tiveram um restaurante, por isso esta parte também me marcou e alterou completamente a minha visão sobre a alimentação, acima de tudo, porque sempre gostei de comer e sempre tive uma relação excelente com a comida. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que comi um ultraprocessado. Não gosto de refrigerantes, não bebo. Gosto de doçaria tradicional portuguesa, gosto de coisas afogadas em gemas, açúcar e frutos secos. Quando viajo gosto de provar iguarias locais. Lembro-me de ser miúda e de poupar dinheiro para ir comer a um restaurante especial. Também tenho muito presente coisas como hortas, conhecer fornecedores, ir apanhar fruta, ir ao mercado… conhecer o senhor Malagueira, o talhante que tratava do fornecimento da carne para o restaurante dos meus pais…
Essa experiência foi fundamental?
O senhor Malagueira ensinava-me a maior parte das coisas e tenho essas memórias muito próximas. De repente havia um adulto que tinha paciência para aturar uma miúda com 11 ou 12 anos, e de explicar como é que se fazia o corte da carne. Isso foram tudo coisas muito importantes, porque acabaram por me ajudar mais tarde. O conhecimento que se vai adquirindo à medida que vamos crescendo tem uma serventia. Portanto, ajuda-nos a escolher melhor, a ser mais conscientes. É conhecimento, no fundo.
No A La Barrios, no canal 24kitchen, todos os pratos que fazes parecem fáceis e divertidos, mas a correria do dia-a-dia nem sempre permite olhar para a cozinha dessa forma. Qual é o truque para enfrentar os tachos nos dias mais cansativos?
Chama-se organização. É fazer produção, mas com comida e em casa. Normalmente organizo as semanas de acordo com as coisas que já sei que vou ter para fazer. E, como não trabalho num escritório, consigo perceber o que é que vai acontecer na minha semana e trabalhar com antecedência. Faço uma grande panelada de sopa, que depois vou desdobrando, e vou alterando as coisas que estão lá dentro a boiar. Faço uma grande comida de tacho, que sei que vai dar para duas ou três refeições na sua forma original, e que depois se pode desmultiplicar noutras tantas. Assim, quando encomendo do talho ou da peixaria, já tenho um plano. Nos dias mais intensos de trabalho, temos tendência a alimentar-nos pior e isso tem implicações muito claras. Ficamos mais cansados e rabugentos. Com fome, ninguém é simpático. O truque é ter um processo otimizado, é uma questão de organização. Nos programas de culinária as coisas já vêm em tacinhas, tudo cortado e descascado. Isso chama-se mise en place na gíria técnica dos restaurantes. Se fizermos mise en place em casa, primeiro sujamos tudo, deixamos tudo desorganizado. Deixa-se tudo em tacinhas, limpa-se a tábua, a faca, as cascas e depois, quando vamos para o fogão, já está tudo ali, já não há aquele caos. Quanto mais organizada for a operação na cozinha, melhor. Isto são tudo coisas que aprendi no restaurante.

Há algum prato ou ingrediente difícil que tenhas levado os teus filhos a gostar?
Temos uma espécie de regra: só se pode não gostar de uma coisa. São coisas muito parvas. A minha filha, por exemplo, não gosta de amêndoas sem pele. O meu filho não gosta de queijo flamengo. Se lhe deres um queijo de ovelha, cheio de cardo, daquele tipo Nisa, que pica, perfeito. Gostam acima de tudo de experimentar. Gostam do ritual, da experiência, e nós temos uma brincadeira: o clube dos pequenos críticos gastronómicos. Se formos a um sítio diferente estimulamos sempre os miúdos a comentar o prato, a tentar perceber o que é que tem, perceber a que é que sabe, se sabe bem ou mal. Desmontamos um bocado o processo, eles fazem parte da crítica e da conversa.
Moda, alimentação e teatro são algumas das tuas grandes paixões. Conseguirias escolher alguma?
Tendo consciência daquilo que é possível fazer e de que a alimentação é um palco que permite explorar todas as outras áreas, acho que escolheria a alimentação porque, na verdade, é possível estar a cozinhar e vestirmo-nos de acordo ou em desacordo com o que vamos cozinhar. Quando estou a organizar uma receita vou à lista de ingredientes e penso numa série de temas para abordar. O alho, a cebola, os brócolos, a folha de louro, tudo tem uma origem, um significado, não sei quantas linhas discursivas, portanto, acho que a comida tem esse sentido. Consegues reunir todos esses mundos com a comida.
Pergunta dos 50 mil euros: qual é o prato preferido de Joana Barrios?
Isso é muito fácil. É doce e é uma coisa obscena que se chama Fidalgo e que precisa de 64 ovos para confecionar. É genial, é perfeito, é muito bom. E o que eu mais aprecio no Fidalgo é que requer três ou quatro formas de trabalhar os ovos e o açúcar. A receita é muito pobre em ingredientes, são dois, três ingredientes, mas transformados através de várias técnicas, portanto isso tem muito interesse. É maximal, minimal, uma coisa forte. Poucos ingredientes, resultados máximos. Falando de pratos salgados, o borrego assado no forno ou ensopado de borrego. Borrego realmente é uma coisa extraordinária. É maravilhoso e é muito complexo no sabor, é delicado, é nutritivo e tem essa quantidade de linhas discursivas que eu também aprecio imenso, e faz-me lembrar um monte de coisas boas. Lembra-me casa, convívio, a mesa em frente à lareira no restaurante dos meus pais, onde se almoçava, mas também se conheciam pessoas, onde conheci o Teatro Praga, por exemplo, e onde conheci pessoas que, de alguma forma, marcaram muito as minhas escolhas e percursos.
O que tens planeado para 2025?
Temos os 30 anos do Teatro Praga, que regressa ao [antigo hospital] Miguel Bombarda. Para mim é muito bonito, não só porque faço parte da companhia, mas também porque, obviamente, é um espaço que me diz muito, tem esse lado também afetivo muito bonito até porque a primeira vez que trabalhei com o Teatro Praga foi ainda no Miguel Bombarda. Não sei como é que vai ser voltar àquele sítio, que, entretanto, reabriu [como Jardins do Bombarda]. E, depois, tenho imensas coisas para fazer, mas não sei se posso já dizer…
Mais livros de receitas?
