Como é que nasceu a vontade de promover esta ‘’okupação’’?

André e. Teodósio: O projeto partiu de uma ideia da Anabela que, na sequência do trabalho que tem desenvolvido nas entrevistas em tom intimista a algumas personalidades, idealizou um evento cujo tema fosse Estar em Casa. Entretanto, convidou-me, e em conjunto fomos elaborando um programa que conjugasse o tema numa ideia comum de programação.

Portanto, uma ideia da Anabela concretizada a dois…

Anabela Mota Ribeiro: Sim. Eu sou uma pessoa muito doméstica, mas por domesticar [risos]. E pretendo manter-me indómita tanto quanto possível. Apesar de gostar daquilo que não se deixa domesticar, preciso de reconhecer a domesticidade, logo necessito de ter um sentimento de ‘casa’…

Necessidade que transparece no seu percurso de jornalista, de entrevistadora…

AMR: Exato. O meu interesse pelas pessoas, pelo que elas são, pelo ‘interior’, levou-me a pensar neste Estar em Casa.

E o projeto estava já idealizado para o Teatro São Luiz?

AMR: Vivo em Lisboa desde 1999, e desde essa altura, sinto o São Luiz como uma ‘casa’. Aqui, neste espaço e com estas pessoas, vivo, por afinidades, com esse sentimento de ‘casa’. Por isso, decidi apresentar o projeto à Aida Tavares [diretora do São Luiz Teatro Municipal], no sentido de criar um evento que nos fizesse viver o teatro como se fosse uma casa. Teatro esse que iria ser aberto à cidade e, num cruzamento dinâmico, traria a cidade e as vidas da cidade para dentro de casa.

E como é que lhe ocorreu convidar o André para o projeto?

AMR: Foi logo na primeira reunião que tive com a Aida que pensei no André. Daí, considerar que só por acaso a ideia é minha. Sinto que o André é tão autor quanto eu.

Mas, porquê o André?

AMR: Há uns tempos fiz uma entrevista ao André para o Público a que dei o título A singularíssima cabeça de um alien barroco. Foi precisamente essa “cabeça”, o ser uma pessoa tão original e capaz de trazer o inesperado à minha vida e àquilo em que penso, que me fez convidá-lo de imediato. Pessoalmente, gosto de ser desassossegada, e o André traz a qualquer vida e a qualquer projeto esse desassossego.

Que desassossego trouxeste tu, André?

AT: Acho que desassosseguei no sentido em que este projeto é absolutamente inédito na minha vida. Digo-o porque uma coisa é trabalhar com o Teatro Praga (com quem estou há 20 anos) e outra é trabalhar com a Anabela, alguém que conheço e por quem nutro uma enorme admiração, mas com quem não tinha uma relação de tanta proximidade. Porém, este trabalho reflete uma enorme cumplicidade, uma afetividade profunda, embora tenhamos estratégias e modos diferentes de fazer as coisas. Digamos que, sou visivelmente louco, mas a Anabela, que parece muito organizada, é ainda mais louca do que eu [risos].

Estar em Casa reúne música, dança, teatro, pensamento, conversas, performances… enfim, praticamente tudo aquilo que possamos imaginar. Como é que entre os dois geriram um projeto como este, nomeadamente, quanto às escolhas da programação?

AT: É, de facto, um evento muito complexo e que só a capacidade da Anabela em montar as peças do puzzle tornou possível conceber. Como artista, tenho um lado crítico assente na distância que cultivo sobre projetos que percebo serem uma ameaça àquilo que é o meu projeto artístico; enquanto a Anabela, como jornalista, como teórica, consegue formar critérios supercomplexos e muito bem definidos, superando aquilo que possa ser entendido como um ataque à sua própria identidade e labor. Para mim, esse equilíbrio foi muito positivo e permitiu que o programa tenha toda esta diversidade.
AMR: Foi muito fácil escolher os nomes que vão participar. Digamos que nesta panóplia infindável, estão, para usar um título de Goethe, as nossas Afinidades Eletivas. Para fazer esta Casa, foi preciso desarrumar e voltar a arrumar, deixar entrar o ar, permitir até algumas correntes de ar… O resultado está nas pessoas em quem pensámos, pessoas que vão sair de suas casas para vir a esta Casa, que vão vir para desassossegar e, espero, para serem também elas desassossegadas.

Casa instala-se, portanto, em todos, ou quase todos os espaços do Teatro…

AT: Porque a ideia do que é uma casa torna-se transversal a toda a programação. Não é só o seio familiar que está em destaque, é toda uma diversidade de universos capazes de caber no espaço doméstico. Para isso, e mediante o orçamento e algumas limitações logísticas, todos os espaços do Teatro São Luiz estão abertos. Vejo a programação como uma refeição etíope, com as várias porções e tipos de comida, em que se vai experimentando aqui e ali. Nós fornecemos os ingredientes e as pessoas são livres de provar aquilo que mais lhes apetece.

De entre os “ingredientes”, temos alguns nunca provados, como as performances, o concerto de Sérgio Godinho com Filipe Raposo…

AT: Isso é uma experiência com comida molecular [risos]…

E outros que estão devidamente experimentados, como os espetáculos de Mónica Calle, do Teatro Praga ou do Cão Solteiro…

AT: Quisemos trazer alguns espetáculos que foram falados, mas não muito vistos. No fundo, é como se estivéssemos a sublinhar a necessidade de repor e não estar constantemente a apresentar o novo. Dentro da poética de ‘casa’ que norteia o projeto, escolhemos alguns espetáculos já experimentados, porém, cerca de 80% da programação são coisas novas.
AMR: Usando a metáfora da casa, o reencontro com esses espetáculos é como olhar repetidamente pela janela e um dia, porque a luz incide de uma outra maneira, descobrimos coisas que ainda não tínhamos visto. Confesso que a apetência voraz pelo novo irrita-me, e talvez por isso defendo um teatro de reposições em Lisboa.

Para além de comissários, vão ser também espetadores? Já fizeram as vossas escolhas?

AT: Confesso que gostaria de ver tudo, até porque não sabemos de nada, demos carta branca a todos os convidados… Mas, o mais certo, é não conseguir ver nada. O que quero mesmo é ver as pessoas aqui, e ir percebendo aquilo que os espetáculos, as conversas, as aulas ou os debates vão desencadeando em quem assiste e no ambiente desta Casa
AMR: O verdadeiro espetáculo vão ser, precisamente, as pessoas.

Em entrevista à edição em papel da Agenda Cultural de Lisboa, Faustin Lineykula falou de um “feliz encontro” com Miguel Ramalho, que conduziu a “uma cumplicidade, algo de íntimo e de pessoal”. Este solo é um retrato de ti mesmo, e simultaneamente a tradução desse encontro?

O Faustin defende que todo o seu trabalho é um encontro, uma “conversa” baseada naquilo que cada um dos interlocutores tem para dizer um ao outro. O solo chama-se I Miguel porque ele acredita ser o resultado dessa nossa “conversa”, logo mais ninguém o pode dançar senão eu. Daí ser tão privada, tão pessoal… este solo é uma viagem. É o meu encontro com o Faustin em África, num território muito agressivo e violento para a minha realidade.

De que modo é que sentiste essa violência?

Essa violência não se traduz fisicamente. Refiro-me ao barulho, ao cheiro, às pessoas… tudo muito movimentado e ruidoso, entendes? Quando voltei a Portugal, depois de três semanas no Congo, senti que, aqui, tudo é mesmo muito sossegado.

Falas de um solo que é “uma viagem”. A tua viagem a África…

Uma viagem que é traduzida no meu movimento, que conta a história dessa jornada.

E o que conta o teu corpo?

Conta a “conversa” entre ambos: eu danço e o Faustin sussurra ao meu ouvido, lembrando-me que os pés suportam os nossos joelhos, que os joelhos suportam as nossas ancas, que as ancas suportam o nosso peito, que o peito suporta a nossa cabeça, que a cabeça suporta as nossas ideias. Logo, o princípio ideal de cada movimento é que é da terra que vêm as nossas ideias.

A terra africana neste caso…

O solo é sobre donde vim e de como fui viver África com toda a intensidade e violência de um dia-a-dia em que falta água potável, onde há pessoas que passam fome… A sensação que tinha é que nós aqui temos tanto e tanto nos queixamos. Lá, há tão pouco e quase não há queixume.

