Foi a pesquisa para o filme Understory (2019), sobre o cacau, que inspirou a realização de Banzo. Porquê este interesse pelo cacau?
No meu processo de criação coloco-me sempre num caminho, que às vezes é mesmo um caminho físico, de pesquisa. Coloco-me numa posição onde as histórias me encontram. Durante o Understory, onde escolhi pesquisar sobre a planta de cacau, passei muito tempo em São Tomé. Comecei pela ligação do cacau com Portugal, interessei-me pelas questões da mão-de-obra, da posição inglesa em 1905 relativa a essa mão-de-obra, e fui a muitos arquivos em Inglaterra, Portugal e São Tomé. Aí, aquele local, com as ruínas das roças, é uma espécie de portal para um passado que parece muito distante, mas não é.
E como é que isso levou a esta outra história?
O tempo colonial, as plantações, a escravatura, estão muito presentes na memória das pessoas de São Tomé e fazem tanto parte de uma paisagem interior como exterior. Depois, nos arquivos tive a possibilidade de aceder a coisas que não entram na historiografia oficial. Temos em Portugal um arquivo de uma roça gigantesca que pertencia a Francisco Mantero e onde estavam guardados pequenos bilhetes dos capatazes e também, algo muito interessante, os relatórios médicos, uma coisa muito quantitativa, que documentava as doenças, as pessoas que morriam, as que saíam, as que entravam. Chamou-me a atenção a existência daqueles hospitais e de haver um esforço tão grande na manutenção da saúde daquelas pessoas, que acontecia não só para ser civilizacional, mas tinha também um lado mais sinistro, por ser uma espécie de “garagem” para manter a mão de obra bem oleada. Daí surgiu a ideia de criar qualquer coisa baseada nisso. Primeiro, deparei-me com a ideia de nostalgia, e depois com a palavra “banzo”, que estava associada à forma como aquela ilha está suspensa e à ideia de suicídio como uma coisa que humanizava, e nessa altura era inimaginável que as pessoas africanas tivessem essa agência sobre si próprias.
De que forma filmar em São Tomé e Príncipe foi inspirador para a narrativa?
Os filmes partem sempre de um sítio e acho que este local era essencial. A Sara Carinhas (que interpreta a Luísa, mulher do administrador da plantação) referiu uma coisa curiosa num podcast: disse que filmar em São Tomé e Príncipe era como se entrássemos no filme naquela época e nunca saíssemos de lá. É por isso que gosto muito de experimentar os espaços, não só como inspiração, mas também porque podem trazer alguma coisa para o que é filmado, para aquilo que se capta na altura.
O sofrimento dos escravos leva-os, compreensivelmente, a desistir de viver. Afonso, médico ocidental e protagonista, percebe a origem do problema, mas pouco consegue fazer. Porque decidiu contar a história da perspetiva deste homem que tem como missão curar os escravos?
A história é essa mesmo: um homem contemporâneo, branco, encurralado numa situação. Porque o sistema colonial enredava toda a gente. Não sei se quantitativamente podemos medir o sofrimento destas coisas, e, claro, há moralmente uma grande responsabilidade da parte de quem explora. Há muitas zonas cinzentas, não é preto e branco, porque há várias pessoas que estão encurraladas. Para mim, contar a história do ponto de vista de um escravo, por exemplo, não faz sentido porque não me sinto sequer com legitimidade para tal. Pode ser contada, mas não por mim. Este personagem branco também não foi criado com a intenção de ser um white savior, porque as pessoas na realidade não vão para lado nenhum, são enviadas por “nós” brancos para um sítio onde ficam para sempre, aquele barco que os leva e onde ainda hoje andam à deriva. Acho que, a haver um white savior, é a Luísa, a mulher do administrador…
É certo que a Luísa parece-nos até certo ponto incomodada com a crueldade da vida no local, mas, quando regressa a Lisboa, leva consigo uma das serviçais negras, obrigando-a a abandonar os filhos menores. Quando pensou nesta personagem tinha como objetivo revelar esta ambiguidade, onde até os que parecem bons são capazes de atos extremamente cruéis?