Será? Não sei [risos]…
Viet Thanh Nguyen
Um Homem de Duas Caras
Viet Thanh Nguyen entrou nos Estados Unidos da América aos quatro anos levado pelos pais, refugiados da guerra do Vietname. O escritor, vencedor do Prémio Pulitzer com O Simpatizante (2016), narra no brilhante Um Homem De Duas Caras a sua experiência e a da sua família enquanto refugiados na “maior democracia do mundo”. “Partido ao meio”, condenado a “uma existência intersticial” de línguas, culturas, modos de pensar e convicções políticas, examina, sem concessões e com um humor caustico, o racismo latente nos Estados Unidos, nas suas instituições e cultura. Ironia e aguçado sentido crítico que reserva igualmente para se autoanalisar (um dos capítulos do livro intitula-se Retrato do Escritor Enquanto Jovem Imbecil). Nguyen não professa qualquer vestígio de gratidão relativamente ao país de acolhimento, pois considera a sua condição de refugiado como consequência direta da política imperialista americana e da agressão armada ao seu país de origem. Ao invés, procura que a sua escrita, seja um ato de justiça “contra a força desumanizadora de Hollywood e os seus crimes de representação do povo vietnamita”, determinada a humanizá-los e a dar-lhes voz. Mais ainda: que contribua para “erradicar as condições que permitem que alguns não tenham voz”.Elsinore
Alexandre Vidal Porto
Sodomita
Em 1669, Luiz Delgado, violeiro português natural de Évora, é encarcerado como ladrão na cadeia pública de Lisboa. Aí se envolve em práticas sexuais com um “jovem franzino muito juvenil e solícito”. Descoberto, é levado à sala do Santo Ofício e condenado a dez anos de degredo “nas selvagens terras do Brasil”, acusado de praticar “o mais torpe, sujo e desonesto pecado: a sodomia”. Em território baiano avança no caminho da prosperidade como negociante de tabaco e assume um casamento cordial de fachada. Marido e mulher têm ambos algo a esconder: Luiz, a sua orientação sexual; Florência, o facto de se dedicar à escrita produzindo crónicas num diário (“aquelas letras no papel eram ela, tudo ela, papel, carne e tinta”). “Compartilhavam temor e desconfiança (…) perante um Deus que não os admitia no comando de nada. (…) Por instinto, protegiam-se desse Deus, que diminuía as mulheres e tinha ódio aos fanchonos.” Tendo por base uma investigação histórica e personagens reais, este belo romance, o primeiro do autor editado em Portugal, produz uma profunda reflexão sobre os costumes da pretensa civilização face às sociedades ditas primitivas, a temível opressão da Igreja, o preconceito, a liberdade e o direito ao prazer do corpo e o de todo o ser humano se assumir como é. Tinta-da-China
Eugénio Lisboa
Manuel Prático de Gatos
O poeta e ensaísta Eugénio Lisboa deixou-nos no passado mês de abril. Neste livro, o autor dá conta das suas intenções no texto de abertura – demonstrar publicamente a veneração pelo felino que se fez doméstico – onde refere que “a majestade divina do gato exige (…) o formato mais nobre da poesia – o SONETO.” E assim fez, partilhando a poesia aqui reunida, em louvor dos felinos, com amigos de várias partes do mundo, que lhe retribuíam com fotos dos seus bichanos que fazem nesta edição companhia às imagens de Ísis e Artemisa, as últimas gatas a entrarem na vida de Eugénio Lisboa e da sua mulher. Para cada soneto, a respetiva imagem do(s) gato(s), num equilíbrio que se mantém até final, onde se encontram o posfácio de Onésimo Teotónio Almeida e um texto de Otília Pires Martins que fornece o enquadramento sobre a origem das fotografias. Manual Prático de Gatos Para Uso Diário e Intenso é um livro edificado entre amigos e, mais importante ainda, todos pertencentes a uma máfia de “gatófilos”, para a qual uma vez entrados é impossível sair. RG Guerra & Paz
David Grossman
O Coração Pensante
O Coração Pensante é o título do discurso de agradecimento que o romancista israelita David Grossman proferiu na cerimónia de entrega do Prémio Erasmo, em 2022. O poder transformador da arte é o seu tema: “A literatura, e escrita, ensinaram-me o prazer de fazer uma coisa subtil e exata num mundo grosseiro e turvo”. É também o pretexto para o escritor, “uma pessoa que passou a vida inteira em e entre guerras”, que perdeu o filho Uri no confronto entre Israel e o Hezbollah, em 2006, e que há mais de 40 anos luta contra a ocupação pelo seu país da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, reunir 12 ensaios que refletem sobre a questão israelo-palestiniana. Neles analisa o fanatismo da política de Netanyahu que está a causar a destruição do sistema legal, da polícia e da educação, e a pôr em risco a independência do poder judicial e a separação entre a religião e o Estado na “democracia mais frágil do Médio Oriente”. E continua a defender o processo de paz entre as duas nações, apesar de estarem a “tornar-se cada vez mais religiosas, fanáticas e nacionalistas”. Não uma “paz dos ricos”, mas um acordo que aborde “a nação palestina, a sua tragédia e as suas feridas; a ferida de serem refugiados, e a ferida da ocupação”. Na esperança de construir uma vida estável e segura. Uma vida que seja “uma casa” para Israel e “os seus vizinhos”. Dom Quixote
José Eduardo Agualusa
Mestre dos Batuques
Mestre dos Batuques é o mais recente romance de José Eduardo Agualusa, que regressa ao Bailundo, terra que o “viu nascer e crescer”. Uma obra que nos transporta até aos finais do século XX, a uma altura em que, numa savana angolana, soldados europeus surgem mortos de forma misteriosa: “Encontraram vinte e cinco cadáveres. A maioria não apresentava nenhum corte de lâmina, buraco de bala, hematomas ou contusões.” O tempo dos reinos independentes estava a chegar ao fim e era preciso investigar estes estranhos acontecimentos. Foi assim que, em 1902, o tenente Jan Pinto se viu a caminho da ombala real do Bailundo, na companhia de um soldado que queria ser fotógrafo, onde veio a encontrar o melhor amigo de infância, Henjengo. É durante esta viagem que conhece Lucrécia Van-Dunem, sua futura mulher. A história é narrada por Leila Pinto, neta de Jan e Lucrécia, que retrata os dias de guerra em Angola e nos dá a conhecer a história da sociedade secreta de guerreiros batucadores e do poder que se esconde por detrás de cada tambor. Neste “falso romance histórico”, ao mesmo tempo que expõe crimes e contradições da colonização portuguesa em Angola, Agualusa deixa no ar a questão: “pode o amor triunfar sobre a guerra e o caos?” SS Quetzal
Os Imbecis
e Outros Textos Clássicos de Escritoras Russas
Os nomes de Puskin, Tolstoi, Dostoievski, Turguenev, Gogol ou Tchekov são familiares a qualquer leitor português que se preze. Mas quantos leram e conhecem Maria Shkapskaia, Nadejda Teffi, Zinaida Guippius, Sofia Kovalevskaia ou Marina Tsvetaeva? 30 textos de géneros diversos – maioritariamente contos, mas também poemas e uma novela – de 13 autoras vêm provar que nem só de vozes masculinas se fez a grande literatura russa. Representando diferentes escolas e movimentos, esta antologia da literatura russa no feminino confirma uma vocação literária que permaneceu escondida na sombra dos grandes nomes masculinos. Na introdução à presente edição, declara Larissa Shotropa: “Nem sempre compreendidas no seu tempo, escreveram sobre o destino das mulheres russas e discorreram sobre a dificuldade de ser escritora num mundo de homens. Mas não se preocupavam apenas com questões desse tipo: na maior parte dos casos os temas abordados na literatura feminina pouco diferiam dos assuntos tratados nessa época por escritores de outos países”. De facto, o que aqui se restitui é um novo olhar, através de uma lente feminina, sobre as grandes transformações sociais, políticas e culturais do mundo, desde o século XIX até aos inícios do século XX. E-Primatur
Judith Butler
Quem Tem Medo do Género?
“Em várias zonas do mundo, imagina-se que o género é ameaça às crianças, à segurança nacional ou ao casamento heterossexual e a família normativa, mas também conspiração das elites para imporem os seus valores culturais às ‘pessoas reais’, num plano concebido para os centros urbanos do Norte global colonizarem o Sul global. O género é retratado como conjunto de ideias que se opõe à ciência, à religião ou a ambas, ou como ameaça à civilização, negação da Natureza, ataque à masculinidade, ou eliminação das diferenças entre os sexos”. Judith Butler, uma das principais figuras teóricas contemporâneas do feminismo e da teoria queer, examina a forma como o género se tornou um “fantasma” para regimes autoritários, grupos fascistas, feministas transexcludentes ou o Vaticano que o declarou “ameaça à civilização e ao próprio homem”. A autora procura produzir uma visão contrária convincente, que afirme os direitos e as liberdades da vida corporal que urge proteger e defender. “Pois, no fim, derrotar o fantasma é afirmar como amamos, como vivemos no nosso corpo, afirmar o direito de existirmos no mundo sem receio de violência ou discriminação, de circularmos, de respirarmos de vivermos”. Orfeu Negro
João Fazenda
Arena
São quase 250 páginas de desenhos, que reúnem os cartoons do ilustrador João Fazenda, entre 2004 e 2024, feitos durante 17 anos para a revista Visão e, nos últimos três, para o jornal Expresso. Semana após semana, as ilustrações foram acompanhando as crónicas de Ricardo Araújo Pereira – ou, como diz o humorista, estes são os desenhos que os seus textos acompanharam. Vendo o conjunto, tem-se um retrato desenhado deste país à beira-mar plantado e alguns vislumbres do mundo à sua volta. Está ali tudo: dos temas mais ou menos triviais, como a loucura dos saldos ou as fantasias do Salão Erótico, aos temas sociais e políticos, como as cunhas e os subornos, a crise na habitação e na educação, e tantos outros. Os seus protagonistas também não faltam: José Sócrates e Cavaco Silva, Passos Coelho e Angela Merkel, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, Trump e Macron, e até Madonna, Camões e Taylor Swift… Tudo convive nesta arena desenhada por Fazenda, com um traço “dissimuladamente simples, falsamente infantil”, como descreve Araújo Pereira. GL Tinta da China
Ao longo da sua carreira, Catarina Dias tem desenvolvido um trabalho centrado na prática do desenho e da pintura, bem como nas suas derivações plásticas e conceptuais. Nascida em Londres, a artista tem atualmente obra exposta na Sala do Cinzeiro, no MAAT, numa mostra onde explora encontros e desencontros entre imagens e palavras. Inverted on Us, patente até março de 2025, reúne peças trabalhadas digitalmente, impressas em papel e posteriormente pintadas à mão. Ali, Catarina Dias propõe um confronto entre o aparente e o imperceptível, o legível e o indecifrável, num apelo à atenção do olhar do espectador, revelando campos e dimensões sobre os quais este não está treinado a reparar.