Apesar desse cenário que encontraste, experienciaste também a alegria?

A vida no Congo baseia-se sobretudo na sobrevivência. Mas há uma riqueza cultural imensa, transmitida numa felicidade de viver que, para nós, até pode parecer estranha.

Fala-me um pouco dessa visão de viver a África profunda do ponto de vista de um europeu.

Há um choque brutal quando percebes que aquilo que sabes por ouvir dizer pode, de facto, ser vivido. Nunca esquecemos as nossas raízes, aquilo que somos, mas ali, para que o trabalho resultasse, despojei-me, como se guardasse a minha realidade numa caixinha. Ao longo dessas semanas, tentei viver como eles vivem, tentei comer como eles comem, tentei caminhar descalço na rua como eles caminham…

E como é que as pessoas de Kinsangani te olhavam?

Eu era praticamente o único branco na cidade, e se eu acredito que não há diferenças entre seres humanos, para eles percebe-se que essa diferença da cor da pele tem um peso histórico. Quando me olhavam, percebia que viam também o passado, tudo aquilo que a raça branca fez à raça negra. Claro que fiz muitos amigos, e sei que, como eu guardo saudades de tanta dessa gente que conheci, também eles sentem a minha falta. Aquelas três semanas pareceram três meses, cada dia parecia uma semana porque tudo era intenso, se bem que cada segundo é também calma e paz, mesmo sabendo que há guerra a uns meros 200 quilómetros.

Apesar das amizades que fizeste, pensas que o facto de seres branco, e europeu, continha ainda assim um olhar de desconfiança?

Esse peso histórico era ultrapassado, apesar de pairar nos primeiros olhares. A dada altura, tornei-me popular, sentia-me o Cristiano Ronaldo lá do sítio [risos]. As pessoas vinham mesmo tirar fotografias comigo para publicar no facebook – porque tirar uma foto com um branco é algo mesmo muito raro naquelas paragens.

Qual foi o grande ensinamento desta experiência?

Aprendi muito sobre aquilo que o mundo tem para me dar e, ao mesmo tempo, entendi que ser cidadão significa perceber aquilo que cada um de nós pode dar ao mundo para que ele seja melhor. E nós só o conseguimos se aceitarmos o que o mundo tem para nos dar. África é, precisamente, isso.

 

O TRABALHO NOS STUDIOS KABAKO

 

Sobre o ambiente de trabalho de Faustin Lineykula, os Studios Kabako, diz o coreógrafo assemelhar-se a “um abrigo sem teto”. Como era o teu dia-a-dia?

Trabalhar neste Teatro [Camões], com esta Companhia [Nacional de Bailado], é fantástico mas, permite-me que o confesse, trabalhar ao ar livre é absolutamente maravilhoso. Nos Studios Kabako fazia-o com os pés na terra, improvisei com cães e ratos que passavam… Houve um dia em que, quando dei conta, tinha um crocodilo ao meu lado – ao que os meus companheiros no Studio responderam: “não há problema Miguel, é apenas um pequeno crocodilo!” Por sinal, o animal era bem maior do que eu [risos].

Isso passava-se nos Studios Kabako?

Sim. Os Studios são compostos por um espaço interior, onde há computadores e meios próximos aos que temos cá, e um espaço ao ar livre, selvagem, onde temos de assentar os pés na terra. É preciso não esquecer que foi na zona de Kinsangani que, consta, se avistou o primeiro humano nosso antepassado. E isso marca indelevelmente a nossa presença naquele sítio.

Esse trabalho no exterior era visível à comunidade local?

Bastante. As pessoas passavam, viam um branco a dançar e entravam. O trabalho que desenvolvíamos no exterior era público, como se fosse um espetáculo. As pessoas atravessavam um grande portão, sentavam-se e ali ficavam, a ver-nos…

E o trabalho com o Faustin. Como era?

Esta é a primeira vez que o Faustin coreografa especificamente para um branco europeu e é também a primeira vez que eu estive em África. Isso marca muito a nossa “conversa”. Todo o movimento que construímos passa pelas experiências que vivi. Por isso, este espetáculo, este solo, é o resultado dessa viagem, das pegadas deixadas em território africano.

Mas, aqui, vais pisar o palco de um teatro a milhares de quilómetros de distância…

Um palco forrado a serradura, onde cada movimento deixa uma marca, como se fosse em África. Porque, fazer este solo aqui é como voltar a Kinsangani. Sinto que não fui só lá para trabalhar, para visitar… sinto ter feito parte de tudo aquilo, e trago comigo isso mesmo.

 

A CUMPLICIDADE COM FAUSTIN

 

Como é que o bailarino da Companhia Nacional de Bailado foi descoberto por Faustin Linyekula?

Toda a experiência por mim vivida e o solo que vamos apresentar tem contornos bastante místicos pela intensidade como tudo se passou. Porém, tudo o resto é muito objetivo. O Faustin foi escolhido para ser o Artista na Cidade em 2016 e a Luísa Taveira [diretora da Companhia Nacional de Bailado] sentiu ser muito positivo pertencer à Companhia o primeiro momento criativo desta edição da bienal. Assim, foi proposto um bailarino para ir e trabalhar no Congo com o coreógrafo…

E foste tu o escolhido.

Exato. Conhecemo-nos aqui em Lisboa. Conversando, fomos descobrindo alguns paralelismos nas nossas vidas: ele cresceu em Lubunga e tinha de atravessar o rio para ir estudar; eu cresci no Barreiro e atravessava o Tejo para estudar e trabalhar. O Faustin quis saber mais sobre mim, atravessou comigo o rio e foi conhecer o Vale da Amoreira, bairro social onde nasci. Quando fui ao Congo, ele atravessou comigo o rio e deu-me a conhecer o bairro em Lubunga onde cresceu…

Apesar das geografias, as similitudes…

Muitas coisas em comum, de facto. E as nossas vivências contaminaram-nos reciprocamente, criando uma cumplicidade não só artística, mas também pessoal.

Apesar das vossas escolas serem diferentes, consegues entender essa cumplicidade artística com um coreógrafo que tem uma dimensão universal precisamente porque é eminentemente local?

A história dele, a história da sua casa, contaminou o europeu que sou. Esse foi o grande desafio desta experiência. Eu sou um bailarino feito, tal como ele, e foi preciso encontrarmo-nos no momento certo para descobrir a cumplicidade e aquilo que somos enquanto artistas.

Este é o momento alto da tua carreira?

É o culminar de um ano de 2015 absolutamente especial para mim. Enquanto artista tenho sempre dúvidas, e a minha dúvida mais premente é se vou ter um ano como o último. Profissionalmente, senti evoluir, afirmei-me, fui reconhecido e, no final, vivo esta experiência única de vida. 2016 começa, precisamente, a coroar esse ano magnífico com este I Miguel que, acima de tudo, é um trabalho que me honra enquanto homem e bailarino.

Montanha é a sua primeira longa-metragem, os prémios obtidos com as curtas Arena e Rafa e o reconhecimento da crítica foram decisivos para a realização deste filme e concretização do projeto?

O Manoel de Oliveira disse, sobre esta questão do reconhecimento e dos prémios, algo que subscrevo: a única coisa para a qual os prémios servem, para além do seu efeito simbólico, é dar ao realizador condições para poder continuar a filmar em liberdade. Há um sistema relativamente perverso de legitimação de um determinado realizador em detrimento de outro, que é bastante injusto a maior parte das vezes. Para fazer esta longa-metragem os meus produtores serviram-se destes prémios para conseguir financiamento e isso permite-me acima de tudo, tempo e meios, mas sobretudo tempo para filmar da maneira em que acredito.

A adolescência é normalmente uma etapa de socialização, onde as amizades têm muita importância. No entanto, neste filme e nos anteriores os personagens principais são jovens, mas a solidão é uma das suas principais características. Porquê?