Sim, acho que no filme há um marco que tem a ver com a própria narrativa. Inicialmente vimo-la só como uma senhorita que percebe haver sofrimento, que há violência, que não quer que se fale de determinada maneira porque é cruel, mas mais tarde vai-se revelando, demonstrando aquilo que, no fundo, é. Por isso afirmei que ela é o típico white savior. Ela acha que está a fazer o bem, mas quase tudo lhe escapa. Se é uma personagem cruel? É cruel, mas é também de uma ambiguidade total e era isso que queria explorar: a falta de sensibilidade. Não se pode dizer que ela realmente queira fazer mal, bater ou chicotear… Acho que o filme tenta colocar-nos nesse lugar que é muito incómodo, porque quando vemos pessoas a chicotear outras, a cometerem atos de violência, não nos identificamos com isso. Mas, quando vemos este tipo de falta de sensibilidade, percebemos que todos a temos um bocadinho, porque há sempre um lado dos outros que nos escapa.
Todas as personagens estão de alguma forma assombradas pela angústia e sofrimento que se vive na plantação. Até a fotografia do filme, a cor, espelham tristeza e dor. Foi intencional transmitir esta desesperança ao espectador?
O filme é pouco colorido, pode até dizer-se que é monocromático. Há muitos verdes, é quase tudo verde. Por isso, sim, quis jogar com isso e com a paisagem, com os nevoeiros, com a chuva. Metade do filme passa-se à chuva. Com o que se vê, com o que se ouve, porque são coisas que se colam ao corpo. Também porque tenho essa relação com São Tomé, acho deslumbrante, mas não é um sítio que me apazigue de todo, há qualquer coisa no lado telúrico daquela floresta que é tão forte que, não sendo ameaçador, é inquietante.
Os administradores das plantações tinham necessidade de retratar o local como um sítio civilizado. Faziam-no obrigando os escravos a posar para fotografias que davam a ideia de que eram felizes e bem tratados. Sente que, ao fazer este filme, está de alguma forma a desmascarar esta tentativa de ocultação da História?
Trabalho há muito tempo estas questões coloniais e a fotografia, na altura, era muito usada no sentido de construir uma realidade. Apesar de haver o lado de encenação, também era usada como prova ou verdade. Quis jogar com isso. Mas, para mim, a questão da fotografia tem mais a ver com o que acontece no final, quando o fotógrafo, Alphonse, interpretado pelo Hoji Fortuna, é incentivado pelo médico a captar o estado real daquelas pessoas e diz que o mal é difícil de fotografar e que temos de dar uma ajuda. Também nesse aspeto a fotografia, como elemento que depois vai ser mostrado no Ocidente, tem de ter uma certa linguagem. O objetivo era fazer uma reflexão sobre essa possibilidade de representar a verdade. Isso também tem a ver com o próprio gesto do filme. Foi muito difícil encontrar uma linha, uma fronteira entre aquilo que se pode mostrar ou não, a forma como se pode representar a violência ou não. Nunca fui uma pessoa que gostasse de estar no centro das coisas mais violentas, gosto mais da violência em ecos, daquilo que sentimos. Toda essa reflexão sobre a fotografia ou o registo, tem a ver com o próprio filme que tenta, no fundo, mostrar ou representar a violência da melhor forma possível. A questão é: qual é essa forma? Não saber, desconhecer esses limites, é algo que leva a uma reflexão muito interessante.
As questões coloniais têm, de facto, estado muito presentes nos seus filmes. Porquê o enfâse na temática?
Não sei bem, não tenho uma agenda, mas sou sempre atraída para o tema. Às vezes penso que é por haver um lado um bocadinho aventuroso. Este é também um filme de aventuras, ou de pessoas que estão numa viagem. Sou muito atraída por isso, o que me leva por caminhos que estão ligados ao passado. É o tipo de território de que gosto ou com que me sinto próxima. Depois tem a ver com um certo território, uma certa paisagem. Não me sinto, por exemplo, atraída se me disserem que vamos fazer este filme aqui em Lisboa. Fico logo aflita porque jogo muito com as paisagens, com as pessoas contra as paisagens, com o estar fora. Depois há também a ligação com o que vivi em pequena, esse tempo colonial. Quem vive esse tempo, mesmo que se seja muito pequenino, fica sempre com uma “sensação”… Como diz a Luísa no filme: “não imagina a velocidade com que a gente se habitua às regras deste lugar, deste sistema”. Eu ficava, quando era pequenina, um pouco assustada, não propriamente com os meus pais, mas com o que via à volta. Tínhamos vindo de uma provinciazinha portuguesa, chegávamos ali e habituávamo-nos a ter aqueles senhores que nos serviam e isso, mesmo para uma pessoa muito jovem, tem qualquer coisa de estranho. Depois ficas sempre, de alguma forma, a tentar desconstruir aquilo.