Alexandre Estrela – A Natureza Aborrece o Monstro
Até 2 de fevereiro de 2025
Culturgest
José Loureiro – Beco das Flores, Canedo do Mato
Até 11 de janeiro de 2025
Galeria Cristina Guerra
Jumana Mann – Broken, Taken, Erased, Tallied
Até 24 de janeiro de 2025
Rialto6
Stefan Vogel – Cenas
Até 18 de janeiro de 2025
Galeria Jahn und Jahn
António Neves Nobre – Laboratório de Próteses
De 17 de janeiro a 8 de março de 2025
3+1 Arte Contemporânea
Como artista, Catarina Dias não poderia deixar de sugerir a visita a exposições. As escolhas recaem sobre as mostras de Alexandre Estrela, na Culturgest; José Loureiro, na Galeria Cristina Guerra; Jumana Mann, na Rialto6, e Stefan Vogel, na Galeria Jahn und Jahn, porque “todos os artistas destas exposições possuem uma elegância rara no contexto atual”. A artista sugere ainda Laboratório de Próteses, exposição de António Neves Nobre que tem inauguração marcada para dia 17 de janeiro, na galeria 3+1 Arte Contemporânea.
O Crepúsculo do Mundo
de Werner Herzog
Editora: Zigurate (junho, 2023)
O Fogo e o Relato
de Giorgio Agamben
Editora: Boitempo (Brasil)
A saga de Hiroo Onoda, o soldado japonês que, durante décadas, se manteve no seu posto sem acreditar que a segunda guerra mundial tinha acabado, é uma das sugestões de leitura de Catarina Dias, até porque a artista considera que “ler um livro de Herzog é sempre uma experiência profunda e intensa”. Outra das escolhas é O Fogo e o Relato, de Agamben, um livro de ensaios sobre a criação, a escrita, a arte e os livros. “O ato de ler, toda a sua potência transformadora, a relação vida/obra fazem parte de um mistério que nos anima”, diz Catarina.
Passeio de bicicleta junto ao Tejo
Catarina Dias é uma entusiasta dos passeios de bicicleta, por isso, esta sugestão era incontornável. “Embora haja vários obstáculos desagradáveis, como o excesso de turismo e zonas francamente difíceis de circular tanto a pé como de bicicleta, não deixa de haver uma relação muito direta com o rio que é bastante revigorante”.

Waed Bouhassoun – O Canto da Montanha
18 de janeiro de 2025, às 21h
Fundação Calouste Gulbenkian
Apesar deste concerto não acontecer esta semana, Catarina Dias não podia deixar de o sugerir. “Waed Bouhassoun tem-nos trazido uma profunda investigação das raízes da música síria, da poesia mística e profana, árabe e pré-islâmica, sempre acompanhada pelo seu oud. Profundo e encantador”. O espetáculo que Waed leva à Gulbenkian resulta dessa investigação em torno dos cantos presentes nos rituais funerários da montanha Jabal al-Druze, onde a intérprete síria cresceu.

Ciclo Jacques Demy
Cinema Medeia Nimas
Até 26 de fevereiro
Quem já viveu um grande amor não poderá negar a comoção despertada na cena da despedida de Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo debaixo de um nevão, ao som da música de Michel Legrand, no final de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo. Por ocasião dos 60 anos do filme que o realizador Damien Chazelle considerou “o melhor de todos os tempos” (e tanto que ele o citou em La La Land), meticulosamente restaurado numa versão 4K estreada no festival Il Cinema Ritrovato, em Bolonha, a Leopardo Filmes apresenta um exaustivo ciclo dedicado a Jacques Demy. Durante os próximos dois meses, pela sala do Nimas, são exibidas obras-primas, como Lola e As Donzelas de Rochefort, pérolas incontornáveis, como A Baía dos Anjos e A Princesa com Pele de Burro, títulos menos conhecidos, alguns deles até inéditos no circuito de exibição português, como as curtas-metragens O Belo Indiferente (escrita por Jean Cocteau) e A Lúxuria, os musicais Um Quarto na Cidade e Parking, e até a única aventura americana do cineasta francês, Model Shop, filme em que Anouk Aimée volta a vestir o papel de Lola. Demy é considerado um dos cineastas que melhor combinou o musical e o melodrama, o escapismo e artificialismo da tradição do musical de Hollywood com um estilo próprio, simultaneamente fantasista e realista, estilisticamente muito marcado pela cor e pelas formas. Por tudo isso, parte considerável da sua obra permanece intemporal, continuando a conquistar gerações e a influenciar não apenas a sétima arte, mas também outras áreas artísticas, a moda e o design. FB
Banzo
de Margarida Cardoso
Estreia nos cinema a 23 de janeiro
Margarida Cardoso, realizadora que aborda frequentemente nos seus filmes questões pós-coloniais da história recente de Portugal, está de regresso ao continente africano para contar uma história ambientada no início do século passado. A narrativa, filmada em São Tomé e Príncipe e Portugal, relata a luta de Afonso, um médico português que parte do Congo para uma plantação de cacau numa ilha tropical africana, com o propósito de curar um grupo de serviçais “infetados” pelo Banzo, a nostalgia dos escravos, que os leva à morte por inanição ou suicídio. Consciente do horror e das condições de vida a que são submetidos, Afonso, tenta uma solução para a dor que os mata, mas com o tempo percebe que esta é impossível de concretizar. Nestas circunstâncias de desesperança e violência é revelado o lado cruel daqueles que mandam e a impotência daqueles que, embora não concordem com a realidade, pouco podem fazer. O elenco conta com Carloto Cotta, Hoji Fortuna, João Pedro Bénard, Gonçalo Waddington e Sara Carinhas. AF

Cenas do Fausto de Goethe
de Robert Schumann
Teatro Camões, a 25 de janeiro
Robert Schumann, grande compositor romântico alemão, viveu entra a genialidade e a loucura, assombrado por um longo historial de desequilíbrio emocional que culminaria numa doença mental incurável. Depois de uma tentativa de suicídio por afogamento no rio Reno, morre num asilo psiquiátrico em 1856, onde passa os dois derradeiros anos de vida. É compreensível o fascínio que Schumann sentia pelos debates internos de Fausto, pela luta entre o bem e o mal e pela redenção final. Em 1844, inicia a composição das suas Szenen aus Goethes Faust que combinam, com mestria inigualável, o intimismo do Lied, a solenidade da música sacra, a coloquialidade da conversa entre Fausto e Margarida, a grandiosidade e o dramatismo da ópera e o sublime da escrita coral ao serviço de um dos textos maiores da língua alemã, iluminando-o mesmo nas suas passagens mais sombrias. Ana Quintans, André Baleiro e Tristan Hambleton interpretam o trio de protagonistas. A Orquestra Sinfónica Portuguesa é dirigida pelo maestro titular Giampaolo Vessella. LAE
No Yogurt for the Dead
de Tiago Rodrigues
Culturgest, de 19 a 23 fevereiro
Tiago Rodrigues, que desde 2021 dirige o Festival de Avignon, vem este ano a Lisboa apresentar dois espetáculos. Já em janeiro, de 10 a 12, estará no Centro Cultural de Belém com Hécuba, Não Hécuba, a sua primeira colaboração com a Comédie-Française, em que entrelaça a história da viúva de Príamo com a de uma atriz que, nos dias de hoje, interpreta essa personagem. Mas é em fevereiro que, logo depois da estreia em Ghent, na Bélgica, traz à Culturgest a sua nova criação, No Yogurt for the Dead. A ideia para este espetáculo surgiu quando Tiago se demorou a olhar para o caderno que o pai, o jornalista Rogério Rodrigues, preencheu nas últimas semanas de vida, já hospitalizado. Era suposto ter deixado ali registadas as experiências no hospital e memórias de vida, mas havia apenas rabiscos. “Suponho que tenha tentado escrever, mas a sua mão estava demasiado frágil. Talvez pensasse que estava a escrever, numa espécie de estado de sono, mas nada saiu para o papel”, diz o encenador, “os gatafunhos eram o retrato da impotência, desenhos do fim”. Apenas o título desse último artigo estava anunciado pelo pai: No Yogurt for the Dead. Tiago decidiu criar uma peça sobre uma voluntária que ouve as histórias de um homem prestes a morrer e sobre o livro que ele nunca chegou a escrever. Chamou a esse homem “Longbeard, o correspondente no Hospital Amadora-Sintra”. Em palco, junta as atrizes Lisah Adeaga e Beatriz Brás, Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves. GL
