“Foi tempo de voltar à terra, à lezíria dos telhais, onde até há poucas décadas, os meninos eram despojados de infância”, confessa Maria João Luís, evocando o Ribatejo, onde foi “nascida e criada”. 150 Milhões de Escravos nasceu desse regresso às origens e da vontade íntima de pegar num romance que faz parte da vida da encenadora (“um livro lá de casa, que por volta dos 10 anos já tinha lido e ouvido ler”): Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes.
Com Mikael de Oliveira (com quem já tinha trabalhado noutra obra do neorrealismo – Finisterra de Carlos de Oliveira), Maria João Luís encontrou um caminho para trazer Esteiros para o palco. Socorrendo-se de A Gaivota, de Tchékhov, encontramos a família burguesa a trocar Treplev por Soeiro, e a percebermos que, no conforto do pequeno mundo das aparências de hoje, continuam a existir “os filhos dos homens que nunca foram meninos” (da dedicatória de Esteiros). E, tragicamente, replicam-se, e replicam-se.
Assim, em palco, encontramos uma família de proprietários rurais, onde pontuam, entre outros, o ambicioso político, a sua irmã, uma atriz em final de carreira, e o filho dela, um dramaturgo que propõe encenar, em homenagem aos trabalhadores da herdade que fazem a vindima, os Esteiros de Soeiro Pereira Gomes. Aos poucos descortinamos, entre o discurso politicamente correto e cínico destes burgueses, que na herdade, em anexos no campo, estão trabalhadores ilegais, de várias nacionalidades, e até crianças. E a maior monstruosidade prepara-se para acontecer quando chega a notícia da morte de um menor em plena jorna de trabalho…
E assim acontece o soco no estômago que 150 Milhões de Escravos reserva para o espectador. “Quis abalar o nosso conforto burguês, por mais que recusemos identificar-nos com estes que vemos em palco. Podemos não ser dos que exploram e matam, mas não nos podemos ilibar de culpas quando sabemos que há crianças a trabalhar em campos de cacau para que tenhamos o chocolate de que tanto gostamos ou em fábricas da Ásia a produzir as roupas com que nos vestimos” refere a encenadora, não deixando de lembrar também que, aqui em Portugal, se exploram crianças e somos confrontados com situações tão inauditas, “como o recente caso das adoções ilegais pela IURD”.
E o título do espetáculo? “Uma denúncia clara”, explica Maria João Luís, apoiando-se nos números da Amnistia Internacional, “que apontam para mais de 152 milhões de menores no mundo vítimas de trabalho infantil”.
Com interpretações de Beatriz Godinho, Catarina Rôlo Salgueiro, Emanuel Arada, Ivo Alexandre, João Saboga, José Leite, Hélder Agapito, Lígia Soares e Teresa Sobral, 150 Milhões de Escravos é uma coprodução do Teatro da Terra com o Teatro da Trindade/INATEL, estando em cena até 28 de janeiro. A partir de 1 de fevereiro, a peça estreia em Ponte de Sôr, no Alto Alentejo.
Comissariada pelo especialista mundial na obra de Miró, Robert Lubar Messeri, Joan Miró: Materialidade e Metamorfose reúne 85 obras (na Casa de Serralves foram expostas menos sete) de pintura, desenho, escultura, colagem e tapeçaria da coleção de obras do mestre catalão (1893-1983).
As peças, propriedade do Estado Português, compreendem um período de seis décadas da carreira de Miró, de 1924 a 1981, e centram-se na natureza física dos suportes utilizados pelo artista e na elaboração dos materiais como fundamento para a sua prática artística. A perceção da variedade de técnicas em que Miró trabalhava é, porventura, um dos maiores aliciantes deste conjunto de obras.
Na Galeria D. Luís I, no Palácio Nacional da Ajuda, podem contemplar-se obras como seis pinturas da conhecida série sobre masonite de 1936, seis tapeçarias de 1972 e 1973, e uma das telas queimadas, de uma série de cinco, criada para a grande retrospetiva do artista catalão no Grand Palais de Paris, em 1974.
A exposição chegou ao Palácio Nacional da Ajuda vinda diretamente de Serralves, no Porto, onde recebeu mais de 240 mil visitantes. Recorde-se que esta coleção tornou-se propriedade do Estado Português quando, em 2008, o Banco Português de Negócios foi nacionalizado.
Ao longo de décadas, o transformismo tem travado uma dura batalha pelo reconhecimento como arte, buscando dissociar-se de estigmas e preconceitos. Sintomático, o fenómeno drag está, mais do que nunca, na moda, como se vai percebendo pelo sucesso planetário de artistas como o norte-americano RuPaul ou, mais recentemente, o brasileiro Pabllo Vittar. Em Lisboa, uma nova geração convive com nomes históricos do transformismo ainda em atividade. O epicentro criativo são as discotecas Finalmente e Trumps, onde noite após noite acontecem espetáculos repletos de música, brilho, glamour e, também, bastante humor. Com rigor e preceito, eles transformaram-se em elas, e eis-nos perante oito divas da noite lisboeta que aceitaram posar para a Agenda Cultural e lançar o repto aos nossos leitores: saia de casa e venha assistir àqueles que são, com toda a certeza, os shows com mais glam da cidade.