Embora a violência do passado pareça absurda, continua a perpetuar-se nos dias de hoje. É nesse sentido que considera este filme uma “história contemporânea”?
Sim, porque o sistema de exploração é exatamente o mesmo. No século XX, por volta de 1915 e 1917, estes sistemas começam a acabar e entramos exatamente no mesmo sistema de “uberização” que temos hoje. As pessoas deixam de ser contratadas e dão-lhes a liberdade de ter um pedaço de terreno, elas ficam com o poder ou com a ideia de que têm agência sobre si próprias e são ainda mais exploradas. Esse sistema foi criado nessa altura, logo a seguir ao sistema das plantações e é incrível que ainda hoje seja o mesmo. Tentei sublinhar isso no filme quando o médico, o Afonso, vai falar com o curador dos serviçais e ele diz que os agentes que “importam” pessoas estão sempre a mudar de nome e de sítio, nunca sabe quem são ou onde estão. É exatamente o que se passa hoje: muda-se a localização das companhias, muda-se os nomes das empresas… Depois, há outro lado contemporâneo, que tem muito a ver com a personagem interpretado pelo Carloto, que diz respeito às pessoas que têm uma certa noção do que se está a passar, mas são completamente impotentes. Aparentemente têm agência sobre si próprias mas, na realidade, não têm. Isso é o retrato do que muitos de nós são hoje, sem julgar, porque também eu me sinto nessa situação.
“Gosto de fazer grupos de escolhas, faço isso com os meus filhos, e nunca me abstraio de que sou mãe”, começa por dizer Ainhoa Vidal, bailarina, coreógrafa, figurinista, criadora e artista de muitos talentos. Para esta semana, sugere três grupos de propostas para fazer com crianças, nem todas originalmente pensadas para os mais novos. “Acredito nas coisas para todos”, defende. São assim também os seus espetáculos, normalmente indicados para a infância, mas capazes de encantar e de pôr a pensar também os adultos – e, no final, de gerar diálogos entre todas as idades. Exemplo disso é Aruna e a Arte de Bordar Inícios, que estará no Centro Cultural de Belém nos dias 1 e 2 de fevereiro, com sessões para escolas a 30 e 31 de janeiro. Um espetáculo de teatro de sombras sobre catástrofes, as que “nos afetam enquanto sociedade” e as “outras individuais em que perdemos o chão que nos convinha”, sobre recomeços e reconstruções, sobre “a nossa força de coragem”. Neste trabalho, Ainhoa reuniu uma equipa de luxo: na manipulação dos objetos, estará ela e Carla Martinez; a voz é da sua filha Zoe Vidal; a direção musical e os arranjos de Luís Martins; a composição e as letras de Pedro da Silva Martins; no piano, Joana Sá, e na bateria, Sérgio Nascimento; nos coros ouvem-se o seu filho Theo Vidal, Nazaré da Silva e Aldina Duarte.
“Eu e o outro”
EU
Oficina Retratos, com André Ruivo
Livraria It’s a Book
25 janeiro, 15h30
A partir do seu livro Retratos, o artista André Ruivo faz uma oficina de desenho para crianças. “Acontece numa livraria que adoro e que os meus filhos também adoram, a It’s a Book. Já comprei lá livros para oferecer a crianças e a adultos. Dá para todos e é uma boa ligação entre faixas etárias”, comenta Ainhoa Vidal. “Nos dois últimos dias 25 de Abril, fomos lá fazer uma outra oficina de bandeiras com o André e gostei muito. Ele está ali, não apenas para um público mais novo, mas para todos, e isso é muito bonito.”
OUTRO
Exposição Seres e Animais Fantásticos
Museu Nacional de Arte Antiga
Até 6 abril
Oficina Storyboard para filme de animação
Cinemateca Júnior
25 janeiro, 11h
Também a pensar no prazer de fazer e de descobrir desenhos em conjunto, Ainhoa sugere uma exposição e uma outra oficina. “O Museu Nacional de Arte Antiga tem uma seleção de desenhos da sua coleção, peças do século XVI ao século XVIII, que representam dragões, centauros, sereias e todos esses seres fantásticos, que têm também muito a ver com a animação e a banda desenhada, por isso me lembrei também desta oficina que vai acontecer na Cinemateca Júnior.”