Parthenope
de Paolo Sorrentino
Estreia nos cinemas a 27 de fevereiro
Sorrentino filmou Parthenope para responder à questão do que seria para si o sagrado. O cineasta, onde a cada nova realização se procura sempre “a grande beleza” (título da sua obra mais celebrada, La grande bellezza de 2013), recorre a duas atrizes (a jovem Celeste Dalla Porta e a histórica Stefania Sandrelli) para filmar as memórias de uma mulher de 73 anos, cujas ressonâncias míticas do seu nome são como um passe de sedução para a tomarmos pela personificação de uma cidade: Nápoles, a cidade de Paolo Sorrentino. Uma mulher faz o balanço da sua vida, dos seus amores, das suas ilusões e desilusões, tal como o havia feito Jep Gambardella no outro filme citado de 2013. Sorrentino diz que, para ele, o sagrado é o que permanece na memória de cada um, mas os seguidores do seu cinema podem muito bem confundir sagrado e beleza, que estarão na mesma linha de raciocínio do autor napolitano. RG

Museu de Arte Contemporânea Armando Martins
Rua da Junqueira, 66
Inaugura a 22 de março
Sob o mote The House of Private Collections (A Casa das Coleções Privadas), o MACAM não mostrará apenas a coleção pessoal de arte do seu fundador, o empresário português Armando Martins, que inclui mais de 600 obras, desde o final do século XIX até aos dias de hoje, mas convidará também outros colecionadores privados a mostrar as suas coleções, reforçando a missão de as tornar visíveis ao público. Instalado no edifício histórico do Palácio Condes da Ribeira Grande, que remonta ao início do século XVIII, o projeto reunirá um museu e um hotel. A reabilitação do espaço, a cargo do estúdio de arquitetura português MetroUrbe, procurou uma relação harmoniosa entre o palácio e a extensão contemporânea que alberga o programa de exposições temporárias do museu. A fachada desta nova ala – premiada na edição deste ano dos Surface Design Awards, em Londres – é revestida por uma série de azulejos tridimensionais da autoria da artista e ceramista Maria Ana Vasco Costa. LAE

Jeff Wall
Curadoria de Sérgio Mah
No MAAT, a partir de abril
A primeira exposição individual em solo lisboeta do artista canadiano Jeff Wall (Vancouver, Canadá, 1946) chega ao MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em abril. São 60 fotografias, produzidas ao longo de mais de quarenta anos, que ocuparão todo o espaço expositivo do MAAT Gallery, naquela que será uma das mostras mais vastas realizadas até hoje sobre o trabalho do consagrado fotógrafo e artista visual. A obra de Wall articula o essencial da fotografia com elementos de outras formas de arte – incluindo pintura, cinema, teatro e literatura – numa forma complexa que ele chama de “cinematografia”. As suas imagens vão desde reportagens clássicas até construções e montagens elaboradas, geralmente produzidas numa escala maior, tradicionalmente identificada com a pintura. Em 2002, o artista foi galardoado com o Prémio Hasselblad e várias revistas especializadas têm-no colocado na lista dos dez artistas mais importantes da atualidade. ARV

O Salvado
de Olga Roriz
São Luiz Teatro Municipal, de 9 a 12 julho
Em 2013, Olga Roriz estreou A Sagração da Primavera – foi o seu último solo, que dançou nesse ano e no seguinte, antes de uma doença a ter impedido de continuar a dançar. Quase 11 anos depois, voltará a pisar o palco sozinha. Há muito que o queria fazer e, durante esta década, nunca deixou de pensar no que poderia fazer como intérprete, enquanto foi criando cenografias para os seus bailarinos. Imaginou um solo que fosse uma “autópsia de uma bailarina após a morte” ou um “espetáculo sobre a impossibilidade de uma bailarina se mexer”. “É inesgotável, o olharmos para nós próprios”, acredita. Será em julho de 2025, no Teatro São Luiz, que dará finalmente (o seu) corpo a esta ideia de se pôr, de novo, no centro da criação. Chamou-lhe O Salvado, prometendo “um novo impacto consigo mesma” e predispondo-se a procurar respostas para uma imensidão de perguntas: “Agarrando na vida como um naufrágio, o que se consegue salvar desta catástrofe? Que objetos, que coisas se livraram do perigo? O que consegue uma vida de sete décadas, ainda preservar? O que traz agarrado que se consiga ainda desprender e tornar matéria? O que não morreu ainda nela? Do que se conseguiu libertar? A sua coleção de sapatos… Os seus vestidos… O seu humor… Que corpo é agora o seu? Que histórias terá ainda para contar? Tudo suspenso tudo no ar…. Tudo suspenso tudo na memória… Na nuvem… in the cloud. Ouve-se a abertura das suas músicas preferidas. Será que se ouve a sua voz?” Uma pesquisa interior, que é sempre uma luta partilhada, como diz. GL
Audição
Teatro Praga
Sala Estúdio Valentim de Barros/ Jardins do Bombarda, de 11 a 20 julho
Pedro Penim, diretor do Teatro Nacional D. Maria II e fundador e ex-diretor do Teatro Praga, fez a piada na apresentação da programação: sim, estava a programar a sua antiga companhia de teatro; e, sim, não tinha como não o fazer nestes redondos e importantes 30 anos da Praga. A estreia do novo espetáculo faz-se na também novíssima (a inaugurar em março) Sala Estúdio Valentim de Barros, nos Jardins do Bombarda, que o Nacional se prepara para ocupar durante 2025 – um armazém que serviu de sala de ensaios aos Praga durante anos, até terem sido obrigados a sair. Audição apresenta-se como aquilo que o nome indica: “um casting onde só pode haver engano, porque o que se procura não existe”. O coletivo, dirigido hoje por Cláudia Jardim, André e. Teodósio, Diogo Bento e José Maria Vieira Mendes, sabe que o espaço que encontrará não é o mesmo que deixou há quase duas décadas, sabe que nem tempos nem contextos são também os mesmos, que tudo hoje já não é como era – nem mesmo o Teatro Praga. “Este regresso sem retorno é o mote”, escrevem, garantindo que entrarão sempre no espetáculo errado. “Nesta criação, o Teatro Praga faz-se ouvir pelo que foi e pelo que é: um coletivo simultaneamente dentro e fora de uma ideia de teatro, procurando uma relação de resistência específica com os lugares, os corpos e as disciplinas”, sublinha-se na apresentação da peça, “sem limite de idade, exigências físicas ou profissão, esta audição tem tudo para correr mal, uma vez que é isso mesmo que se quer. É no desencontro entre a expectativa e o presente, entre passado e futuro que se constrói esta Audição. E porque audição é também fazer-se ouvir, nesta criação encontra-se o eco das vozes como fantasmas. É que em 30 anos também se esculpem os tímpanos.” GL

Percorrer Lisboa
Museu de Lisboa (Palácio Pimenta, Casa dos Bicos, Santo António, Teatro Romano, Torreão Poente)
De janeiro a dezembro
Ao longo de todo o ano, o Museu de Lisboa promove um conjunto de percursos orientados e temáticos que dão a conhecer a cidade. Memórias, histórias, épocas, arquitetura, arte e urbanismo são os temas que ajudam a compreender e a descobrir diferentes locais e vivências da capital. Em 2025, o programa começa, a 12 de janeiro, com o percurso A Cidade Romana, e prolonga-se até 13 de dezembro. No primeiro mês do ano realizam-se ainda os percursos Lisboa Africana (25 de janeiro), que revela um território marcado pela invisibilidade da presença africana, e A Cidade de São Vicente (26 de janeiro), onde se descobrem as vicissitudes por que passaram as sepulturas e as relíquias do Santo. AF
Quando, há mais de uma década, os dramaturgos Robert Icke (autor de A Médica, em cena no Teatro da Trindade) e Duncan Macmillan (conhecido do público português pela peça de sucesso Pulmões) tomaram a decisão de adaptar ao palco Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, procuraram puxar o tapete a leitores cujo clássico de George Orwell não fosse propriamente desconhecido. A premissa passou por tornar o futuro que o escritor escreveu em 1948 sobre factos ocorridos em 1984, um passado longínquo num vindouro ano para lá de 2050. Será por essa altura que um grupo de pessoas se junta para ler o diário de um tal de Winston Smith.