[saiba mais sobre as Divas da Noite na edição de janeiro da Agenda Cultural de Lisboa]
Os melhores locais da noite drag
FINALMENTE CLUB
Rua da Palmeira, 38 (ao Príncipe Real)
Aberto desde 1976, tornou-se referência da noite lisboeta por ser a meca dos shows de transformismo. Fernando Santos, diretor artístico e intérprete da diva Deborah Krystall, garante-nos ser “um caso único em Portugal, e mesmo raro a nível internacional, por apresentar espetáculos diários, 365 dias por ano”. Para além dos shows profissionais, o palco do Finalmente reserva as noites de segunda-feira para dar Lugar às Novas, iniciativa responsável por descobrir os novos talentos na arte do transformismo. Atribui anualmente o Troféu Internacional de Artes Cénicas, que já distinguiu Herman José e Rossy de Palma, reconhecida atriz espanhola pela sua participação nos filmes de Pedro Almodovar. Assume-se como um espaço GLS – acrónimo de “gay, lésbico e simpatizantes” – onde todos são especialmente bem-vindos.
TRUMPS CLUB
Rua da Imprensa Nacional, 104 B (ao Príncipe Real)
Garante ser “o melhor clube gay de Lisboa” mas, atenção: o Trumps prima por afirmar-se hetero friendly. Aberto ao público às sextas, sábados e vésperas de feriados, tem duas salas, uma dedicada à música house, outra à pop. Fundada em 1981, esteve para se chamar Frog, mas acabou por resgatar o nome ao famoso clube londrino Tramp. Reza a história que António Variações era uma presença assídua, e ali se terá estreado em palco. As festas temáticas, como a POP University (apelidada já de “melhor festa de Lisboa”, e onde brilham “as meninas da fraternidade Kappa Kappa”, como as nossas convidada Lexa e Becca, e a dj Filha da Mãe) são pontos altos da programação. Regularmente, passam pelo Trumps renomados dj’s convidados que fazem deste espaço de diversão noturna um dos mais badalados da capital.
Não terá sido mera coincidência, mas foi certamente uma escolha feliz surgir em cena, no período de comemoração do 150.º aniversário do Teatro da Trindade, uma peça que tem como protagonista essa figura maior do teatro português de seu nome Francisco Ribeiro (1911-1984), e imortalizada na memória dos portugueses como Ribeirinho. Em 1959, o ator que o cinema imortalizou em O Pai Tirano, dirigiu, no Trindade, e pela primeira vez em Portugal, a peça de Samuel Beckett À Espera de Godot. Alguns anos depois, Ribeirinho voltaria ao controverso e influente texto do autor irlandês: no final dos anos de 1960, novamente no Trindade, e pouco antes da Revolução de Abril, com uma companhia itinerante, em Angola.
Estes três momentos da história serviram Jorge Louraço na construção de uma comédia que traça um paralelo subtil com o texto de Beckett. Ao invés de Godot, encontramos Francisco Ribeiro, outros dois atores e um ponto, à espera de Beckett que, supostamente, deveria assistir a uma récita do espetáculo. Ora, o autor, tal como Godot, nunca aparece e entre os ensaios vai-se gerando um misto de tensão e de desânimo.
Perante situações a roçar o absurdo, que Louraço assume serem como que uma “entrada na cabeça de Ribeirinho”, o espetáculo vai cruzando Godot com alguns momentos dos famosos filmes portugueses dos anos de 1940, nomeadamente O Pai Tirano e O Pátio das Cantigas, estabelecendo uma reflexão sobre as divisões criadas entre o popular e o erudito. O autor e encenador de À espera de Beckettpretende “enfrentar de frente” esta “frágil divisão”, onde a pateada do público convive lado a lado com o aplauso de uma certa elite bem-pensante. E, socorre-se daquela ideia de que À espera de Godot é composto das memórias de Beckett do music hall irlandês, tal como as históricas encenações de Godot por Ribeirinho são imbuídas da sua passagem pelo cinema popular ou pelo teatro de revista.
Por isso, Jorge Louraço vê neste seu espetáculo uma tomada de posição contra a elitização da cultura, particularmente do teatro, usando uma figura tão importante no teatro português como foi Ribeirinho para o expor. Até porque se Beckett revolucionou a linguagem do teatro, Francisco Ribeiro mudou o teatro em Portugal (e não foi apenas por ter encenado Beckett quando ninguém o fazia).
À espera de Godot ou Quaquaquaqua conta com interpretações de Estêvão Antunes, Mário Moutinho, Óscar Silva e Pedro Diogo, no papel de Ribeirinho. O espetáculo está em cena, na sala estúdio do Teatro da Trindade, até 17 de dezembro.
Começou o processo do filme precisamente com 21 anos, a idade das personagens. A sua vida nessa altura foi o ponto de partida para o filme?