“Pôr os pontos nos is”
Exposição Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo em África: Mitos e Realidades
Museu Nacional de Etnologia
Até 2 novembro
“Escolhi esta exposição porque sou mãe de duas crianças e uma delas está no sexto ano e me preocupa muito como está a ser dada a disciplina de História e Geografia de Portugal, sem nenhuma reflexão sobre o que aconteceu no século XIX e XX. A matéria está a ser dada como me foi dada a mim e é hora de atualizar a informação e de falar das coisas de forma crua, para que não voltem a acontecer. Preocupa-me imenso o racismo e a xenofobia atualmente.”
Livro Descobri-quê?, de Cátia Pinheiro, Dori Negro e José Nunes
Edições Teatro Nacional D. Maria II
“O livro está disponível na livraria do site do Teatro Nacional D. Maria II e é o texto de um espetáculo que vi no CCB, Descobri-quê?, que fala sobre a linguagem racista e o que não está a ser dito. É dirigido a um público pré-adolescente, mas também a nós. Nem sempre se conseguem ver os espetáculos, mas deste existe um livro e vale a pena ler.”
Espetáculo A Outra Casa da Praia
Quinta Alegre-Um Teatro em Cada Bairro
De 24 a 26 janeiro
Anabela Almeida e o teatro meia volta e depois à esquerda quando eu disser apresentam, na Quinta Alegre, o espetáculo A Outra Casa da Praia, “um diário coletivo de um grupo de mulheres que nasceram em Portugal na década de 40 e emigraram para Moçambique na década de 60”. Criada pela atriz depois de A Casa da Praia, em que falava sobre o seu pai, a nova peça debruça-se agora sobre as mulheres da sua família. “Gosto muito da Anabela, é uma atriz fantástica”, afirma Ainhoa Vidal. “O espetáculo parte de uma história real e é de uma generosidade enorme. Além disso, é sempre bonito quando estamos a ver uma história de uma pessoa e refletimos sobre a nossa própria história.”
“Fora da casca”
Exposição Ângulo Vivo, de Marco Franco
Galeria Bruno Múrias
Até 22 fevereiro
Acabou de ser inaugurada, a nova exposição de Marco Franco, e Ainhoa confessa-se bastante curiosa. “O Marco vem da música, é um grande baterista, passou para o piano e depois para as artes plásticas. Gosto muito destes percursos em que não se tem medo de mudar e de seguir novos caminhos. Fiquei surpreendida quando vi o trabalho plástico dele pela primeira vez, porque não tinha nada a ver com o músico que conhecia. Era incrível.”
Espetáculo Arremesso X, de Sofia Dias e Vítor Roriz
MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia
De 25 e 26 janeiro
No âmbito de Disco, a exposição com mais de 500 pinturas de Vivian Suter, que está no MAAT até meados de março, Sofia Dias e Vítor Roriz colocam a sua prática coreográfica em diálogo com a obra desta artista suíço-argentina e com o espaço da Galeria Oval. “Gosto de coreógrafos que fazem espetáculos fora do palco e que entram em diálogo com outro tipo de obras, de ambientes e de público. A Sofia e o Vítor têm feito muito isso e agrada-me bastante.”
Imagine-se 1961, ano em que irrompe a “guerra colonial”. Imagine-se a “metrópole”, mais especificamente o Minho rural e clerical do salazarismo. E uma carrinha da biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian, na estrada para levar leitura a quem não tinha acesso a livros por esse país fora. Imagine-se, a bordo, um tal de Luiz Pacheco (1925-2008), o anti-herói de um pequeno grande livro chamado O Libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor que, em 1998, ainda com o autor vivo, o encenador António Olaio decidiu levar para o palco, entregando o papel do protagonista ao então jovem ator André Louro.
Dali para cá, o espetáculo correu o país, foi ao estrangeiro, conheceu duas versões e, vendo bem, “tanto pode ser feito numa sala convencional, como num bar ou numa cozinha” – neste caso, será no subpalco do Teatro São Luiz. Como afiança o ator acerca da portabilidade deste O libertino…, “é perfeito, porque tudo o que preciso para o fazer cabe no meu skoda.”