Montanha é um filme sobre um rapaz, de 14 anos, David Mourato, não é um filme sobre a adolescência. A mim interessou-me muito filmar este lado angustiante e muito violento que é a passagem da infância à idade adulta. O momento em que os últimos vestígios da infância chocam com a chegada dura de uma maturidade precoce. O filme nasce de dois desejos, por um lado tentar materializar algumas memórias da minha infância, que não são necessariamente factos que eu reproduzo no filme, mas sim a memória de uma experiência sensorial da adolescência, de um tempo meio flutuante de deambulações e errâncias pela cidade. Desta sensação de não saber onde se pertence e para onde se quer ir. Por outro lado, um segundo desejo que eu cruzo com este, é o de filmar o David e perceber até que ponto é possível fazer um filme em que um corpo em transformação conta a sua própria história. Queria muito que o filme permitisse a relação intensa da câmara com uma personagem. Nesse sentido é um filme muito clássico, quase como o Rebel Without a Cause com o James Dean, que é uma referência para mim, e onde a câmara não consegue largar a sua personagem do princípio ao fim.

Este é um filme que fala da transição da adolescência para a idade adulta, mas também reflete a crise que se vive no país (a mãe que foi trabalhar para o estrangeiro e que deixou para trás o filho, a escola que não consegue dar resposta, o hospital velho e obsoleto…). Há um paralelismo entre estes dois tipos de crise?

Eu não queria que o contexto social se impusesse sobre uma angústia que é muito mais espiritual e que é universal a todos os adolescentes, num determinado momento. Mas, ao mesmo tempo, há imensos vestígios de um país que desaba e que estão presentes, não de uma forma evidente, mas que são exatamente esses que identificaste. O que me interessava é perceber como é que uma coisa tão violenta como esta crise se pode manifestar nas coisas mais simples. Como é que uma situação tão doméstica, tão ínfima, tão particular da vida de duas pessoas, pode refletir quase um país inteiro. Achei isso mais interessante do que filmar Portugal a partir de um helicóptero, ou refletir o país através das notícias no telejornal.

Porquê a escolha de atores não profissionais? O objetivo é criar um maior realismo?

Para mim um filme só nasce verdadeiramente no momento em que sei quem quero filmar, e quando de alguma forma me apaixono pelas pessoas com quem vou trabalhar. Não faço de todo uma separação entre trabalhar com atores ou com não atores, porque o meu trabalho enquanto realizador é transformar em matéria de cinema a natureza das pessoas que quero filmar. Mesmo quando filmo atores, como a Maria João Pinho ou Carloto Cotta, faço-o porque me interessam enquanto pessoas. Acho que os grandes atores da história do cinema, que são poucos, são aqueles que conseguiram incorporar a sua presença de vida em todas as personagens que fizeram, fossem personagens históricas ou contemporâneas. Marlon Brando é sempre arrogante, seja no Apocalypse Now, no Último Tango em Paris ou no Há Lodo no Cais. Há qualquer coisa que se manifesta na sua vida e que ele põe nas personagens.

Qual a expectativa que tem com este filme, uma vez que é o primeiro a estrear em sala sem estar associado a outros trabalhos?

Um filme visto numa sala de cinema continua a ser luz projetada numa parede, é um princípio simples. Em sala há uma componente energética, espiritual e, ao mesmo, há um reflexo. Um filme só existe verdadeiramente quando é visto. Tenho a maior felicidade de saber que o filme vai ser visto em algumas salas de Portugal, mas também tenho plena consciência, se calhar um pouco pessimista, que há um certo tipo de cinema que continua a ser uma atividade minoritária. Mas a literatura no tempo do Fernando Pessoa também era uma atividade absolutamente minoritária, até porque grande parte da população era analfabeta.

Já há sucessor para Montanha?

Sim. O próximo filme que vou fazer, em co-realização com Renée Nader, será com os Krahô, um povo indigena que habita o cerrado brasileiro no estado de Tocantins.

Para trás ficaram duas representações da peça e, agora, é tempo de voltar ao trabalho. A prioridade máxima, sublinha o ator, é adquirir a melhor forma física. Desde que voltou de férias em Viseu, sua cidade natal, corre diariamente no Estádio Universitário. “O corpo tem de estar preparado para o nível de exigência deste espetáculo”, acrescenta, lembrando que se avizinha um ciclo longo de representações que começa em Lisboa e se conclui em novembro, uma vez mais, em Almada.

Sentamo-nos à conversa, e o Hamlet mais jovem do teatro português parece esquecer o formigueiro que o assaltou há minutos. Apesar de se considerar tímido é um conversador nato, e ao longo de quase uma hora, falou de um papel que qualquer ator sonha fazer, das ligações afetivas e profissionais com Luís Miguel Cintra e os “colegas” da Cornucópia, de Viseu, de um concurso de televisão que o retirou do anonimato por via da poesia e da particular influência que trabalhar com Luísa Cruz, em Íon, teve em tudo o que se seguiu na sua vida de ator.

Por quantas noites de insónia passaste quando o Luís Miguel Cintra te desafiou a interpretar o papel de Hamlet?

Na altura, fiquei particularmente contente. O desafio foi feito de um modo algo peculiar: o Luís Miguel trouxe-me um saco com uma série de livros na sequência de algumas conversas que mantivemos e, por entre peças de teatro e antologias de poemas que ele me foi apresentando, anunciou que, no fundo do saco, havia um segredo. Esse segredo era o Hamlet traduzido pela Sophia de Mello Breyner.

Mas, no momento, pensaste que isso iria querer dizer seres tu o protagonista?

De modo algum. Sabia-se que a companhia queria fazer o Hamlet, mas só depois é que ele me anunciou que o queria fazer comigo. Recordo que, talvez a seguir ao Pílades, o Luís Miguel enviou-me uma mensagem de email anunciando que tudo se compunha para que o Hamlet avançasse. No final, dizia qualquer coisa como “o mundo te saúda, ó Príncipe da Dinamarca”. Foi ai que começou a surgir uma espécie de peso sobre mim…

E chegaram as insónias…

Essas vieram mais tarde, mais próximo da noite de estreia em Almada [risos]. Sempre tentei que a responsabilidade e importância do papel não me prendessem de alguma maneira. Pensei sempre que, independentemente de ser o Hamlet, haveria de dar muito prazer fazer o papel. E assim foi. Cheguei a ir para os ensaios com a sensação de que até não seria assim tão difícil – estava enganado…

Porquê? Sentiste alguma insegurança?

Insegurança não, mas só com os ensaios é que percebi o quão complexo é o personagem. Porém, toda a equipa da Cornucópia dá-nos a segurança da inteligência e do pensamento, e isso foi fundamental para me tranquilizar e seguir em frente.

Chegaste a pensar ser novo demais para fazer um papel que é tão ambicionado por todos os atores?

Penso que as pessoas sentem isso mais do que eu. Desde que conheço o Luís Miguel percebo que a escolha dos atores depende do caminho por onde ele quer levar o espetáculo. Neste Hamlet, o intérprete teria de ser necessariamente jovem, fosse eu ou outro colega. Isto porque, aqui o Hamlet tem 22 anos. A partir do momento em que percebi esta, digamos, consciência do espetáculo, a minha juventude deixou de ser, se é que alguma vez foi, um entrave ao desempenho do papel. Isto não quer dizer, é claro, que o trabalho não é de uma brutal exigência e requer muito sacrifício e sofrimento.

Fala-nos um pouco da estreia em Almada, naquele que foi o primeiro momento de te mostrares ao público enquanto Hamlet…

Nesta casa – o Teatro da Cornucópia – aprendi sempre que se algo não corre bem sobre o palco, se há um momento em que nos perdemos ou algo toma indevidamente a nossa atenção, agarramo-nos ao colega, e ele está lá para nos amparar. Isso faz com que nos consigamos abstrair de ser o foco do público e enfrentar o habitual nervosismo no momento de subir ao palco. Naquela noite, quando terminámos e fomos agradecer os aplausos, senti toda uma comunhão muito singular entre os atores que, de algum modo, me retiraram o peso de ter interpretado o protagonista.

Houve algum momento, nessa noite, em que te sentiste vacilar?

Houve uma situação curiosa: durante os ensaios, eu ia comendo cada vez que saía de cena. Naquela noite, devido ao nervosismo, custava-me bastante comer e, praticamente, nem bebi água. No final, senti-me extremamente enfraquecido e pensei que ia desmaiar. Outra curiosidade teve a ver com o público: em determinadas cenas, as pessoas riam, e a dada altura só me questionava sobre o que se estava a passar. Lembro-me de, no final, termos concluído que o Hamlet é, afinal, um personagem cómico [risos].