Queria sobretudo mudar a forma como fazia filmes. Na escola tinha feito filmes muito estilizados, desligados da realidade. Quando terminei o curso quis partir para uma coisa mais próxima da realidade. Por outro lado, comecei a interessar-me muito sobre o trabalho de ator. Sabia que podia ter atores da minha idade a trabalhar comigo, o que acabou por influenciar a lógica do filme. Também pensei sobre o que poderia retirar da vida real que tivesse potencial em termos cinematográficos. Aquele limbo que estávamos atravessar era uma coisa bonita de se filmar, existiam muitos picos emocionais, fazíamos grandes tempestades de coisas que não tinham assim tanta relevância. Depois havia uma série de experiências nomeadamente ligadas à noite, como as luzes e a música que podiam funcionar em sala e que não estava habituado a ver no cinema. O ponto de partida nunca foi retratar a minha vida, não é um trabalho autobiográfico. Porém, acabei por recorrer a vivências pelas quais tinha passado – o personagem principal vem como eu do interior, e descobre a mesma Lisboa que eu fui descobrindo – porque pretendia trabalhar a realidade através de um lado emocional e de uma lógica de comportamentos que levam a uma coerência realista.
Ao mesmo tempo que trabalhava no filme foi criada a produtora Videolotion. Como foi trabalhar em dois projetos tão importantes ao mesmo tempo e com poucos meios?
A Videolotion surgiu logo a seguir a ter acabado a escola. Era um período de indefinição em que não estávamos a conseguir arranjar trabalho, por isso eu a Marta Ribeiro e a Joana Peralta decidimos criar uma produtora, nessa altura mais virada para a publicidade. Entretanto estava menos ativo na produtora porque andava a trabalhar no filme. Fazer o filme foi uma loucura, é algo que nos consome todo o tempo e energia. Como não tinha dinheiro contava com a boa vontade de toda gente: a escola emprestou material, um amigo emprestou a câmara, a equipa não era paga… Estamos constantemente a resolver problemas e a tentar que as coisas resultem. Mas ao mesmo tempo estamos a fazer o que gostamos, isso é gratificante.
O filme pretende ser o retrato de uma geração?
É o retrato de um grupo que durante aquele período (um Verão) vive sem responsabilidades. O personagem principal é um miúdo com uma vida normal, que vai experienciando diferentes dinâmicas de grupo. Embora comece a frequentar festas à noite, ele não é um raver, é alguém que se deixa ir. É o retrato de um nicho, há outras realidades.
Falou-se muito em hedonismo a propósito do filme. Para além do “beber, fumar e curtir a vida” não se sente uma insatisfação permanente e mesmo uma violência latente nesses jovens?
Não há uma definição em nenhum daqueles personagens. Estão sempre em busca de preencher alguma coisa, o lado hedonista traz muito isso. O “beber, fumar e curtir a vida” dá a ideia de procurar um sentido. As saídas à noite e a violência associada a isso, as drogas e o álcool são uma forma de preencher esse vazio. Estes jovens sentem-se órfãos porque grande parte da vida é gerida por uma espécie de pai: as instituições académicas. Quando terminam o curso têm necessidade de preencher essa ausência, o que acaba por nunca acontecer. No caso do Chico, o personagem principal, isso revela-se ao nível das relações amorosas, ele tenta encontrar satisfação em cada envolvimento, mas no fim as coisas nunca correm bem.
Todos os atores que trabalham no filme são desconhecidos, com exceção de Nuno Melo que tem uma pequena participação. Como foi feito o casting?
Comecei por pensar nas personagens. A principal era o Chico, depois pensei quem seriam os amigos dele, os amigos dos amigos, os conhecidos, com quem é que ele se cruzaria. Tentei criar um universo extenso, uma geografia de pessoas. Comecei com o Chico, embora este fosse a única personagem para a qual não tinha ator. Todos os outros personagens eram atores que eu já conhecia da escola. Como os conhecia pessoalmente, as personagens eram criadas à luz daquilo que eles realmente eram. Por isso durante o casting se determinado ator não podia trabalhar o personagem acabava por desaparecer, e surgia um novo personagem.
Embora este trabalho seja ficção há também um lado documental. Foi intencional este cruzamento ou algo que aconteceu naturalmente?
O filme é uma ficção, a intenção nunca foi que o filme tivesse um aspeto documental. Talvez por ter sido filmado com câmara ao ombro possa dar essa impressão, mas esse recurso deveu-se à fragilidade de produção. Gosto de ver cinema no sentido em que todos os filmes são quase um falso documentário, não do ponto de vista formal de como se filma, mas daquilo que está à frente da câmara que não pode parecer encenado. Eu filmei aquilo que estava a acontecer, mas também tinha controlo sobre o que estava a filmar. Aliás há vários planos coreografados no filme.
A música é um dos elementos mais importantes do filme. A banda sonora foi trabalhada exclusivamente para o filme?