Surpreendentemente ou não, sobretudo para os mais familiarizados, Icke e Macmillan não subverteram nada do que seriam as intenções de Orwell ao escrever o livro. A dupla decidiu, isso sim, colocar o ponto de partida da sua adaptação do romance no “apêndice” do livro (note-se que algumas edições nem sequer o trazem), denominado Os Princípios da Novilíngua. Aí, de um modo mais académico do que romanesco, são operacionalizadas as regras impostas pelo governo totalitário da Oceânia (onde se desenrolam os factos narrados) para substituir a “velha língua” (no caso, o inglês padrão) pela dita Novilíngua, meio de expressão compatível com a mundivisão do partido único no poder, capaz de impossibilitar qualquer forma de pensamento divergente, e que passaria pela supressão de um conjunto de vocábulos, palavras, significados e termos considerados “indesejáveis”. Curiosamente, a referência ao ano de 2050 não é de todo inocente, já que é aquele em que se estimava ter a Novilíngua substituído por completo a Velhilíngua.
A partir desta perspetiva, nota Pedro Carraca que agora encena 1984 de George Orwell, Icke e Macmillan transferem o protagonismo do personagem de Winston Smith para “o romance em si mesmo”. Ou seja, segundo o encenador, “quando pensamos que estamos a ver esta peça no futuro, futuro esse que é moldado também pela existência do próprio livro em 1984, tiramos o personagem do centro e o protagonista passa a ser o livro em si”. Portanto, “aquilo a que assistimos é à história, que não sabemos se verdadeira, de Winston Smith”. Mas, simultaneamente, também é “a história do próprio romance ao longo do tempo decorrido desde que foi escrito, e de como é que esse livro contribuiu ou não para alterar o futuro”.
“O Grande Irmão está sempre a ver-te”
No imaginário de muitos leitores, o romance de Orwell projeta invariavelmente a imagem do “Big Brother/Grande Irmão” nos chamados “tele-ecrãs” presentes em todas as dimensões da vida pública e privada de cada cidadão. Na Oceânia, um dos três super-Estados beligerantes em que o mundo se organizou, é essa entidade não necessariamente humana (o livro é bastante ambíguo nesse aspeto, embora refira a figura de um homem de meia-idade com um farto bigode) que simboliza a liderança omnipresente e omnisciente do partido único num Estado totalitário que tudo vê e tudo escuta.
Ao pensarmos em nós, neste século XXI, “parece que George Orwell previu bem o que iria suceder”, observa Carraca ao constatar ser praticamente impossível estar hoje numa sala sem que estejam presentes “uma câmara de gravação e um microfone, algo que qualquer dos nossos telemóveis tem”. No fundo, “conseguimos ir mais além, e até de uma forma muito mais subtil”, já que cada um de nós, passivamente, se encarrega de ser hipoteticamente vigiado, escutado e localizado.
Na realidade imposta pelo Estado totalitário, se a vigilância é a arma mais imediata, o domínio do pensamento é absolutamente estratégico para o exercício do poder absoluto. Logo na primeira cena da peça de Icke e Macmillan encontramos Winston Smith a iniciar o diário, e uma voz vaticinando: “se o descobrissem, condenavam-no à morte”. Este comum funcionário do Ministério da Verdade, onde tem como tarefa primária manter a coerência entre os “factos” e o discurso oficial, sabe que está prestes a cometer um “crimepensar” a partir do momento em que fizer correr a caneta no papel. Atenta, estará a Polícia do Pensamento e, quando o apanhar, como anuncia a voz, “os registos de tudo o que tinhas feito eram apagados, a tua existência passada era interditada e depois votada ao esquecimento. Eras eliminado, aniquilado: ‘despessoalizado’ era o termo utilizado.”
Provavelmente, nada disto aconteceu
Embora o futuro para lá de 2050 pareça muito pouco radioso, ao avançar pelas páginas do diário de Winston Smith, os membros do clube de leitura deparam-se com um passado absolutamente tenebroso e uma violência inaudita. Em 1984, ano a que remonta a narrativa, a Oceânia é governada por um partido único que professa o SOCING (abreviatura de “socialismo inglês”). O partido encontra-se dividido no “partido interno”, uma elite que se assume como o cérebro do Estado; e o “partido externo”, a grande mole que faz funcionar o regime, e no qual milita Winston Smith. O resto da população, esmagadora maioria, é definida como a “prole”, sendo encarada pelo partido como uma classe sub-humana.
O Estado está estruturado em quatro grandes ministérios: o da Verdade, onde trabalha Winston, cuida dos assuntos relacionados com a informação, a história e o ensino; o da Paz trata os assuntos da guerra (que é permanente); o do Amor impõe a lei e a ordem moral e social; e o da Riqueza dedica-se às questões da economia. Do ponto de vista ideológico, o partido patrocina três slogans essenciais, baseados no princípio fundamental do “duplopensar”: “Guerra é paz”, “Liberdade é escravidão”; “Ignorância é força”. Ou seja, até à implementação integral da Novilíngua, é necessário dar às palavras um sentido duplo, ou até inverter o seu significado original (a exemplo, o Ministério do Amor é responsável pela tortura, o da Paz faz a guerra ininterruptamente, etc.).
Como é comum numa ditadura (ou em regimes que, nunca se sabe, podem caminhar para o ser), o “inimigo externo” nunca é suficiente, por isso, é essencial um “interno”: em Oceânia, o merecedor de uns obrigatórios “dois minutos de ódio” diários dá pelo nome de Goldstein, personalidade que outrora esteve quase ao nível do “Grande Irmão” na hierarquia do partido, mas que por ligações a atividades ditas “contra-revolucionárias” acabou condenado à morte. Supostamente em fuga, Goldstein lidera uma frente de resistência e é o provável autor de um livro onde expõe todas as mentiras do regime e aponta as suas fraquezas, sendo considerado a “bíblia” da fraternidade oposicionista ao partido.
Ora, tudo isto chegará aos membros do clube de leitura como parte do diário de Winston Smith, tal como a história da sua tórrida e proibida relação amorosa com Júlia e da cumplicidade conspirativa com O’Brien, um enigmático e dúplice membro do “partido interno”, que lhe fornecerá o secretíssimo livro de Goldstein. Para infelicidade de Winston Smith, a leitura do livro nunca será concluída, pois a traição reserva-lhe um tortuoso e vil caminho para aprender a amar o “Grande Irmão”.
Quando concluem a leitura do diário de Winston Smith, a generalidade dos membros do clube de leitura é dominado pelo sobressalto causado por tantas respostas estarem ainda por revelar. Certo que, ao contrário do que previa o partido (derrubado ainda antes de 2050, segundo reza a história), não se expressam na Novilíngua. Por isso, será que, em 1984, tudo era mesmo assim? E porque se diz que Winston Smith nunca existiu quando pode ter sido “despessoalizado”, termo usado pelo partido para apagar alguém da história? O que é então este livro que estiveram a ler? Será ele o verdadeiro livro de Goldstein? Ou uma obra colaborativa escrita a várias mãos?
“E se o livro não for mais do que uma manipulação do partido”, pergunta, no final de um ensaio, Pedro Carraca, acompanhando o sobressalto das personagens. Talvez o melhor seja cada um de nós procurar respostas após ver 1984 de George Orwell. Depois de Aveiro e Seixal, esta criação dos Artistas Unidos passa por Guarda (25 de janeiro), Póvoa do Varzim (1 de fevereiro), Penafiel (7 e 8 de fevereiro) e Estarreja (15 de fevereiro), antes de chegar a Lisboa, mais precisamente pelo Centro Cultural de Belém, de 21 a 23 de fevereiro de 2025. Os bilhetes estão já à venda.