No âmbito da preparação para o papel, fizeste muito trabalho de casa por tua autorrecriação?

O Luís Miguel forneceu-nos imenso material e recordo particularmente um dvd chamado Acting Shakespeare, produzido pela Royal Shakespeare Company,  que me ajudou muito na composição do papel. Por acaso, descobri aqui no teatro um livrinho sobre A Sonata dos Espectros, de August Strindberg, espetáculo que a Cornucópia fez há quase trinta anos. No final, havia uma referência ao quadro de [Arnold] Böcklin A Ilha dos Mortos. Aquela pintura inquietou-me, e confesso ter-me transportado para o universo preciso deste trabalho. Tem graça que, desde os meus tempos de escola, sempre tive uma certa tendência para estudar um pouco ao lado dos manuais e estabelecer paralelismos com outros materiais. Aqui aconteceu isso.

“O Luís Miguel Cintra enviou-me uma mensagem a anunciar que o ‘Hamlet’ se fazia e no final, dizia ‘o mundo te saúda, ó Príncipe da Dinamarca’.”

 

Os teus primeiros minutos de fama deveram-se à televisão, quando tinhas apenas 17 anos e surgiste a recitar poesia num concurso de talentos. Naquele tempo, já tinhas decidido que irias ser ator?

Na altura estudava Ciências, e até conclui o meu 12.º ano na disciplina de Física. Esse concurso de talentos foi uma espécie de rebeldia da adolescência [risos]. Quando apareci no programa queria promover a ideia de dizer poesia e, confesso, nunca esperei ter grandes resultados. O certo é que cheguei mesmo à final do concurso…

Mas nesse concurso revelaste uma capacidade enorme de seres mais do que um declamador. Um dos membros do júri, o encenador Ricardo Pais, frisou bem isso…

Para se perceber melhor, vou começar pelo princípio. Os meus pais não veem do meio artístico, mas são espetadores regulares de teatro. Desde muito jovem fui participando em workshops das mais diversas áreas artísticas promovidos pelo Teatro Viriato [em Viseu]. Sem me aperceber, passava a vida no Teatro, como se fosse absolutamente normal passar quase todos os meus tempos livres naquele espaço. Um dia, inscrevi-me no projeto PANOS [iniciativa da Culturgest para teatro juvenil] e aquilo foi uma experiência reveladora…

E decisiva para seres ator?

Quase… Andava no 9.º ano, penso eu, e um professor de português escreveu no quadro a frase “põe quem tu és no mínimo que fazes”. Achei-a grandiosa e pus-me a pesquisar, acabando por descobrir que aquela frase era um verso de um poema de Fernando Pessoa/Ricardo Reis. Foi o início da minha paixão pela poesia. Assim, comecei a gravar em vídeo poemas de que gostava e a partilhá-los no You Tube. Aquele meio era uma espécie de refúgio para o miúdo que queria fazer teatro e continuar a experiência do PANOS, mas vivia em Viseu, uma cidade que não tinha ensino artístico.

Por isso concluíste a tua escolaridade em Ciências…

Exato. Quando fui ao concurso já estava decidido, após concluir o 12.º ano, ir estudar Teatro para Lisboa. Aos 18 anos, deixei Viseu, cidade em que, graças à televisão, toda a gente me conhecia e acarinhava, e vim para cá, onde estava completamente anónimo.

Fizeste o Conservatório, um estágio aqui na Cornucópia e, de repente, estavas a interpretar o Íon no palco do Teatro São Luiz…

O meu ano de Conservatório teve a grande sorte de ter vindo para a Cornucópia, a meio do curso, fazer um estágio no âmbito de um espetáculo baseado em teatro de cordel. Foi apenas uma semana, mas o suficiente para estabelecermos uma relação próxima com a companhia. Um dia, o Luís Miguel contacta-me, na sequência de também ter descoberto na internet as minhas prestações no concurso de talentos, e convida-me para fazer o Íon. Ali tive o privilégio de trabalhar com grande atores, e uma menção muito especial vai para a Luísa Cruz que, durante um ensaio que correra bastante mal, disse-me: “errar é normal, o truque está na maneira como lidamos com o erro”. Foram palavras determinantes para lidar com os meus receios e que jamais esqueci.

Tem sido tudo muito rápido no teu percurso de ator. Para usar um lugar-comum, já sentes o palco como a tua casa?

Sinto-me muito bem em palco, mas faço por olhar para o teatro como a concretização da vontade de fazer coisas legíveis que convoquem as pessoas. Houve uma altura em que via o palco como um lugar sagrado, sobretudo porque ainda não sabia se o meu futuro havia de passar por ele.  Noutras fases, e porque sou muito tímido, o palco era como que uma espécie de terapia. Hoje, é um sítio que respeito, que vejo como um veículo para chegar às pessoas. Daqui para a frente, e tenho até um projeto com colegas de Conservatório, interessa-me derrubar a barreira do palco e fazer do teatro um sítio pleno de partilha, um catalisador de pensamento. Para mim, um bom espetáculo de teatro deve ser comouma boa conversa, onde partilhamos, onde pensamos e onde refletimos em conjunto.

Porquê a escolha de As Mil e Uma Noites como estrutura para realizar o filme?

O livro As Mil e Uma Noites sempre me atraiu pelo caráter selvagem e muito rock’n’roll da ficção. Muitas vezes é violento e selvagem. Comecei a sentir nas histórias que ia lendo nos jornais, nas histórias que iam entrado em minha casa pela televisão, que essa dimensão selvagem começava a existir na própria atualidade que era relatada pelos media em Portugal. O que faz sentido, porque, em momentos mais extremos em que a conjuntura é dramática, todo esse lado de pulsões se torna mais visível. A realidade ou fica mais violenta, ou mais absurda, ou mais triste… Portanto achei que os contos que Xerazade contava ao rei, nas Mil e Uma Noites, tinham um lado delirante, estabelecendo um ponto de contacto com o que estava a ser vivido na sociedade portuguesa. Achei que podia fazer um filme em que a ficção tentava contar o real através do seu delírio, mas também relatar uma realidade que estava, ela própria, a delirar.

No início do filme estabelece um paralelo entre o realizador e Xerazade. Considera que os realizadores, assim como Xerazade têm uma urgência em contar histórias?

Acho que não se pode renunciar a esta função de contar histórias. Às vezes existe a ideia, com a qual não me identifico, que quando as coisas começam a ficar muito difíceis deixamos de ter autorização de contar com a ficção, porque a realidade é demasiado forte e portanto temos que ficar apenas presos a ela. Eu não concordo, e acho que Xerazade também não ia concordar, apesar de ela nunca ter existido e ser uma personagem do livro, porque para ela contar histórias era uma questão de vida ou morte. Contar histórias, mesmo a partir de uma realidade complicada, é poder continuar a transmitir, é uma coisa importante para alguém do nosso tempo e para gerações futuras. Essa ideia de contar histórias, como Xerazade fez com o rei e os pais fazem com os filhos, é importante. A ideia de transmitir algo sobre o mundo através da capacidade que a ficção tem.

O filme alterna momentos ficcionais e outros documentais. Mas mesmo os momentos documentais parecem ensaiados, remetem para a ficção. Qual é a intenção? E porquê essa divisão se tudo é ficção?

Existe uma componente real em muito daquilo que parece a ficção mais surrealista. Quando mostro o filme a espetadores fora de Portugal perguntam de onde me surgiu a ideia dos Vistos Gold; ou como é que inventei os sorteios de automóveis de luxo feitos pela Direção Geral de Contribuição e Impostos. Respondo que não são invenções. Logo, na ficção mais delirante existe, muitas vezes, uma base real e naquilo que é documental existe também um trabalho de ficção. Para mim, o que é importante é o diálogo entre as duas coisas, entre o real e o imaginário, e como esse diálogo pode existir sem que um traía o outro. A traição acontece quando a ficção tenta fingir que é a realidade. Isso incomoda-me porque é uma coisa que está muito em uso. Sinto-me insultado quando essa ficção tenta passar pelo real… A isso chama-se mentira.