Na atual versão, não há figurantes nem outros atores, e Louro está sozinho em cena, assumindo o papel do Libertino, que mais não é que o próprio autor. Lembra o encenador, que conheceu Luiz Pacheco em Almada – quando o escritor “ia ao teatro municipal visitar um amigo e aproveitava a ocasião para vender [os seus] livros” –, que toda a obra do autor é autobiográfica, sendo que é em O Libertino passeia por Braga… que, como aponta o investigador Rui Sousa, Pacheco dá plena expressão ao Libertino, “um dos conceitos maiores da iconografia autoafirmativa” do escritor que prosseguirá posteriormente, “culminando na vasta produção diarística”.
Fiel à narrativa, Louro encarna então no Libertino/Pacheco e ao longo de uma hora conta as pícaras aventuras vividas por terras minhotas, sobretudo pela bonita cidade de Braga, onde pernoita na Pensão Oliveira, e vai deambulando em busca dos mais livres prazeres da carne, engatando lolitas mais ou menos devotas e magalas a dias de embarcarem para “Angola-é-Nossa” (assim, zombando, refere Pacheco a antiga colónia portuguesa).
Através do riso, da sátira, da autoironia e de um infinito amor à liberdade, afronta-se a Igreja, pilar do salazarismo, precisamente naquela que era conhecida como a “cidade dos arcebispos”. Nada inocente, é debaixo das batinas que Pacheco quer pecar, naquela cidade bastião das públicas virtudes do regime. Enquanto o faz, vai escancarando os limites provincianos do país de então, com as suas profundas desigualdades sociais e culturais.
“Provavelmente, muitos jovens terão dificuldade em reconhecer algumas das coisas que aqui se dizem, sobretudo pelo retrato feito do país. Não saberão sequer o que é um ‘magala’, embora agora queiram outra vez mandar os miúdos para a tropa”, observa André Louro. Contudo, o ator acredita que “haverá sempre uma ou outra frase ou situação que cada espectador, independentemente da idade irá reter”, afinal, Pacheco é mesmo intemporal. E, sim, continua a ser muito divertido e controverso; e pecaminoso, também. Mas, como diria o Libertino/Pacheco, a “vontade de ter pecado” é vontade “de viver”.
Com récitas agendadas para 17, 18 e 19 de janeiro, O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor chega ao Teatro São Luiz em ano de centenário do nascimento de Luiz Pacheco, inaugurando o ciclo Subsolos, constituído por monólogos a serem apresentados no subpalco da sala principal do teatro municipal. Esta versão do espetáculo de António Olaio e André Louro tem cenário e figurino de Maria Ribeiro, desenho de luz de Daniel Verdades e dramaturgia de Anabela Felício.
2025 marca a celebração dos 15 anos de carreira. Que balanço fazem destes anos juntos?
Miguel Casais (MC): Um balanço muito positivo. Temos vindo a fazer um caminho muito bonito com alguns altos e baixos, obviamente, mas creio que os ‘altos’ superam largamente os ‘baixos’ e estamos muito orgulhosos do que temos alcançado.
Gerir um projeto com seis pessoas é um desafio?
MC: Na verdade, já não são seis pessoas. Temos um novo membro, o Gus, por isso passámos a ser sete. Queremos todos o mesmo e temos uma dinâmica de grupo que já está bem instalada. Respeitamo-nos, todos temos espaço para falar, não somos propriamente músicos freelancers a tocar com um artista em que existe alguma cerimónia para falar ou apresentar ideias. Falamos abertamente, toda a gente dá sugestões… no nosso caso, gerir pessoas é algo que se faz tranquilamente.
Soul, funk e blues são a base da vossa sonoridade. De onde vem o gosto por estes géneros musicais?
Tatanka: O blues, o funk e o soul são o elo de ligação entre todos os elementos da banda. É o ponto comum entre todos, onde nos encontramos. Cada um tem os seus gostos musicais, que divergem, mas a música afroamericana e o gospel são pontos que nos ligam a todos.
Há um piscar de olho aos anos 70 do século XX, quer na sonoridade, quer no lado visual. Na vossa ótica, o que tem essa década de tão especial?
Tatanka: Para nós, é uma década especial por razões culturais, sociais e também tecnológicas. Foi uma época em que houve uma grande evolução tecnológica nos processos de gravação que muito apreciamos.

Lançaram recentemente o quarto disco, Last Night in Amsterdam, chegado depois de um hiato de seis anos. Este intervalo de tempo foi propositado?