[data extra no CCB a 24 de fevereiro às 20 horas]
Natural de Viana do Castelo, a atriz e criadora Sara Inês Gigante é um dos valores mais seguros da nova geração do teatro português. Formada na ACE- Teatro do Bolhão, no Porto, e na Escola Superior de Teatro e Cinema, soma no currículo colaborações com Jorge Silva Melo e Artistas Unidos, Bruno Bravo, Nuno Nunes, Raquel Castro ou Pedro Frias, com quem se estreou há pouco mais de uma década a representar Tchékhov. Em 2021, a atriz assinou a sua primeira criação, YOLO, e apenas um ano depois Massa-Mãe, onde esfarelava sem rodeios as suas raízes e identidade minhotas. Logo a seguir, Sara venceu a Bolsa Amélia Rey Colaço com um novo projeto: Popular. O espetáculo estreou em 2024 em Guimarães, fez temporada no Teatro Meridional, em Lisboa, e correu o país, sempre com salas cheias. Contudo, como o público pode confirmar a 4 de janeiro, no Teatro Variedades, numa récita única que será gravada para a RTP, Sara Inês Gigante continua muito longe de se sentir uma artista Popular.
Metade dos Minutos
Instalação de Ângela Rocha
Até 5 de janeiro na Culturgest
Sugiro vivamente a instalação Metade dos Minutos da Ângela Rocha. Trata-se de um desafio olharmos para um objeto artístico de uma forma que não estamos acostumados: através do tato, do toque. A Ângela é uma artista incrível e muito completa com quem já tive o prazer de trabalhar, e oferece-nos aqui um mergulho muito especial e sensorial em que não basta ver e ouvir, é preciso tocar, mexer, entrar num espaço e ocupá-lo, investigá-lo também com as mãos. É preciso estar presente, e acho que isso traz em si uma mensagem provocadora, mas pertinente.
Dores Crónicas
de Bruno Nogueira
Dom Quixote, 2024
Sugiro o livro que estou a ler, Dores Crónicas do Bruno Nogueira. Já tinha lido o anterior, Aqui Dentro Faz Muito Barulho, e encontro sempre uma inquietação nas crónicas do Bruno que me agrada. Sinto-lhe uma rara inconformidade e uma constante procura pela reflexão, seja nas coisas mais mundanas ou nas mais difíceis de olhar de frente. Numa primeira instância, a crónica é um estilo de escrita e de leitura que aprecio bastante. E depois, porque efetivamente o Bruno é um artista que me inspira. Nas suas crónicas ora traz uma lufada de ar fresco leve e irónica sobre determinado tema, ora me incita a um pensamento ou a um novo ponto de vista sobre algo. Não ter medo do questionamento contínuo ou de não fechar uma ideia ou uma opinião é um exercício que aprecio, por acreditar que seja esse o caminho evolutivo, e é uma característica que encontro neste livro, e que por isso também me ajuda a pensar ou a repensar, o que é sempre bom, a meu ver.
Inside
de Bo Burnham
disponível na plataforma Netflix
Num contexto mais caseiro, sugiro Inside do Bo Burnham, que está disponível na Netflix, e é talvez a coisa que mais vezes vi repetidamente. Este Especial foi feito durante a pandemia e, para mim, a destreza com que o Bo Burnham alinha a música, o humor, e também a sátira e a crítica a muitas das coisas trágicas do mundo, da atualidade e da humanidade é uma característica que me move, e acho inovadora e muito única a forma como o faz. Armadilha-nos através do humor e do entretenimento, e logo a seguir tira-nos o tapete, e esse vaivém é desarmante. Sempre que estou em processos criativos da minha autoria, vou a muitos materiais do Bo Burnham tentar buscar inspiração.
O Americano
de Ivo M. Ferreira
disponível na RTP Play
Outra sugestão: O Americano, série realizada pelo Ivo M. Ferreira. É inspirada numa das maiores fugas prisionais que tivemos em Portugal, nos anos 80, no Algarve, e foi criada a partir do livro autobiográfico Vida e Mortes de Faustino Cavaco. É protagonizada por um grande amigo meu, o João Estima, que brilhantemente dá vida a Faustino Cavaco na série. Obras inspiradas em factos verídicos, ou que tenham materiais biográficos, atraem-me particularmente, há qualquer coisa na tensão entre a realidade e a ficção que acho avassaladora, e esta série, para além de ter esse carácter, está muito bem conseguida, sobretudo no que toca às interpretações dos atores.

Malva
Álbum vens ou ficas
disponível nas plataformas digitais
Uma sugestão musical, de uma artista e amiga com quem já tive o privilégio de trabalhar, a Carolina Viana com nome artístico Malva. Fez a música do meu espetáculo anterior, Massa Mãe, e é uma artista musical maravilhosa. Tem lançado músicas da sua autoria, e é sem dúvida uma forte recomendação. As músicas de Malva são especiais, não só pela voz incrível que tem, mas porque todas elas têm mesmo a capacidade de nos tocar. São tristes, melancólicas, e ao mesmo tempo belas e inquietantes. Malva está disponível nas plataformas habituais (Spotify, YouTube, etc) e tem feito vários concertos, é uma questão de estarem atentos que o concerto vale muito a pena.
Pequeno Urso Gosto de ti
Benjamin Chaud
Orfeu Negro
É a terceira saga do Pequeno Urso e continuamos sem nos cansar de correr atrás dele. Desta vez, seguimos no encalço de uma guaxinim e do para-raios dourado que levou emprestado. Será que os descobrimos por entre as árvores e os animais da floresta? As ilustrações pormenorizadas de Benjamin Chaud passam-nos rasteiras e fazem-nos sorrir nesta perseguição. E, no final, temos uma surpresa pop-up à espera, mas, já se sabe, os finais não se revelam…
O Pai Natal Não Vive no Polo Norte
Afonso Cruz
Fábula
Ainda é possível acreditar no Pai Natal? Afonso Cruz escreve palavras bonitas, mas ilustra-as com desenhos que nos remetem para uma realidade bem diferente. Será a fábrica de brinquedos um lugar colorido ou um sítio negro e poluidor? Será que lá trabalham duendes ou crianças subnutridas? Os brinquedos vêm de trenó para as chaminés ou de avião para os centros comerciais? Porque, nesta altura do ano, talvez valha a pena despertar consciências e, mesmo entre os mais pequenos, contar histórias menos encantadas.
Explosão na Fábrica de Poemas
Kyle Lukoff e Mark Hoffmann
Lilliput
Pode a poesia atrair os mais novos? Esta é uma história divertida de uma fábrica onde se operam manivelas de metricómetros, se esvaziam caixotes de lugares-comuns e se limpam cântaros de ideias feitas. No dia em que a fábrica explode, fica em crise a indústria lírica, mas a poesia, essa, continua sempre imensa e livre. No final do livro, um glossário ajuda a descortinar algumas palavras que pareciam mais difíceis de entender.
Onde é que nós íamos?
Isabel Minhós Martins, Dina Mendonça e Madalena Matoso
Planeta Tangerina
As conversas são como um jogo de pingue-pongue ou, como se diz logo no início deste livro, “conversar é ir andando”. Onde é que nós íamos? explica-se com o subtítulo: Sobre a importância e o prazer de conversar. Ao longo destas páginas, as autoras vão conversando com o leitor sobre o assunto, falando dessa satisfação (que é como a das cerejas), sugerindo como fazê-lo cada vez melhor, imaginando as infinitas maneiras e formas que assumem e também propondo atividades e experiências para as pôr em prática. Pelo caminho, fazem várias perguntas – para nos pôr a pensar e a conversar.
Como criar uma biblioteca
Inês Fonseca Santos e André Letria
Pato Lógico
Não há retorno, quando se abre um livro. E depois outro e depois mais um. Livro a livro se faz uma biblioteca. E, como dizia Manuel António Pina, os livros também são para ter. Por perto, ao alcance, à mão de semear, para ler do princípio ao fim ou apenas folhear. Este presta homenagem a isso mesmo: ao prazer de construir uma biblioteca e de estar rodeado de livros que guardam inúmeras possibilidades, e dão largas à imaginação. Aqui, são muitos os que se acumulam até ocuparem quase as páginas inteiras, numa história contada com frases curtas e ilustrações simples e carregadas de afeto. Uma edição integrada nas celebrações dos 141 anos da Biblioteca de São Lázaro, a mais antiga biblioteca pública de Lisboa, que também vale a pena descobrir.