As suas histórias documentais têm sempre um lado metafórico. Como vê a relação entre realidade e metáfora? Através da metáfora pretende transcender a realidade?

É uma maneira de fazer expandir a realidade, através do recurso a uma dimensão quase mitológica. Inventar uma mitologia para um tempo, com personagens, criaturas, histórias onde a realidade ecoe. Como os gregos inventaram os seus Deuses, que no fundo refletiam a realidade da sociedade onde viviam. O cinema não pode contentar-se apenas em captar a realidade, é preciso trabalhá-la, inventar uma dimensão que exista para além dela. Sei que a baleia que rebenta no filme talvez seja uma metáfora, só não sei de quê. A baleia será Portugal? Será o coração daquele sindicalista? Não faço ideia, mas sei que existe essa dimensão. Num certo sentido aquela baleia diz qualquer coisa sobre aquele personagem e sobre o universo em que está inserido. Sou muito intuitivo, nunca penso: ‘esta coisa vai representar isto ou aquilo’. Isso é muito racional. Prefiro fazer ao contrário: há determinados elementos que me fascinam e quero pô-los no filme porque têm uma dimensão qualquer, podem significar alguma coisa, mas não sei o que podem significar. Não sei se isso me desqualifica como realizador…

Ao longo dos três volumes como foram selecionadas as histórias documentais?

Tinha consciência que a diversidade de histórias seria aquilo que faria o filme mais rico e mais justo. Com uma história e com um conjunto de personagens arriscávamo-nos a cristalizar um olhar sobre Portugal, portanto, era importante que em cada história houvesse diferenças sobre como se contam histórias e que esta Xerazade arranjasse sempre maneiras diferentes de as contar, que não existisse um olhar único sobre Portugal, que cada nova história pudesse corrigir coisas da história anterior. A complexidade do filme teria a ver com essa diversidade.

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No último volume, O Encantado, há uma história que predomina: a da comunidade de passarinheiros. Qual a sua relevância ?

A história dos pássaros e dos passarinheiros foi uma oportunidade que descobri para fazer uma coisa que me interessava muito no filme: ter dois mundos ao mesmo tempo e muito diferentes. O mundo que nós comungamos, o mundo real, material, ou seja, filmar um conjunto de pessoas que são proletários, que nasceram em bairros de lata, em Lisboa, e que através das memórias e da sua vida me dão azo a fazer um retrato de uma certa classe social que, nas últimas décadas, existe neste país. Por outro lado, quis mostra a ocupação desses homens numa atividade que eu desconhecia, e que parecia paralela ao nosso mundo. Um conjunto de homens que ensinam pássaros a cantar tem uma dimensão poética, que é paralela àquilo que identificamos como sendo o nosso mundo quotidiano. Senti que estava a filmar duas realidades ao mesmo tempo e sem esforço. Captava uma realidade paralela, e simultaneamente registava como se vive em Portugal nesta altura e nestes bairros.

Considera que a presença da troika e o programa de ajuda financeira a Portugal são, tal como As Mil e Uma Noites, uma história por fechar?

A primeira vez que ouvi falar da troika não estava em Portugal, estava em Moçambique a filmar o Tabu. Alguns elementos da minha equipa que iam para Moçambique cruzaram-se no aeroporto com elementos dessa troika, que vinham pela primeira vez a Portugal. Quando chegaram a Moçambique, eu estava muito isolado, praticamente no meio da selva e eles disseram-me que se tinham cruzado com a troika. Eu perguntei: mas quem é a troika? Só o nome parecia ficção. As Mil e Uma Noites do título não são só As Mil e Uma Noites do livro, são também As Mil Uma Noites dessa crise, ou os dias intermináveis destes tempos de crise. Dias que, quando comecei a filmar, já tinham começado e que, depois de terminado o filme prometem, infelizmente, continuar.

Da antiga cadeia do Aljube, pouco resta. Na década de 60 do século passado, após uma série de campanhas de denúncia com repercussão internacional, a ditadura de Salazar encerrava este tenebroso estabelecimento prisional situado no coração de Lisboa. A manobra de branqueamento perpetrada pelo fascismo fez desaparecer tudo aquilo que, no interior do edifício, remetia para o caráter repressor do regime. O velho edifício, com uma história prisional de séculos, e muitas lágrimas e sangue derramados, teve de esperar quase meio século para ser aberto ao público como museu. Um museu vivo de memórias que não podem, nem devem ser esquecidas, a bem dos valores da democracia.

Um século com pouca liberdade de imprensa

A instauração da República e a Primeira Guerra Mundial criaram, nos primeiros decénios do século XX, um conjunto de conturbações na sociedade portuguesa que desaguam, primeiro, na Ditadura Militar (1926-1933) e, depois, no Estado Novo (1933-1974). São 48 anos de desmantelamento do Estado liberal, do multipartidarismo, do sindicalismo livre e da liberdade de imprensa que condenam Portugal a um obscurantismo atroz, quebrado pelo golpe dos militares, a 25 de Abril de 1974.

O início desta viagem pelo Museu do Aljube tem como cenário o Portugal entre as duas guerras mundiais, dando particular ênfase aos condicionamentos à liberdade de imprensa. Como nos refere o diretor do Museu, o historiador Luís Farinha, “o século XX português ficou muito marcado pela falta de liberdade de imprensa. É preciso não esquecer que a censura é ainda instituída durante a Primeira República.”

São inúmeras as reproduções de documentos censurados, desde capas de periódicos a artigos. A força do “lápis azul” amputa os cidadãos do conhecimento sobre a realidade dos factos e a imprensa torna-se uma extensão natural dos interesses do regime ditatorial.

 

Resistir e subverter as “verdades indiscutíveis” do Salazarismo

Focos de resistência ao regime e aos condicionamentos dos censores, a imprensa clandestina desempenha um papel essencial na oposição a Salazar. Depois de percorrermos o sombrio corredor das “verdades indiscutíveis” do Estado Novo – “Deus, Pátria e Família” –, uma sala inteira é dedicada à imprensa clandestina que, muito mais do que meios de propaganda, eram veículo único para denunciar a opressão, e passar informações sobre o país e o mundo a partir de pontos de vistas não oficiais.

Para além do Avante!, jornal oficial do Partido Comunista Português, podemos encontrar dezenas de títulos que representam praticamente todas as famílias políticas portuguesas, da direita mais radical à extrema esquerda, ao longo dos 48 anos de ditadura. Também a rádio não é esquecida, enaltecendo-se, com reprodução sonora, as emissões de rádios oposicionistas, como a Portugal Livre ou a Voz da Liberdade.

A memória fotográfica da opressão ou as condições em que se realizavam as reuniões clandestinas, se redigiam os artigos ou se imprimia um jornal clandestino demonstram toda a coragem e engenho dos que ousaram resistir.

A prisão nos curros

O caráter violento e opressor do regime encontra-se plasmado nos seus cárceres em Portugal e nas colónias ultramarinas. O Aljube – prisão eclesiástica até meados do século XIX, depois, prisão de mulheres e, a partir da Ditadura Militar, destinada a presos políticos e sociais, que se torna, mais tarde cadeia privada da polícia política –, à semelhança de outras prisões do fascismo, continha a marca da arbitrariedade da opressão salazarista.

Depois dos longos interrogatórios, da tortura e da humilhação, os prisioneiros chegavam ao edifício da Rua Augusto Rosa onde eram encarcerados nos chamados curros, ou “gavetas”. Originalmente, estas celas com cerca de um metro de largura por dois de comprimento, sem luz natural e praticamente sem ar, eram 14. Para o atual Museu foram reconstruídas quatro onde, sem entrarmos, é possível experienciar a sensação asfixiante porque passaram os presos.

De facto, não é fácil imaginar o que seria estar ali, uma hora sequer, em total isolamento. Domingos Abrantes, dirigente comunista, foi isolado num curro durante seis meses. Lino Lima, outro destacado oposicionista, comparou-os a “sarcófagos”. O falecido dirigente do MPLA Joaquim Pinto de Andrade denunciou mesmo, num Tribunal Plenário em 1971, a sua experiência, referindo ter sido “lançado numa enxovia estreitíssima (…), onde a luz e o ar entravam por um postigo de 15 por 20 centímetros, filtrados através de duas férreas portas, postigo, aliás permanentemente fechado.”