A banda sonora não foi feita propositadamente para o filme. A música tem um papel muito importante no cinema e, como qualquer outra pessoa, a minha relação com a música é muito emocional. Por exemplo, a forma como a música é utilizada no cinema mainstream não me agrada, é uma coisa meramente decorativa. Antigamente com os leitmotivs a música tinha um papel muito mais forte. A música tem de trazer algo de novo, tem que entrar de certa forma em conflito com a imagem, tem de existir uma dialética entre música e imagem. Neste filme procurei devolver à música um sentido narrativo.
O filme foi muito apreciado pela crítica e teve estreia mundial em Locarno, onde recebeu uma menção especial. Que impacto teve a crítica e a participação em festivais de cinema?
Do ponto de vista profissional pode abrir portas porque os festivais conferem aos cineastas um determinado prestígio. Contudo, eu não fiz este filme para ganhar uma menção honrosa. Caso o filme estreie numa única sala em Lisboa, será uma frustração porque sinto que não será visto por muita gente. Com as dificuldades que os jovens têm, em Portugal, para fazer cinema acaba por ser uma luta inglória. Ter o filme em sala é a parte mais importante, é aqui que ele chega ao público. Os festivais não devem ser a meta de nenhum filme.
Quase inteiramente despojado de palavra, Devíamos ter parado – título resgatado de À espera de Godot de Beckett, sem que deixe de encerrar uma “provocação” – é uma viagem aos bastidores do teatro e, formalmente, uma quase antítese dos espetáculos que integraram o ciclo de reposições que a companhia, dirigida por Miguel Seabra e Natália Luiza, apresentou ao longo do ano.
Os seis atores em cena são desafiados a seguir as coordenadas do Meridional – “estabelecidas na memória de 25 anos de afetos”, como refere o encenador Miguel Seabra, lembrando cada ator, cada técnico, cada artista e, claro, o público – e, simultaneamente, a combiná-las com as suas enquanto indivíduos e artistas. E nas tábuas do palco, com cada espectador quase em cena, surge um poema às vezes triste, de uma imensa solidão, repleto ora de paixão ora de dor, mesmo quando desponta o humor.
Poderá parecer uma peça “pouco festiva” para assinalar um quarto de século de teatro, mas Seabra prefere encará-la como uma obra “melancólica e sem medo da tristeza”, que sublinha o trabalho invisível do ator para lá dos olhares do público. Ali o vemos, nos corpos de Margarida Gonçalves, Miguel Damião, Mónica Garnel, Paulo Pinto, Rosinda Costa e Telmo Mendes, vestindo e despindo personagens “para contar histórias ao seu semelhante, entre o maravilhoso e o efémero”, ou não fosse o teatro a metáfora de todas as vidas.
A sua formação é em psicologia clínica e psicanálise. Como é que a arte surge no seu percurso?
Na minha família, fui a primeira que teve a grande oportunidade de estudar, e estudar significava “fazer algo sério”, a arte era vista como uma paixão, que se alivia no tempo livre. E de todas as coisas “sérias” o que mais me apaixonava era a psicanálise, por isso a escolhi como o meu começo. Mas esta escolha não foi por acaso, pois a psicanálise trabalha com o inconsciente, assim como a arte. Trabalha com imagens, com símbolos, metáforas e interpretações da realidade. Por isso esta passagem foi muito natural. Logo depois de concluir os meus estudos, comecei por trabalhar com ‘sobreviventes de guerra’, e com temas ligadas à memória, trauma, pós-colonialismo. Rapidamente estes temas passaram a ser escritos, depois encenados, depois visualizados, e o meu trabalho tornou-se cada vez mais experimental e artístico. Penso que a arte é como um rio que percorre muitos caminhos, mas acaba sempre por desaguar nas águas do mar. Sinto-me um pouco como um rio que passou por vários sítios até chegar ao mar.
Que influência tem a psicologia na sua obra?
A psicanálise é muito presente no meu trabalho, não pelo facto de eu ter estudado, mas muito mais porque houve uma série de artistas e autores importantíssimos na minha carreira que me inspiraram e, acima de tudo, me deram uma linguagem psicanalítica e visual para lidar com a minha história – o que não aconteceu com o curriculum da universidade. Autores como Frantz Fanon, Toni Morrison, Bell Hooks, W.E.B. du Bois, Audre Lord, e os seus livros que foram verdadeiras bíblias para mim, e que nunca encontrei nas bibliotecas da universidade, mas que lia repetidamente em casa nos originais em francês e inglês. Estes tinham uma abordagem não só analítica, mas extremamente visual e metafórica da realidade pós-colonial, que me encantou e me definiu como artista.
Como é que as suas leituras encenadas, as suas performances e as suas instalações de vídeo e som ganham vida?