Irmãos
Marie Le Cuziat e Hua Ling Xu
Orfeu Negro
Um livro em que cada página é uma pintura e que nos leva pelos encantos de ter e de ser um irmão – mesmo com todas as diferenças e algumas lutas pelo meio. Uma história simples e bonita, que nos remete para os dias de verão, passados em família, no campo e junto ao mar.
Gaspar, com os pés bem assentes na Lua
Rita Taborda Duarte e Sebastião Peixoto
Caminho
Rita Taborda Duarte conta as aventuras de Gaspar, um menino sonhador, de cabeça na Lua e ideias cintilantes. E escreve esta história sem evitar palavras mais difíceis ou menos conhecidas. Ao longo do texto, vai assinalando esses termos mais “esquisitos”, mas que “estão só à espera” de ser descobertos – é a palavrodiversidade, como lhe chama. Um livro para descobrir os encantos da Lua e das palavras que não sabíamos que existiam.
Stop
Ricardo Henriques e Pierre Pratt
Orfeu Negro
Há quanto tempo não vemos um polícia sinaleiro na rua a orientar o trânsito? Neste livro, o agente Simões é o último exemplar da sua espécie, gesticulando entre carros e peões e salvando situações de vida ou morte ou orientando manifestações e choques ideológicos. O que lhe acontecerá quando, como todos os outros que deixámos de ver, for substituído por um semáforo? Com muito humor no texto e nas ilustrações, esta história talvez guarde um final feliz e a certeza de que um “stop”, bem gritado e gesticulado, pode mesmo salvar o mundo.
Tantos Insetos em Todo o Lado
Britta Teckentrup
Lilliput
Tão bonito quanto informativo, este é o livro que fala de todos aqueles “bichos” com que nos cruzamos por aí e em que não pensamos muitas vezes: os insetos. Com um “poder invisível que mantém o mundo a funcionar” e as cores mais incríveis da natureza, merecem ser conhecidos à lupa. Onde anda o besouro-tartaruga-dourado e como faz para sobreviver? Quais os recordes batidos pelo moscardo e pela cigarra? Onde vivem todos eles e como se alimentam? Um livro com muitas informações e muitos desafios para os mais curiosos.
Como Assustares um Monstro
Tânia Correia e Tiago M.
Oficina do Livro
Uma história para ajudar os mais pequenos a ultrapassar os medos característicos da idade e a enfrentar os monstros que imaginam escondidos por aí. Tudo começa quando Mimi ouve um barulho vindo do armário, mas acaba por perceber que, afinal, os monstros dentro dos armários também têm os seus medos. Com uma linguagem acessível e ilustrações simples, é um livro bom para ter na cabeceira, que pode contribuir para gerir emoções antes de apagar a luz.
A História Fora da Caixa
Sofia Fraga e Patrícia Figueiredo
Editora Minotauro
Apresenta-se como “uma carta de amor a uma mãe”, o novo livro de Sofia Fraga, ilustrado por Patrícia Figueiredo. Entre dragões, princesas, um ogre, sete anões, a Bruxa Má e a Branca de Neve e outras personagens dos contos infantis, narra a história de Xavier, que, um dia, desce do alto do seu castelo para procurar um remédio para a tristeza da mãe. Um conto com muitas caixas e muita imaginação, que acaba num abraço apertado.
Onde está o livro que estava aqui?
Telma Guimarães e Jana Glatt
Caminho
Do Brasil chega um livro que é quase uma lengalenga contada ao passar das páginas. A história desafia-nos a encontrarmos vários animais por entre as ilustrações coloridas, onde se descobrem também muitos outros seres e objetos que merecem um olhar atento. É também uma homenagem aos livros e ao que trazem dentro.
Com 21 anos de carreira, João Tordo é um dos mais profícuos escritores da atualidade. Em novembro, lançou o seu 21.º livro, Dias Contados, que volta a centrar-se na subcomissária Pilar Benamor. Uma excelente notícia para os seus leitores mais fiéis, já que este novo policial (o terceiro da série) explica a origem dos fantasmas de uma das suas personagens mais marcantes. Vencedor do Prémio José Saramago 2009 com o romance As Três Vidas, e do Prémio Literário Fernando Namora em 2021, com Felicidade, o autor também conta no currículo com a participação, enquanto guionista, em diversas séries de televisão, como o sucesso da Netflix Rabo de Peixe. Este ano, a sua ficção saltou do papel para os ecrãs com o filme Dulcineia, estreado em setembro, adaptado do romance O Ano Sabático. No próximo ano, está previsto o início das filmagens de uma série baseada num dos seus bestsellers, Águas Passadas (o primeiro sobre o universo Pilar Benamor).

Oratória de Natal
19 de dezembro, às 20h
20 e 21 de dezembro, às 19h
Fundação Calouste Gulbenkian
Obrigatória nesta quadra festiva, a Oratória de Natal é um dos momentos altos da temporada da Gulbenkian. Escrita entre 1734 e 1735 por Johann Sebastian Bach, é uma das grandes obras-primas corais do período Barroco. O escritor já assistiu a duas oratórias, que considera serem “sempre momentos muito bonitos de celebração nesta época festiva”. A Oratória de Natal será interpretada no palco do Grande Auditório, de 19 a 21 deste mês, sob direção da nova maestrina titular do Coro Gulbenkian, Martina Batič. Para João Tordo, é “uma ocasião para ver a Orquestra Gulbenkian e o Coro Gulbenkian em palco com solistas convidados”. As sessões deste ano já estão esgotadas, mas fica a dica para comprar com muita antecedência no ano que vem.
A Origem dos Dias
romance de Miguel d’Alte
Editora: Suma de Letras (setembro, 2024)
Um livro é sempre uma excelente opção para companhia nos dias outonais, e não podia faltar nas escolhas de João Tordo. O escritor sugere a mais recente obra de Miguel d’Alte, A Origem dos Dias. “Já tinha lido o primeiro livro dele, Os Crimes do Verão de 1985, e identifiquei-me. Acho que o Miguel tem coisas muito parecidas comigo e com os meus livros, por isso gostei bastante”, confidencia. Este é o terceiro romance de Miguel d’Alte, e segue a vida de Tomás Franco, um escritor falhado que se muda para o Porto em busca do significado do passado e da literatura. “Um nome a registar para o futuro” e que o autor de Dias Contados não quis deixar de partilhar com os leitores da Agenda Cultural.

Fora de portas…
Trilho da Peninha, Sintra
Às portas de Lisboa há um sítio mágico para descobrir. Trata-se do trilho da Peninha, que tem início junto do Santuário da Peninha, em Sintra, “um sítio muito bom para se caminhar, com dezenas de rotas individuais”. Esta sugestão do escritor é um apelo ao usufruto da natureza e ao exercício físico. Há passeios para vários tipos de ‘atletas’, mas as caminhadas “são longas, com uma duração mínima de uma hora”, explica. A paisagem, diz o autor, “é muito bonita, especialmente durante o inverno porque a floresta tem um ar meio transcendente, parece um cenário do Senhor dos Anéis”. Se quiser ir passear por lá ao fim-de-semana, não se admire se der de caras com João Tordo, já que este é um dos seus locais de eleição (e quem sabe se fonte de inspiração para algum dos seus livros).
Em cena, rodeados daquilo que o encenador Bruno Bravo define como uma “orquestra do lixo” (e não é que é mesmo, como explicaremos adiante), temos Guilherme e Guilhermina, um casal praticamente imóvel, ele numa cadeira de rodas, ela numa de braços. Tal como aparentam, no início são “jovens namorados, velozes, sexuais e impetuosos”. Atrás deles, uma sucata de carro ganha vida e empurra-os para a vertigem do sexo e do risco. Há um acidente, mas também há um casamento e há um filho que nasce e que morre.
O tempo parece saltar dos eixos, no entanto, o local permanece o mesmo, “tão concreto como distópico”, considera Bruno Bravo. O lixo que os rodeia continua ganhando vida – é toda a “orquestra do lixo” na qual explodem lâmpadas, onde um cavalo de madeira galopa sem criança, em que música antiga se escuta através de um vetusto rádio de sala –, mas estamos já noutro ponto das suas vidas, numa espécie de velhice interminável onde ambos interpretam “um jogo de linguagem que os desloca do drama para um território mais surrealista e irónico”.