Luís Farinha aponta ainda uma curiosidade: o espaço é de tal modo exíguo e claustrofóbico, que as lâmpadas colocadas no teto tendem a fundir-se em poucas horas.

Depois da guerra, a Revolução

No terceiro piso do Museu, o colonialismo e a luta anticolonial estão em destaque. Ao imparável movimento do fim dos impérios europeus, Salazar resiste lançando Portugal num esforço de guerra que marca o princípio do fim do regime. Entre 1961 e 1974, ao país amordaçado junta-se um esforço de guerra que marcará da forma mais terrível toda uma geração de portugueses e africanos.

Por fim, Abril. Antecedida por um memorial em construção com o nome das vítimas da resistência ao fascismo – “os que ficaram pelo caminho”, assim é denominado – e pela epígrafe “Democracia”, uma sala evoca os “capitães” e o dia 25 de Abril de 1974. Com uma parede inteira de cravos vermelhos…

 

Um Museu vivo de memórias

Equipado com um Centro de Documentação que, no futuro, disponibilizará um vasto espólio bibliográfico e documental sobre a resistência ao Estado Novo, o Museu do Aljube dispõe, no último piso, de uma agradável cafetaria, com vista sobre o rio, e de um pequeno auditório.

Segundo o seu diretor, “o auditório vai passar a acolher, já a partir de setembro, várias iniciativas de âmbito cultural. No final de setembro, iniciam-se as Tertúlias com a presença de antigos presos políticos e a exibição de filmes; e em outubro, às sextas, haverá um ciclo de Música de Protesto, com a atuação de baladeiros.”

O Museu é ainda uma obra em construção. E, assim, deverá continuar a ser. Como sublinha Luís Farinha, “queremos que as pessoas que viveram a ditadura continuem a vir ter connosco e a enriquecer este espólio coletivo com as suas lembranças e os seus próprios acervos.”

Para que não nos falte, de novo, a Liberdade e a Democracia pelas quais tantos se bateram.

Vou terminar o segundo volume da obra A Minha Luta de Karl Ove Knausgärd. Uma descoberta com cerca de 6 meses que me deixou rendida à primeira frase: “Para o coração, a vida é simples: bate enquanto pode. Depois para”. Simplicidade não é, contudo, palavra que se aplique à escrita deste norueguês de 46 anos, que na narrativa da sua vida transcende o registo autobiográfico ou diarístico. A descrição de gestos do quotidiano, de factos aparentemente banais, é feita sob uma tensão constante que gera no leitor a expetativa de que alguma coisa está para acontecer. E está: páginas magistralmente preenchidas com reflexões sobre a vida, a arte, a morte, o amor, a filosofia.

O outro livro, diretamente relacionado com as minhas férias, é O Colosso de Maroussi de Henry Miller. Considerado pelo próprio como uma das suas melhores obras, relata a sua descoberta da Grécia, para onde viajou a convite do amigo e também escritor Lawrence Durrell. A minha curiosidade começou por ser turística: poder comparar a descrição que faz dos locais por onde vou passar com as minhas próprias observações. Contudo, as tensões presentes nas circunstâncias em que Durrell realizou a viagem – corria o ano de 1939 e os ventos da guerra sopravam já pela Europa – e as atuais pareceram-me outro excelente motivo para conhecer esta obra do autor de Trópico de Câncer.

Paula Teixeira – editora executiva

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Apesar de pelas piores razões andar nas bocas do mundo, a Alemanha é um país fascinante e sedutoramente assustador pelos fantasmas que carrega do passado e que, com teimosia, parecem querer ensombrar o futuro da Europa. Por essa irresistível paixão pela história e pelos seus medos, na bagagem de viajante coloquei dois livros, duas abordagens distintas sobre o século XX alemão.

O primeiro é uma obra-prima absoluta da literatura, obra de estreia do recentemente desaparecido Günter GrassTambor de Lata. Na Danzing natal do escritor, acompanhamos as aventuras e desventuras do pequeno Oskar que recusa deixar de ser pequeno e abandonar o seu tambor de lata. É uma longa viagem à Alemanha perseguida pela derrota de 1914/18, que vê o nazismo triunfar e, uma vez mais, reincide em arrastar a Europa para um novo conflito. É uma leitura desafiante, carregada de humor e inteligência que, apesar da dimensão (são cerca de 700 páginas), é impossível resistir.

Da autoria de um francês, Jacques-Pierre Amette, descobri recentemente numa feira do livro A Amante de Brecht, obra distinguida com o Prémio Goncourt em 2003. Trata-se de uma narrativa ficcional passada na Berlim destroçada do pós-Segunda Grande Guerra. Bertolt Brecht regressa à Alemanha e, num misto de admiração e suspeição, as autoridades encomendam a uma jovem atriz vienense com um passado colaboracionista, Maria Eich, a tarefa de o  seduzir, de modo a manter sobre controlo as conceções artísticas do grande dramaturgo.

Frederico Bernardino – editor do site agendalx.pt / Teatro

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Duas leituras essenciais, duas grandes obras do século XIX:

Em Bouvard e Pécuchet, Gustave Flaubert empreende mais uma dura análise da vida do século XIX com um romance que pretendia ser “uma enciclopédia da estupidez humana”. Bouvard e Pécuchet reformam-se e começam uma nova vida no campo. Aí se vão dedicar, sucessivamente, às várias áreas do saber sempre com resultados frustrados. Esta obra-prima satírica inacabada é um retrato hilariante da fragilidade dos conhecimentos, e mais uma implacável denúncia da superficialidade da vida intelectual francesa. 

Ambientado no seculo XVI, O Senhor dos Paços de Ninães, de Camilo Castelo Branco, tem por base um (inevitável?) amor contrariado. Rejeitado pelo pai da noiva, o jovem Rui Gomes de Azevedo deixa o Minho, vem para Lisboa, combate no norte de África em Alcácer Quibir e toma partido por D. António, Prior do Crato, na sucessão ao trono. Desiludido parte para a Índia onde assiste às rapacidades e atrocidades dos seus compatriotas. O espantoso herói assume uma perspetiva que lembra a do Velho do Restelo revelando o lado negro da expansão ultramarina: os vícios e horrores do colonialismo português. 

Luis Almeida d’ Eça – editor / Literatura

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Em arrumações lá por casa encontrei um clássico da literatura americana que me foi oferecido ainda no século passado: The Catcher in the Rye – Uma Agulha no Palheiro na sua primeira tradução para português – de J. D. Salinger. Curioso como o romance, publicado em 1951, continua tão atual nos dias de hoje, abordando questões tipicamente adolescentes como a identidade, a angústia, a confusão, a rebelião e a alienação. O livro relata a expulsão de Holden Caufield de um colégio interno e a sua deambulação pela cidade de Nova Iorque através da inesquecível voz de um adolescente com dificuldade em aceitar o mundo e, acima de tudo, a si próprio.

Outro livro que vai este ano comigo de férias é O Tempo dos Amores Perfeitos, de Tiago Rebelo. Passado no final do século XIX, este romance narra as aventuras de Carlos Montanha, um oficial português, em Angola, nos conturbados anos que se seguiram ao Ultimatum britânico. Ali, apaixona-se por Leonor, uma jovem rebelde e determinada, filha do governador de Luanda, mas conflitos de interesses opõem a família de Leonor ao tenente Montanha. O enquadramento histórico, o despreconceito ideológico e as paixões intensas prometem levar o leitor numa inebriante viagem àquele país africano.