Julgo que a escrita é o começo de todos os meus trabalhos. Trabalhar com texto, com palavras, com histórias, e construir narrativas, é sempre a primeira fase do meu trabalho. Os meus textos têm uma textura híbrida, são simultaneamente subjetivos, políticos, teóricos, mas também poéticos. E é exatamente esta forma de conhecimento que me interessa tornar vivido, emocional e corporal – por isso eu tenho chamado o meu trabalho de Performing Knowledge. Esta é a segunda fase do meu trabalho e a que melhor define aquilo que faço, que é dar corpo, som, imagem, movimento aos meus textos. Quando passo a esta segunda fase, não estou particularmente interessada em trabalhar com um único formato, como filme, ou performance, ou teatro, mas sim em contar histórias. Elas podem aparecer em múltiplos e híbridos formatos: numa leitura encenada em que os atores dão voz às histórias como em Plantation Memories (em ambas exposições); ou numa instalação de vídeo como The Desire Project em que o próprio texto se torna a imagem e a música se torna a voz (no MAAT); ou Illusions em que a história de Narciso e Eco é coreografada e ao mesmo tempo narrada num segundo ecrã, juntando filme e performance numa instalação (que foi mostrada este ano na Documenta 14 em Kassel, e especialmente reconfigurada para a exposição da Avenida da Índia). Cada tema e cada história precisa da sua própria linguagem e formato para ser contada, e é muito excitante “escutar” como uma história quer ser contada.
O seu trabalho tem sublinhado a urgência de uma descolonização mental que não está cumprida, apesar das descolonizações formais. Pode explicar?
A descolonização mental parece-me ser a mais urgente, mas também a mais complexa, pois tem a ver com a criação de uma nova linguagem, não só gráfica, mas também visual. E digo isto por uma razão muito simples: toda a linguagem colonial, e a linguagem do racismo, é discursiva. Ou seja, o racismo não é algo biológico, mas discursivo, funciona através de uma associação de palavras e de imagens, que não são reais, mas que se tornam equivalentes através de uma associação. Por exemplo, um tema atual como a imigração. Quando se fala de imigração fala-se geralmente de “imigrantes ilegais”, associação entre duas palavras não equivalentes, mas que se tornam, através de um processo associativo de palavras. Palavras que, por sua vez, criam imagens: ser ilegal, significa ser ilegítimo; ilegítimo significa ser contra a lei; ser contra a lei significa ser criminoso; e os criminosos metem medo. O discurso sobre a imigração é um discurso de medo, e se perguntarmos em geral o que a maioria das pessoas pensam sobre os “imigrantes” , elas responderão “que têm medo”. Estas associações são registadas pelo nosso inconsciente, e reproduzem-se através de um discurso de palavras e de imagens que não são reais, mas que se tornam credíveis. Por isso a arte, assim como a literatura, têm um papel tão importante em criar novas associações, novas palavras e imagens.
Na Galeria Avenida da Índia expõe, até março, The Most Beautiful Language. O que é que essa língua tão bela tem para nos dizer?
No catálogo desta exposição, a minha curadora Gabi Ngcobo escreveu um texto lindíssimo que conta a história de uma senhora que, nos anos 50, escreveu uma carta à Galeria Nacional do Zimbabwe (na altura Rhodesia), a expressar a sua irritação pelo facto dos “homens africanos” trabalharem dentro dos museus, a cuidar das peças de arte. Ela estava especialmente irritada com som da língua deles, que conversavam na língua Shona. Para a Sra. Brown, o nome dela, o som desta língua nos espaços do museu perturbava profundamente as suas expectativas de como arte deveria ser vivenciada. Na carta, ela sugere então que os “africanos” sejam removidos ou que não possam mais falar as “suas” línguas dentro da galeria. Isso, ela insistiu, manteria a ordem de como uma exposição e a arte deveriam ser vivenciadas. Esta história verdadeira revela a incapacidade das instituições artísticas, culturais, mas também académicas, lidarem não só com a realidade pós-colonial, mas também com os seus sujeitos, com as suas línguas, narrativas, imagens e conhecimentos. Durante todos estes anos tenho mostrado o meu trabalho internacionalmente, nas mais distintas casas, mas é a primeira vez na minha carreira que recebo um convite de Portugal onde nasci e cresci. Nas minhas viagens de trabalho quando digo que sou portuguesa, respondem-me com entusiasmo que o português é “the most beautiful language”. Esta é uma situação irónica, que eu queria usar como título para esta primeira exposição individual em Portugal, e que levanta duas questões: quais os corpos que podem representar estalíngua tão bela? E que línguas é que estes corpos falam? Como na história acima, o título The Most Beautiful Language brinca com a fantasia de que as línguas dominantes possuem uma beleza que fica acima das línguas que continuam a ser reprimidas e apagadas através dos processos de colonização. E, por outro lado. o título alude à importância de criar novas línguas artísticas, e que estas possam ser ouvidas, visualizadas e vivenciadas, em espaços como museus e galerias. Para mim, esta exposição está recheada de novas línguas, línguas que muitos de nós nunca pudemos falar antes.
Em paralelo, no MAAT está patente a exposição Secrets to Tell, onde o assunto é, uma vez mais, a palavra. Que importância tem ela para si?