MC: Não foi propositado. Normalmente lançamos um disco de quatro em quatro anos. Este demorou um bocadinho mais por causa da pandemia. Durante essa fase não nos juntávamos tanto, apesar de, durante esse período, termos tido um acontecimento muito importante, que foi o Festival da Canção e, depois, a Eurovisão. Estarmos juntos para compor e gravar só voltou a acontecer depois da pandemia. Esse foi o principal motivo para este disco ter demorado mais tempo do que os anteriores.
Qual foi a maior inspiração para o álbum?
MC: Diria que foi mesmo a cidade de Amesterdão. Em 2018 tínhamos andado em tournée pelo Reino Unido e quando chegámos a Amesterdão vínhamos, literalmente, com os instrumentos às costas. Saímos da Estação Central e fomos a pé até ao Red Light District, que era onde estávamos hospedados e onde íamos tocar, e isso fez-nos lembrar um bocadinho a história do início da banda, quando tocávamos no Bairro Alto. O Red Light District é um bocadinho como o Bairro Alto (vezes cinco e mais intenso), mas fazia lembrar a mesma vibe, também pelo facto de não termos as ‘mordomias’ que atualmente acabamos por ter, como os roadies, que nos ajudam a montar os instrumentos e a afinar as guitarras. Ali, estávamos sozinhos com teclados às costas, e todo aquele ambiente de Amesterdão (que só quem conhece é que percebe o que estou a dizer) fez-nos recordar dessa altura. É um ambiente muito intenso, com personagens doidas [risos], é inspirador. Nessa altura, o Tatanka andava a ler o Hippie, de Paulo Coelho, que retrata Amesterdão no final dos anos 60 e início dos anos 70, época em que a cidade era considerada uma das capitais hippies do mundo. Juntámos estes ingredientes todos e resolvemos fazer um disco sobre a cidade.
Kathmandu conta com a participação de Rão Kyao. Como surgiu a ideia desta colaboração?
MC: Kathmandu era uma viagem que os hippies faziam desde Amesterdão até ao Nepal (alguns seguiam depois até à Índia). No final da canção, que representa a chegada a Kathmandu, precisávamos de uma flauta especial e lembrámo-nos do Rão Kyao. Um dos membros da banda, o Chico Fernandes, toca com ele e, como havia essa proximidade, lembrámo-nos de o convidar e ele aceitou. Adorou, e nós também adorámos, ficou espetacular. Esta música inclui outro convidado, o Jorge Pardo, que entra a meio do tema com um solo de flauta fantástico.
O disco inclui uma nova versão de Love is on my side. Porquê esta mudança em relação à música original?
Tatanka: Fizemos uma versão diferente do Love is on my side porque a versão original, que a maior parte das pessoas conhece, adapta-se mais ao contexto do Festival da Canção, com um arranjo e uma produção mais adequada àquele certame. Dentro do universo e do conceito do Last night in Amsterdam, esta é uma música de despedida, uma retrospetiva de vida de alguém já às portas da morte, e tem este arranjo mais triste, mais profundo, mais despido, para dar aos ouvintes precisamente essa sensação de reflexão de uma vida inteira. Acaba por trazer mais ênfase e destaque à letra em si.
Esta canção garantiu-vos um lugar no Festival da Eurovisão em 2021. Como avaliam essa experiência? Sentem que vos abriu portas a nível internacional?
MC: Foi uma experiência incrível, fomos com a equipa da RTP, que foi espetacular. Foi um bocadinho difícil pelo facto de ter sido durante a pandemia: era suposto ser muito divertido, com farra e muitas festas… foi divertido para nós, que somos um grupo de pessoas otimistas que querem brincadeira e diversão, mas também foi chato porque praticamente não podíamos sair do hotel, a não ser para os ensaios ou tudo o que estivesse relacionado com o Festival. Tirando isso, não podíamos andar na rua a tirar selfies porque corríamos o risco de sermos desclassificados. Também não queríamos correr o risco de apanhar covid e contaminar outras pessoas. Nesse aspeto, foi um bocadinho complicado, mas tudo o resto foi incrível. Como quase não podíamos sair do hotel, usámos isso a nosso favor e aproveitámos para gravar o videoclipe do Crazy Nando. Aquilo realmente é outro mundo: uma coisa é acompanhar a Eurovisão pelo sofá, outra é viver a experiência. Nunca na vida demos tantas entrevistas e, a nível internacional, o impacto deu-se no número de audições nas plataformas digitais, como o Spotify. Tivemos números muito interessantes, maioritariamente de ouvintes estrangeiros. Também tivemos contacto com um agente estrangeiro, com quem trabalhámos anos mais tarde numa tournée nos Países Baixos. Como estávamos a meio da pandemia, essa tournée não aconteceu logo a seguir à Eurovisão, o que fez com que aquele hype se dissipasse um bocadinho. Mas continuamos a lutar para que a nossa presença internacional seja cada vez mais assídua.