Ana Rita Vaz – Artes

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Depois de ter lido Todos os Nomes (roubado à estante do meu pai), resolvi,  este ano, surrupiar mais um livro de José Saramago para ler nas férias. Desta vez, a minha escolha recaiu sobre As Intermitências da Morte. O livro do Nobel português começa assim: “No dia seguinte ninguém morreu”. Cansada de ser detestada pela Humanidade, a morte decide abandonar as suas funções. Assim, a partir do dia 1 de janeiro, as pessoas simplesmente deixam de morrer. O que, inicialmente, pode parecer uma benção, acaba por revelar-se um verdadeiro pesadelo. A ideia é absolutamente genial e só poderia ter vindo de uma mente brilhante como a de Saramago.
Lembro-me de ver 
O Deus das Pequenas Coisas em grande destaque nas livrarias quando foi lançado. Na altura, não lhe liguei importância, embora a capa, por algum motivo, tenha ficado impressa na minha memória. Anos depois, a ironia do destino trouxe-o até mim. Trata-se da primeira obra da escritora indiana Arundhati Roy, que a levou a ganhar o Booker Prize em 1998. Após vários anos de separação, os gémeos Estha e Rahel reencontram-se. A reunião traz à tona uma série de episódios vividos pela família. Histórias que passam pela fábrica de conservas Paraíso, por amores proibidos, desejos reprimidos, e por tragédias que marcarão para sempre a vida dos dois irmãos.

Filipa Santos – Música

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Em conversa sobre a obra de Valter Hugo Mãe, uma colega de trabalho aconselhou-me O Filho de Mil Homens. A história tem como figura central Crisóstomo, um homem que persegue o sonho de construir uma família. Ao longo da narrativa o seu clã vai crescendo. Um conjunto de pessoas que a vida e o acaso lhe oferecem, mas que não deixam por isso de ser aqueles que Crisóstomo tanto desejou. Vinte capítulos onde amor, paixão, preconceito e solidão são abordados com mestria e criatividade. Pareceu-me, sem dúvida, um livro empolgante para levar na bagagem e saborear nas férias. 

Há muito que queria ler Toni Morrisson, Prémio Nobel da Literatura em 1993. Cruzei-me com Beloved numa livraria e resolvi que ia levá-lo comigo este verão. Baseado na história verídica de uma escrava que preferiu matar os filhos a levá-los de volta à plantação, Beloved, aborda questões fundamentais e hoje tão atuais como: a relação entre negros e brancos, homens e mulheres, passado e presente. A principal personagem, Seth, vive entre a realidade e a fantasia, num mundo onde os mortos ainda se mantêm demasiado vivos. Uma obra indispensável que marca tanto pela beleza, como pela crueldade. Um retrato sublime da História e das consequências devastadores da escravatura.

Ana Figueiredo – Cinema

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Durante uma tempestade de Inverno, o escritor Paul Sheldon sofre um acidente de viação e é salvo por Annie Wilkes, enfermeira psicótica que é a sua fã número 1. Assim é Misery, livro escrito em 1987 por Stephen King, que em 1990 deu origem a um filme homónimo. Este foi o primeiro contacto que tive com a obra do escritor americano. Seguiram-se Corações na AtlântidaÀ espera de um milagre,The Shining… Envoltos em suspense do início ao fim, com um humor negro por vezes demasiado perturbador, os livros de Stephen King inquietam-me, sendo impossível parar de os ler. Considerada pelo próprio autor a sua obra mais ambiciosa, para as férias levo comigo A Torre Negra: O Pistoleiro.

Não sei como tive conhecimento do autor, mas recordo-me da dificuldade inicial em ler o livro. Em causa, A Casa do Sono, de Jonathan Coe. Romance desconcertante, passado numa espécie de sanatório onde tratam doentes com problemas de sono, conta a história de quatro personagens, das quais destaco Sarah, que não consegue distinguir os sonhos da realidade, e Gregory, o seu namorado, que só atinge o orgasmo a pressionar com os dedos os olhos de Sarah. Um livro para reler!

Sara Simões – copy desk

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As férias são, por norma, o período em que aproveito para ler livros que há muito habitam as prateleiras da minha estante. Para este verão decidi escolher dois romances.

A leitura de Gente feliz com lágrimas, de João de Melo, foi-me aconselhada há mais de uma década por um professor da faculdade. No entanto, outras leituras se foram sucedendo e esse livro ali foi ficando à espera da minha predisposição para o ler. Trata-se de uma história triste, que narra a vida de uma família açoriana pobre, por volta dos anos 60, retratando de uma forma crua e até mesmo violenta a dureza da vida daqueles que lutam pelo seu sustento, da infância que passa ao lado das crianças destas famílias. Sei que não será fácil ler este livro, mas os relatos de quem já o leu dão-me alento para fazê-lo.

Quanto a Baudulino, de Umberto Eco, os relatos dos amigos que leram o livro são muito díspares. Para alguns o livro é extraordinário, para outros uma experiência a evitar, mas sendo eu um admirador confesso deste autor, vou-me aventurar pelas cerca de 500 páginas deste romance e logo tirarei as minhas conclusões. Trata-se da história de Baudulino, um mentiroso compulsivo, que graças ao seu talento para a mentira é adotado por Frederico I, o Barba-Ruiva imperador do Sacro Império Romano Germânico, e que conta os seus feitos ao historiador bizantino Nicetas Coniates, numa sequência que vai desde a coroação do imperador Frederico à invasão de Constantinopla pelas cruzadas – operação financiada pelos venezianos que permitiria o controlo do Mediterrâneo.

Marco Mateus – Publicidade

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Todos os títulos referidos neste artigo encontram-se disponíveis nas Bibliotecas Municipais de Lisboa. Consulte o catálogo.

Do encontro entre dois nomes sobejamente conhecidos do teatro português com alunos de três escolas superiores de teatro nasceu Bilingue. O texto original é da autoria de José Maria Vieira Mendes e a encenação é de Pedro Zegre Penim. Aos alunos da ESTC (Lisboa), da ESMAE (Porto) e ESAD (Vigo) coube interpretar, criar o cenário e os figurinos, ou fazer a luz. Bilingue é, assim, o primeiro espetáculo do Projeto NÓS, uma feliz união entre criadores conceituados e finalistas de cursos de teatro de Portugal e da Galiza.

“A nossa abordagem ao projeto foi assumir que o espetáculo não era apenas um exercício para futuros artistas”, sublinha Pedro Zegre Penim. “Apesar de sermos os únicos profissionais, para efeitos do processo criativo, os atores e os técnicos também o são em Bilingue. Pelo menos foi assim que abordamos o desafio de criar este espetáculo.”

Para formar o elenco, Penim e Vieira Mendes entrevistaram inúmeros candidatos, e foi a partir dessas conversas que se procedeu à escolha da equipa artística. “Apesar de não estarmos entre os artistas com quem normalmente trabalhamos, tentámos transportar o nosso habitual processo de trabalho nos Praga para o projeto. O espetáculo final é, também, o resultado do contributo que eles deram.”

O texto de Vieira Mendes é uma espécie de “reflexão sobre o momento atual, partindo da dificuldade, para nós e para os outros, de nos apresentarmos a nós mesmos”. O resultado acaba por ser uma comédia fervilhante sobre comunicação e incomunicabilidade, onde as imagens mais vulgares do quotidiano tropeçam em problemas de cariz filosófico e existencialista e os arquétipos da cultura popular se confrontam com a cultura erudita.

Acontece um ataque e toca a campainha. O Tenente manda prontamente o jovem Rádio à porta. No regresso, uma mensagem do inimigo: “É para saber se a Batalha pode ser por volta das cinco da tarde, Sr. Tenente”. O Aviador desabafa: “Ó porra, à hora do lanche não.”

Este hilariante excerto de uma das cenas iniciais de A Batalha de Não Sei Quê (a lembrar muito a rábula da “guerra” que Raul Solnado imortalizou) conta muito daquilo que motivou Ricardo Neves-Neves a escrever uma comédia que tivesse como pano de fundo a guerra, tema a que, confessa, chegou por mera casualidade.

“Tinha sido desafiado pelo Jorge Silva Melo a escrever uma peça para estrear este ano no espaço dos Artistas Unidos, mas estava sem ideias. Por altura do Natal, em férias, sentado à frente do televisor, percebi que as guerras estavam como nunca, desde que me lembro, na ordem do dia: a Ucrânia, os conflitos em África, os ataques do Estado Islâmico…”, refere.

A quente, numa troca de mensagens com Silva Melo, Neves-Neves anunciou: “Jorge, decidi escrever uma peça sobre uma batalha, mas não sei qual…” Assim nasceu a ideia para um espetáculo sobre “uma guerra de vizinhos”, passada precisamente num quintal. Porque, explica o autor, “não me interessava propriamente apontar o dedo à realidade que aparece na televisão, mas sim falar acerca de absolutamente nada a partir de coisas que existem, de facto, nas nossas vidas.”