Nesta exposição a palavra torna-se literalmente visível, pois a peça central será a instalação de vídeo The Desire Project, que foi originalmente criada para a Bienal de São Paulo, em 2016. Esta instalação é composta por três canais e contada em três atos, e a sua particularidade é que a palavra é usada como o único elemento visual. Como ponto de partida tive a história da Escrava Anastácia, uma figura feminina que durante a escravatura foi obrigada a usar uma mordaça e impedida de falar, como era habitual. Esta figura tem sido uma grande inspiração no meu trabalho, pois levanta questões como: Quem pode falar? Quem é que não pode? E, acima de tudo, sobre o que é que se pode falar? Para abordar estas questões, que ainda são atuais, usei o texto como única imagem visual que se movimenta para narrar uma história. Da mesma forma escolhi usar a música como um elemento de narração. Para isso, em colaboração com Moses Leo, que compôs a música, trabalhamos durante semanas no texto e na percussão até que ambos se tornassem um e respirassem como um corpo vivo. A música, assim como a palavra, torna-se central neste trabalho, e ambos aparecem como uma nova linguagem para narrar uma história silenciada.
O seu nome é um dos mais requisitados nos circuitos internacionais de arte contemporânea. Como é que só agora surgiu a oportunidade de expor individualmente em Portugal?
Esta é a resposta mais simples, começa com R e acaba com O, e chama-se racismo. Há um racismo institucionalizado e estrutural que nos acompanha diariamente e que consegue construir uma normalidade, em que as pessoas negras no nosso país são sistematicamente excluídas das estruturas e das instituições, sem que isso seja necessariamente visto como anormal. É como ver um filme dos anos 50, em que quase todos os personagens são homens, sem que isso incomode os espectadores. É criada uma normalidade que não é normal. O racismo tem essa capacidade de tornar o anormal ou o incoerente, em algo normal. E não há nada mais violento do que lidar com a incoerência. É incoerente quando artistas e intelectuais negros são reconhecidos internacionalmente, mas não podem fazer parte do cânone nacional. E aqui temos que perguntar de novo: quais os corpos que podem representar a língua mais bela; e quais as línguas é que estes corpos falam? Estes convites são importantíssimos, pois mostram que estamos prontos para criar uma nova normalidade, não só para mim, mas para muitos outros artistas que incoerentemente têm sido colocados à margem dos museus e das galerias nacionais. E isso é maravilhoso…
Poderá parecer insólito, mas há uma mulher que coleciona pessoas. E, com elas, afetos, emoções, gestos e memórias. Ela que, confessa, nunca ter sido uma colecionadora de objetos. Mas, como é que Raquel André se propõe colecionar aquilo que é impossível guardar?
“A ideia surgiu quando fui viver para o Rio de Janeiro e me vi enquanto imigrante, mulher e artista. Comecei a questionar de que modo se consegue entrar na casa do outro; e como é que, por vezes, surge uma intimidade súbita com alguém que nos é, até aí, estranho e, com outras pessoas, que fazem parte do nosso dia-a-dia, não conseguimos sequer estabelecer um mínimo de cumplicidade.”
Assim que se iniciou a Coleção de Amantes, um exercício sobre afetos e partilhas a dois, partindo de encontros da artista com pessoas de várias nacionalidades, géneros e idades, onde uma intimidade ficcionada surge registada em fotografia. Na versão que Raquel apresenta, a partir de 15 de novembro, na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, a coleção terá por base 137 amantes (muitos mais do que a versão apresentada naquele mesmo espaço, em 2015). Em cena, Raquel detalha o conteúdo desses relacionamentos, onde a memória é ampliada por imagens fugazes, frames do momento que “criam narrativas e relacionam mundos e universos entre pessoas.”
Longe de estar fechada a de Amantes (a artista aponta para um trabalho a desenvolver ao longo de 10 anos), Raquel começou a sua Coleção de Colecionadores no Minho, mas já juntou pessoas que colecionam objetos, dos Açores a Berlim. Se, uma vez mais, aqui se procura “guardar o outro”, é através do objeto colecionado que se conta a história. Enquanto na Coleção de Amantes, a fotografia é o registo primordial, na de colecionadores são os registos em vídeo, decorrentes das entrevistas que Raquel conduziu, a sustentar a narrativa para, “através das coleções de discos, livros, cartas ou moedas, chegarmos ao outro.”
Em diálogo uma com a outra, as coleções de Raquel André oferecem uma experiência singular, na qual o espetador (também ele, juntamente com artistas, “objeto impossível” de futuras coleções) “se identifica, quer por via da memória e dos afetos, quer pela relação que constrói com o mundo”. É ficção? É realidade? Ambas, certamente. Teatro, sobretudo.
Como surgiu a ideia de criar um álbum sobre o Terramoto de 1755?
Fernando Ribeiro: Quando dei o Terramoto de 1755 na escola, achei logo que era muito mais do que um desastre natural, foi algo que teve bastante impacto na vida dos portugueses da época. Na altura fiz um trabalho, calhou-me a mim ser o Marquês de Pombal. Essa experiência escolar foi muito importante, foi um assunto que sempre me fascinou. Este ano, a nossa editora (Alma Mater) desafiou-nos a fazer um DVD (que está gravado e vai sair para o ano que vem), e pediram-nos para fazermos um EP. Apresentei o conceito e todos fomos unânimes em dizer que isto merecia um álbum com vida própria, uma coisa importante. Apesar de ser um álbum conceptual, histórico, tem muito a ver com a natureza dos Moonspell. Os músicos devem ser assim, entusiasmar-se pelas ideias musicais, conceptuais. Tínhamos um conceito interessante, muito pouco explorado, é um bocadinho um vazio que tentámos preencher.