Não Vos Arrancarei A Língua/ Momentos Há Em Que As Palavras Nos Abandonam recupera o “absurdo existencialista” de Beckett, citando mais concretamente Dias Felizes (“Até nos nomes das personagens, Guilherme e Guilhermina e Willie e Winnie…”, lembra o encenador), conjugando “o trágico e o cómico, como se fossem um só verbo”. Este casal parece estar condenado à circularidade da existência, num “tempo suspenso, que não avança, preenchendo o espaço entre a juventude e a velhice em que se encontram com emoções e memórias que nunca saberemos se efetivamente viveram”.
Ao mesmo tempo, talvez a circularidade se quebre um dia e se consiga vislumbrar o futuro. Como se pode escutar na locução de um programa televisivo que, a dado momento, fixa o olhar de Guilhermina no ecrã de um velho aparelho de televisão, “belos dias são os dias de amanhã”.
Talvez, “um estranho musical”
É a primeira vez que o encenador Bruno Bravo, diretor da companhia Primeiros Sintomas, trabalha no Teatro Aberto. “Tratou-se de um convite do João Lourenço e da Vera San Payo de Lemos para encenar um texto novo, vencedor do Grande Prémio de Teatro Português, que achei, assim que o li, muito estimulante.”
Explica o encenador que, a par da “musicalidade aliciante dos diálogos”, o texto de Patrício Torres começou por conquistá-lo com as “didascálias impossíveis de materializar em palco, que incluem carros desportivos que caem do céu, incêndios descontrolados ou pernas que andam desatarraxadas do corpo, tão desafiantes para a imaginação e estimulantes para interpretações metafóricas capazes de serem exploradas dramaturgicamente”. Em parceria com Nídia Roque, Bruno Bravo iniciou esse trabalho tendo como foco “aquilo que o texto poderia sugerir”, daí afirmar que “não será a peça do autor que levamos a cena, mas a peça que o autor escreveu”, sendo isso “diferença fundamental no exercício de encenação”.
Com o cenário de Stéphane Alberto, a sonoplastia de Sérgio Delgado, o desenho de luz de Diana dos Santos e, claro, a vivacidade dos atores André Pardal e Rita Correia, esta aventura cénica vai para além das verosimilhanças da vida quotidiana, parecendo cumprir-se num sonho onde tudo parece estar imbuído de música. Ou, como escreve Bruno Bravo a concluir o texto da folha de sala, “às vezes, durante os ensaios, cheguei a pensar, é um musical. Estranho musical”.
Em 1912, Arthur Schnitzler escreveu Professor Bernhardi, um retrato impressionante e devastador do antissemitismo vigente na sociedade austríaca da época. A peça narra a história de um destacado médico judeu que nega a extrema-unção prestada por um padre católico a uma jovem paciente moribunda, após um aborto malsucedido. Professor Bernhardi acabou impedida de estrear em Viena (por isso, a estreia aconteceu em Berlim nesse mesmo ano), sendo que nenhuma explicação plausível foi dada pelos censores, embora a proibição se tenha mantido até à queda dos Habsburgos, em 1918. Pelas temáticas abordadas, é suscetível presumir o que não agradou à censura, e o certo é que a peça de Schnitzler acabou, muito pelas vicissitudes do curso da História, por se tornar um clássico da literatura dramática europeia do século XX.
Embora frequentemente representado, um interesse renovado pelo texto surgiu em 2019, quando o dramaturgo e encenador britânico Robert Icke, especialista em novas abordagens de grandes textos da literatura (os Artistas Unidos têm, atualmente em digressão pelo país, a sua visão, a meias com Duncan Macmillan, de 1984, de George Orwell), estreou em Londres, com enorme sucesso de público e de crítica, A Médica, um reboot da peça de Schnitzler. Com originalidade e agudeza, Icke impregnou o drama de alguns dos temas mais suscetíveis de gerar debate na atualidade, nomeadamente os conflitos raciais e as questões de género e de classe, e ainda apostou em introduzir um jogo dissonante entre o género e a etnia de alguns dos atores e das personagens que representam. Um exemplo dessa dissonância: o padre católico impedido pela médica de origem judaica (papel aqui interpretado por Custódia Gallego) de prestar a extrema-unção à jovem de 14 anos é negro. Ora, na versão portuguesa, respeitando as indicações de Icke, esse personagem é encarnado pelo ator Pedro Laginha.
O encenador Ricardo Neves-Neves vê o “desencontro” como um desafio do próprio teatro enquanto arte. Afinal, “quando o ator ou a atriz está em placo é aquilo que diz ser, não aquilo que efetivamente é”. Aqui, Icke usa a dissonância do género ou da raça como “uma espécie de laboratório para perceber o que é que o público realmente vê. Enquanto vemos um ator a representar uma personagem, será que estamos a ver o ator ou a ver a personagem”, questiona.
De certo modo, neste jogo teatral, parece estabelecer-se entre A Médica e o anterior espetáculo que Neves-Neves e o seu Teatro do Eléctrico apresentaram no Teatro da Trindade, uma relação não discernível à partida. “Em Noite de Reis recorria à regra do teatro isabelino e todas as personagens, femininas ou masculinas, eram representadas por homens. Aqui, tenho um elenco definido na sua diversidade, contudo a distribuição dos papéis não obedece à regra lógica” do género ou da raça, explicita o encenador.
Vale a pena, assim, recuperar a ideia de que “a representação tem como ponto de partida a ilusão, palavra essa muito ligada ao teatro”. Isso já acontecia em Noite de Reis, com o género, mas A Médica (e esse jogo da dissonância começa, desde logo, ao colocar o protagonista no feminino quando, na peça original, o Professor Bernhardi era um homem) leva o desafio para outro nível. Este texto não se resume a mexer com o espectador pelos temas que aborda, mas também por lhe puxar o tapete ao desafiá-lo a pensar de que modo é que se deixa “iludir” quando, por exemplo, uma atriz negra como Vera Cruz interpreta uma personagem “que diz ser negra porque teve uma avó negra, mas aparenta, segundo nos dizem as outras personagens, ser uma pessoa totalmente branca.”
Doenças modernas
O incidente inicial em A Médica, aquele em que a doutora Piedade Lobbo impede o padre de entrar no quarto da jovem adolescente moribunda, acaba por despoletar uma reação que ultrapassa os corredores do hospital quando a discussão entre os protagonistas surge difundida na internet, tornando-se viral. Inúmeras questões começam por ser levantadas, como o facto de Piedade Lobbo ter negado a visita do padre devido à sua origem judaica, ato agravado não só pelo conflito entre fés professadas como por racismo.
Acossada, primeiro, pelos seus pares que duvidam das suas explicações clínicas, segundo, pelas redes sociais que aclamam por uma condenação sumária pelas mais diversas (e simplistas) razões, Piedade acaba por se ver no epicentro de um furacão mediático que alimenta petições online, debates televisivos e até decisões políticas. Com a carreira profissional ferida de morte, a abordagem tóxica em torno do incidente resvala para a dimensão identitária e pessoal da vida de uma mulher branca, judia, privilegiada e profissionalmente bem-sucedida.
À visão crítica do antissemitismo da peça de Schnitzler, Icke prolonga o olhar na direção das nefastas doenças modernas que, na sua essência, as redes sociais, “em que se fala muito de coisas que se desconhecem”, propagam. Observa Neves-Neves que, a dado momento da peça, assistimos a um programa de televisão onde Piedade decide falar, pela primeira vez publicamente, do caso. Nele, antes de passar a palavra à médica, o apresentador resume o contexto ao dizer “vocês já terão de certeza a vossa opinião formada”. Portanto, após tanta “gente a gritar na internet, diga o que disser, aquela mulher já está julgada, condenada a ser trucidada pela opinião pública. E mesmo que, daí a uns dias, já o caso esteja esquecido, tudo aquilo fica como uma constante na vida de quem o sofreu”.
Para além de Custódia Gallego, Vera Cruz e Pedro Laginha, A Médica conta com um elenco de luxo constituído por Adriano Luz, Eduarda Arriaga, Igor Regalla, Inês Castel-Branco, José Leite, Luciana Balby, Maria José Paschoal, Rita Cabaço e Sandra Faleiro. A cenografia é de Fernando Ribeiro, o desenho de luz de Cristina Piedade e os figurinos de Rafaela Mapril. O espetáculo está em cena até 16 de fevereiro, com récitas de quarta a sábado às 21 horas, e aos domingos às 16h30.
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