Uma marca do teatro de Neves-Neves que, como o próprio refere, “procura o prazer de molhar o pão quando não há molho”, com o toque quase infantil de brincar, como se o teatro pudesse abraçar a banda desenhada, conciliando o inverosímel e o absurso.

“Não me interessava propriamente apontar o dedo à realidade que aparece na televisão, mas sim falar acerca de absolutamente nada a partir de coisas que existem, de facto, nas nossas vidas.”

 

Apesar da peça ser trespassada por um medo real, quase palpável, e o impulso do combate ir dominando os personagens ao longo do tempo, A Batalha de Não Sei Quê é uma comédia onde, à semelhança de outras peças do autor, se elogiam as frivolidades do quotidiano, como os momentos de prazer que se retiram de uma sesta numa tarde quente de verão ou de um piquenique no jardim. Aliás, voltando à cena em que se anuncia a hora da batalha para as cinco da tarde, o lanche pode ser uma dessas doces frivolidades do quotidiano, posta naturalmente em causa quando algo menos normal se introduz no curso dos dias.

“O superficial também é importante e faz parte das nossas vidas. A guerra, tal como a crise económica que vivemos, perturba os pequenos hábitos do quotidiano, retira-nos os grandes e os pequenos prazeres e, acima de tudo, a liberdade. Nesta peça, mais do que falar sobre a guerra, quis sublinhar a importâncias das pequenas coisas que nos fazem bem”, acrescenta.

A Batalha de Não Sei Quê é, assim, um delicioso elogio das superficialidades que acontecem naturalmente nas nossas vidas. Uma brincadeira que, por sinal, até vai acabar em tragédia, ou não fosse o mundo um sítio cada vez mais perigoso, e os prazeres da vida tenderem a tornar-se cada vez mais escassos.

O espetáculo, em cena até 11 de junho, conta com as interpretações de Américo Silva (o Tenente), Andreia Bento (a Freira), José Leite (o Rádio), Vânia Rodrigues (a Espanhola) e o próprio Ricardo Neves-Neves (o Aviador).

Independentemente da intemporalidade do texto, porquê fazer À Espera de Godot agora?

O acontecimento determinante foi a falência do Lehman Brothers, em 2008. Isso e tudo aquilo que se foi desencadeando até aqui, nomeadamente a recente falência de um banco como o Espírito Santo, remeteram-me para um conjunto de reflexões de ordem ontológica, social, ética, moral, e até mesmo espiritual… Penso, por exemplo, no meu pai que, sem ter perdido um cêntimo no Espírito Santo, declinou espiritual e fisicamente. Por uma razão: à semelhança de tantos portugueses, aquela que para ele era uma instituição referencial e ímpar de honra e honestidade traíra-o. Como não dissocio o meu trabalho da realidade do mundo, considerei À espera de Godot a peça onde tudo isto se encontra plasmado como em nenhum outro texto dramático.

De que modo?

O texto de Beckett é a nossa vida. Vladimir e o Estragon, os dois vagabundos em fase terminal que estão no centro da peça, podem ser qualquer um de nós em alguma parte do mundo. A minha leitura da peça é assumidamente política, sem com isso comprometer um questionamento mais geral. Sobretudo porque me importa olhar aquilo que acontece ao ser humano, ao seu relacionamento consigo mesmo e com os outros, perante acontecimentos geradores de processos de correlação, como são estes casos que começaram no universo financeiro e se replicaram sobre a sociedade.

Beckett nunca quis esclarecer quem é Godot, mas houve quem avançasse ser Deus. Na sua leitura, quem é este personagem-mistério por quem se espera?

Godot tem a particularidade de poder representar uma série de coisas mediante a leitura que se faz a peça. Nesta minha abordagem é objetivamente o dinheiro. Tenho bem presente as palavras de um prelado que há umas semanas falava do “deus-dinheiro”, um sentido pejorativo para sublinhar o que substituiu a espiritualidade nos dias de hoje.

Como é que o público vai alcançar este seu ponto de vista sobre a peça?

Utilizando estritamente o texto do Beckett. Está lá tudo. Se bem que, quando foi escrita, em 1948, a peça apontava para alguma esperança, fazendo umas folhas despontar numa árvore no segundo ato, fazendo a lua brilhar sobre a cena… Mas nisso, não acredito! Realisticamente, tudo o que tem acontecido no mundo desde a queda do Muro de Berlim apontou para a ausência de esperança verdadeira. A esperança é hoje uma ilusão, um engodo para continuarmos a chafurdar no lodaçal em que vivemos.

Mas o teatro, tal como outras artes, não poderão contribuir para devolver alguma esperança verdadeira?

Em dezembro passado, na Gulbenkian, Charles Esche, um dos mais distintos curadores mundiais, falava da falência do conceito de “arte pela arte”. Aos criadores artísticos, desafiava-os a criarem alternativas e rematava com uma ideia que partilho: “vivemos tempos assustadores, precisamos de conceitos assustadores”. No modesto papel que me cabe, penso ter alguma coisa a dizer por via do teatro. Por isso, com este À espera da Godot, recuso vender falsas esperanças. Que seja este um meu “conceito assustador”…

Roger Blin, o encenador responsável pela primeira montagem da peça em 1953, disse que À espera de Godot alterava a própria “condição teatral”. Partilha dessa ideia?

Absolutamente. Estou muito habituado a dirigir projetos onde entro também como ator, mas neste, devido a todo um trabalho de pormenor, é especialmente difícil. Por outro lado, o próprio conceito de narrativa dramática não existe aqui. Existem fragmentos narrativos e aquilo que um grande teórico brasileiro designou como “uma espécie de palimpsesto”, ou seja, uma camada superficial que vamos esgravatando, surgindo uma outra, e outra, e ainda mais outra… Podemos dizer que isso também acontece nas peças de Shakespeare, mas aqui há a ausência de narrativa e a história que a peça conta acaba por ser aquela que nós lá queremos colocar.

A conceção plástica do espetáculo está a cargo de Jean-Guy Lecat, um grande cenógrafo que tem a particularidade de ter trabalhado com Beckett. Essa experiência foi relevante na criação do espetáculo?

Quando comecei a desenvolver o projeto, perguntei ao Jean-Guy como é que ele imaginava a reação do Beckett a um olhar como este sobre a peça. Fiquei a saber que o próprio autor questionava alguns elementos, como a existência da árvore ou o pretenso ambiente rural, que não vão existir no nosso espetáculo. Na verdade, o Jean-Guy lembrou-me que o próprio Beckett foi reescrevendo a peça ao longo de vários anos, o que me despertou para a necessidade de recorrer à dramaturgista e tradutora Ana Clara Santos, abandonando assim a versão traduzida pelo José Maria Vieira Mendes. No fundo, as conversas com o Jean-Guy estimularam-me bastante a prosseguir esta perspetiva pessoal sobre o texto.

É um privilégio trabalhar com uma personalidade como o Jean-Guy Lecat?

O Jean-Guy é um ser humano extraordinário, um homem de teatro respeitado em todo o mundo. Imagina-se que não lhe posso pagar o que as companhias norte-americanas ou francesas lhe pagam. Mas isso, para ele, não é um problema. Envolve-se, procura ir ao encontro do que os encenadores querem. É um enorme privilégio ter a experiência de ir trabalhando pontualmente com uma figura desta dimensão.

Pedro Lima e Pedro Laginha foram os atores escolhidos para protagonizarem Estragon e Vladimir. O que motivou esta escolha?

Mediante as minhas leituras recorrentes da peça, que praticamente me acompanha diariamente há mais de um ano, considerei várias hipóteses. Percebi que um dos personagens é mais impetuoso e vibrante, o outro mais calmo e ponderado. Logo, o perfil do ator teria de ter isso em consideração, nomeadamente a velocidade de elocução. O reconhecimento e a ponderação dessas características levaram-me a escolher estes colegas.

Para terminar, acha que o mundo de hoje é mais “absurdo” do que À Espera de Godot?

A peça é sobre a condição humana, e esta continua a ser absurda.

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