Este é o vosso primeiro trabalho em português. Foi um desafio?
FR: Enquanto autor das letras uso um pequeno truque. Este álbum foi pensado em português, é sobre um evento nacional e eu queria usar expressões que não ficariam bem em inglês. Quando pensamos em português e traduzimos não funciona. Se pensarmos nas coisas no idioma que as vai servir é mais interessante. Assumi um personagem bastante aflito, que fala com os vivos, com os mortos, com Deus, com o Diabo… Este disco é um princípio, acho que podem surgir aqui uns novos Moonspell dedicados à História de Portugal, que é longa e que tem aspetos menos luminosos, mais dramáticos, mas que também são momentos de progresso, como aconteceu em Lisboa. O renascimento da cidade, tudo o que se fez, não ter deixado a Igreja monopolizar a tragédia, de se ter enterrado os mortos e tratado dos vivos, que não é só uma frase poética e simbólica, foi mesmo o que aconteceu.
Ricardo: Também gosto de pensar na atualidade da mensagem. Estamos a chegar a uma clivagem na forma como as sociedades funcionam, como as políticas são feitas, precisamos de algum corte epistemológico. O português facilitou-nos muito, porque em termos de sentimento temos uma interpretação das letras mais profunda, percebemos melhor os trocadilhos, que é algo extremamente estimulante. Musicalmente, o português tem um cariz rítmico através das sílabas, que é algo que conseguimos controlar melhor. A nossa língua consegue ser bela, mas consegue ser bruta também. O dramatismo e brutalidade de um evento desta natureza casam muito bem com a língua portuguesa.
De certa forma, o sofrimento e agonia relacionados com o Terramoto têm tudo a ver com o género de música que fazem. Concordam?
FR: As pessoas mencionam isso, mas o nosso estilo de música pauta-se pela ambiguidade. Não considero que seja um disco só sobre a morte ou um desastre natural. Há uma parte muito importante das letras que fala da atitude, do renascimento, da fibra, da Inquisição que queimava os hegeres… Toda esta revolução nasceu de uma mortandade que não foi bem calculada porque na altura era difícil, mas que conduziu a uma reação. Em Portugal é coisa que não vemos acontecer muitas vezes. Musicalmente teria que ser um disco pesado porque estamos a falar de um terramoto. Também quisemos criar uma atmosfera sacro-profana com a utilização dos coros e da parte percussiva, porque Lisboa no final do séc. XVIII era um bocadinho assim. Acho que é um dos nossos melhores álbuns no sentido de veincular uma mensagem e o uso do português foi muito importante. Parece que tudo está bastante compacto e que não há desvios do que o álbum quer dizer. É uma viagem ao dia 1 de novembro de 1755, dividida entre momentos de muita tensão e alguns momentos mais suaves, que eram aqueles em que a terra não tremia e as pessoas pensavam que já tinha acabado o pesadelo.
Ao ouvir o álbum é impossível não tentar visualizar o que se passou. Também era essa a vossa ideia, criar uma espécie de banda sonora?
FR: Essa era toda a ideia. Tentamos sempre fazer isso nos nossos discos, é algo essencial na nossa música. É uma oportunidade para transportarmos as pessoas para um acontecimento histórico. Quisemos apostar na experiência que o ouvinte tem. Posso ouvir música como entretenimento, mas aquela que me fica é a que me transporta para algum lado, que me faz aprender alguma coisa nova. Quem quiser ouvir este disco tem que ir procurar. Criámos aqui uma pequena armadilha: não dá para ouvir este disco sem uma contextualização.
Um dos temas conta com a participação do Paulo Bragança. Como foi trabalhar com um músico de um universo tão diferente do vosso?
FR: Tínhamos uma música, In Tremor Dei, e comentei com a banda que ali ficava bem a voz do Paulo Bragança. O problema é que ninguém sabia dele, estava incontactável, o que também contribuiu para esta aura e para o desafio que era tê-lo a cantar. Para resumir: ele escreveu-nos, fomos tocar a Dublin, onde ele esteve vários anos, ele não chegou a ir ao nosso concerto mas lá conseguimos estabelecer contacto e ele teve todo o gosto em participar. Teceu-nos os maiores elogios, conhecia bem o nosso trabalho. Com a participação do Paulo, queríamos tudo aquilo que hoje em dia o fado dá cada vez menos: melancolia, dor, aquele sofrimento na voz que é pungente e ao mesmo tempo angélico. Era um registo que tinha tudo a ver. O sucesso mede-se por muitas coisas, mas acho que foi um grande sucesso para nós termos o Paulo Bragança a cantar no nosso disco.
São uma das bandas portuguesas mais internacionais. O facto de este disco ser cantado em português pode ser uma barreira?