Dia 17 regressam ao Coliseu. O que podem antecipar deste concerto?
MC: Vai ser muito especial. Será a terceira vez que pisamos o palco do Coliseu dos Recreios e estamos a preparar algo muito especial. Será a primeira vez que tocamos o Last Night in Amsterdam na íntegra. Não vamos só tocar esse disco, vamos também fazer uma espécie de best of de todos os outros álbuns, embora as atenções estejam muito centradas no novo trabalho. Vamos também apresentar um novo stage plot, um novo desenho de luz, arranjos novos. Vai ser um concerto a não perder.
É no último dia deste mês que Joana Gama lança na Culturgest o álbum Strata, o sexto da dupla de piano e eletrónica que tem com Luís Fernandes. Este concerto, marcado para as 21 horas, celebra também uma década de criação musical conjunta. Um regresso simbólico ao momento inicial da colaboração que têm mantido, voltando a trabalhar com o cineasta Eduardo Brito, autor da capa de Quest, o primeiro álbum, e das primeiras fotografias do duo, e Frederico Rompante, criador dos desenhos de luz de todos os seus concertos. Em palco, criam um “espaço de diálogo entre luz e imagens”, para nos darem a ouvir esta música “para piano, eletrónica e múltiplas camadas de sons recolhidos em diversos pontos do globo”.
Notas para imaginar estranhos mundos
15 janeiro a 28 fevereiro
Centro Cultural de Belém
Para Joana Gama, não há muito a acrescentar ao texto de apresentação desta instalação – que se ramificará, em fevereiro, em três micro conferências dedicadas à Inteligência Artificial, ao Ativismo Climático e à Beleza – onde se lê: “Uma clareira circular rodeada por terra, terra é chão, mas também é Terra, globo, esfera, círculo, planeta. Entramos guiados apenas pela própria intuição. Aqui, podemos respirar juntos, entrar, sair, visitar. Ser impacto, um movimento constante de uma pegada consciente e inconsciente. Uma instalação que pretende escavar na intimidade um lugar de afetos, propor uma ecologia, um estaleiro de sentidos. Dentro da instalação encontra-se uma biblioteca comunitária, um lugar temporário para ler, estar, trocar olhares ou conversar com estranhos. Uma biblioteca-floresta.” Diz a pianista: “Esta proposta aborda muitos temas que me são caros, no trabalho em particular e na vida em geral.”
Jurassic Park pela Orquestra Gulbenkian
15 a 17 janeiro
Fundação Calouste Gulbenkian
O filme Jurassic Park, de Steven Spielberg, estreou-se em 1993, tinha Joana Gama 10 anos. “Tenho a memória da espera numa longa fila na bilheteira do cinema e de ter sentido que o filme era extremamente empolgante e, também, assustador na dose certa”, recorda a pianista. “Neste filme-concerto podemos ouvir a incrível banda sonora de John Williams interpretada pela Orquestra Gulbenkian. Isto talvez se qualifique como guilty-pleasure, mas quem não os tem?”
Atenção: a sua receita será transmitida!
17 a 26 janeiro
Lu.Ca – Teatro Luís de Camões
“Vale tudo para chamar a atenção a um assunto ao qual dou muita importância: a comida”, afirma Joana Gama, destacando a peça de teatro de Joana Barrios e Rogério Nuno Costa que se estreia no Lu.Ca, indicada para maiores de 7 anos. “A sinopse deste espetáculo abre suficientemente o espectro para se perceber, caso dúvidas houvesse, que, a partir da comida, podemos falar de tudo e mais alguma coisa. Sendo essencial à nossa sobrevivência – e, infelizmente, para alguns, se pudessem saltar as refeições e tomar uns comprimidos, assim fariam – acredito que a comida é uma fonte inesgotável de alegria, aprendizagem e magia e acredito também que é importante introduzir estes assuntos desde cedo, para que as crianças tenham prazer em comer, saibam o que estão a comer e tenham vontade de deitar mãos à obra.”