Mike: Muitos dos nossos fãs já estão habituados ao português, uma das nossas músicas mais conhecidas é o Alma Mater. Também há muitos emigrantes nos nossos concertos, que ficam muito orgulhosos quando podem cantar na sua língua. É um grande orgulho e sei que os fãs vão ficar entusiasmados com este álbum.
FR: Temos tido muito boas reações de pessoas lá fora que já ouviram o álbum e a língua não tem sido um problema, pelo contrário, até funciona como chamariz.
Ricardo: Também temos alguma preocupação em utilizar palavras que sejam, de alguma forma, internacionais. Claro que a questão da língua me preocupa, mas estou mais curioso do que preocupado.
O que estão a preparar para os concertos de dias 30 e 31 de outubro?
FR: Quando penso no álbum vem-me logo à cabeça a palavra ‘teatro’. Tem de ser um espetáculo teatral sem deixar de ser um concerto de Rock’n’Roll. Tem que passar esse dramatismo, por isso optámos por ir para uma sala mais pequena e intimista. Estamos a pensar numa solução cénica para isso. Depois de levarmos este disco em tourneé, queremos tocá-lo novamente em Lisboa, aí já com orquestra e com coro, no Terreiro do Paço, na zona do impacto. Era um grande desafio para nós, um grande teste para ver quem é que aparecia e quem é que ainda tem aquele medo e superstição acerca dos terramotos em Lisboa.
Já é tradição vossa atuar no Halloween. Têm uma ligação especial a esta data?
FR: É uma data simbólica, de celebração do medo, de mudança de estação, tem todas essas raízes pagãs. Hoje em dia é um feriado popular e comercial. No contexto de uma banda rock e metal é uma noite perfeita para se tocar.
Ricardo: E é também a data de aniversário do terramoto, dia 1 de novembro, dia de Todos-os-Santos.
Têm acompanhado o que se faz no heavy-metal em Portugal?
FR: Sempre tivémos uma relação de amor/ódio com o heavy-metal português, mas é um estilo que queremos que cresça, e conseguimos ter um percurso que nos permitiu libertar alguns preconceitos que algumas bandas ainda têm. Têm aparecido bandas muito curiosas e que se têm destacado: os Rasgo, os Cruz de Ferro, os Sinistro (que tocaram connosco no Reverence Valada e que estão a dar-se muito bem internacionalmente) e os Process of Guilt, na mesma onda. Temos concertos, temos festivais, mas, para ser muito sincero, acho que ainda nos falta um pouco de atitude e de respeito. Nesse sentido, acho que os Moonspell estão a abrir algumas portas. Queremos que os fãs de heavy-metal português ouçam mais metal português de qualidade. Acho que estamos destinados, quando a banda terminar ou tivermos mais tempo, a ser os representantes, os editores, os distribuidores do heavy-metal português.
Ricardo: Aqui há dez anos começaram a aparecer uma série de bandas, quer no metal quer noutros genéros, com bons músicos e boa atitude em palco, mas cujas músicas são muito parecidas com o que se faz lá fora. Agora começam a aparecer bandas que têm personalidade e que transportam o ser português para o heavy-metal. Estão a aparecer bandas que artisticamente têm mais pertinência, não são cópias do que se faz lá fora.
Em princípios dos anos de 1970, o escritor e ensaísta britânico John Berger (recentemente falecido) assinou, para a BBC, uma minissérie sobre arte que viria a produzir um obra de referência para inúmeros críticos e historiadores de arte. Foi precisamente na “dissecação da obra de arte proposta por Berger” em Ways of seeing (Modos de Ver, na edição portuguesa), que a atriz Teresa Coutinho se inspirou para, com Guilherme Gomes, criar Ways of Looking, espetáculo que pode ser visto, de 29 de setembro a 1 de outubro, no Teatro Nacional D. Maria II.
“Quando comecei a ler o livro não tive, no imediato, a sensação de encontrar ali algo suscetível de reflexão teatral”, explica a atriz. Porém, “aquela ideia veiculada por Berger de que a câmara tinha vindo a desvirtuar o contexto da obra de arte ao selecionar partes, ao ampliar pormenores, etc., despertou algumas premissas que pudessem conduzir ao teatro”. Ou seja, “através da luz, sobretudo, nós conseguimos, num palco, manipular, controlar, ampliar e até desvirtuar o olhar do espetador.”
É esse jogo que Teresa Coutinho e Guilherme Gomes propõem a partir de uma espécie de coreografia descortinada, quase inteiramente, e só, por um foco de luz. É essa luz que guia o olhar do espetador até o encontrar e, de certo modo, fazer dele, espetador, parte do objeto artístico. Mas, não é só: àquela coreografia vão sendo acrescentadas camadas (música, depois texto) e a leitura que fazemos do que vimos até ao momento vai sendo constantemente alterada.
Para o final, os artistas guardam uma última surpresa, recorrendo, como sublinha Guilherme Gomes, a um trecho de “uma peça icónica e reconhecível” que, sendo uma cena de intimidade, convoca uma vez mais o olhar do espetador a fazer parte dela.
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