O Calígrafo Ocidental. Fernando Lemos e o Japão
Até 20 janeiro
Fundação Calouste Gulbenkian
É a última semana para ver a exposição que o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian dedica à relação de Fernando Lemos com o Japão, artista multidisciplinar que viveu entre 1926 e 2019 e que deixou vasta obra, entre Portugal e o Brasil, como fotógrafo surrealista e pintor modernista. “Tenho uma grande admiração pelo Fernando Lemos. Em 2019 vi uma exposição retrospetiva na Cordoaria Nacional que me impressionou muito, pelo volume e riqueza do seu trabalho, e também pela quantidade de meios diferentes que usou para se exprimir. Apaixonada confessa pelo Japão, foi com alegria que visitei esta exposição no renovado CAM, em que obras do artista, produzidas durante uma prolongada estadia naquele país, com uma bolsa da FCG, convivem com obras de autores japoneses. Numa entrevista que Fernando Lemos concedeu uns meses antes de morrer, e que está reproduzida na exposição, disse: ‘Não é só ir ao Japão e gostar do Japão. Você tem que aprendê-lo em tudo o que ele é. Seja bom ou mau. O Japão é um manifesto.’”
Ainda Estou Aqui, de Walter Salles
Estreia a 16 janeiro nos cinemas
Joana Gama confessa que ainda pouco sabe sobre este filme, mas isso nunca a impede de fazer as suas escolhas. “Quando é possível, gosto de ir em branco para a sala de cinema”, revela. “Já estava curiosa, pela sua boa receção quando foi apresentado em Veneza, e agora que a Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro na categoria de Melhor Atriz em filme dramático, fiquei ainda mais entusiasmada.”
Uma História Simples, de David Lynch
16 janeiro
Cinema Nimas
Programa para a hora de almoço: o filme de David Lynch passa, em cópia digital restaurada, no Cinema Nimas, no dia 16 de janeiro, às 13 horas. “1999 foi um ano em que vi três filmes – dos que me lembro – que tiveram um grande impacto em mim: Magnolia, de Paul Thomas Anderson, Eyes Wide Shut, de Stanley Kubrick, e este A Straight Story, de David Lynch. Revi os outros dois entretanto, mas não voltei a ver este: é um filme que destoa grandemente na filmografia de Lynch – e se ele o fez, é porque tinha de o fazer – e que foca aspetos menos evidentes na sua obra: a lentidão, a placidez, a bonomia.”
O Quarto ao Lado, de Pedro Almodóvar
Em exibição nos cinemas
A terceira sugestão cinematográfica de Joana Gama é o mais recente trabalho de Pedro Almodovar, que ainda se mantém em cartaz nalguns cinemas de Lisboa. “Consegui ir para o filme sabendo apenas da sua temática em linhas gerais, por isso fui surpreendida pela história, que não quero revelar aqui. Interpretado de uma forma cúmplice por Tilda Swinton e Julianne Moore, creio que todos o deviam ver pois toca em muitos temas importantes e sobre os quais vale a pena refletir. Sendo um filme sobre a morte, é muito mais do que isso. A mim deixou-me com muitas perguntas, tais como: Temos consciência do efeito do nosso dia-a-dia no futuro? Queremos estar vivos a qualquer preço? Temos relações suficientemente fortes, com quem partilhar a alegria e a tristeza? Mas acredito que haverá muitas outras leituras possíveis do filme. Como escreveu André Tecedeiro, ‘cada um lê no poema / o poema que traz em si.’”
A exposição Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades, concebida e coordenada pela historiadora Isabel Castro Henriques, parte do fundamento de que na “sociedade portuguesa, caracterizada pela existência de um racismo sistémico, verifica-se a existência de correntes de negação do racismo resultantes de mitos associados ao colonialismo português como o lusotropicalismo e a ideia de um ‘bom’ colonialismo português”.
A mostra, que visa apresentar as linhas de força do colonialismo português em África nos séculos XIX e XX, tem, consequentemente, para além dos propósitos de descolonizar os imaginários portugueses e contribuir para uma renovação do conhecimento sobre a questão colonial portuguesa, o objetivo de desconstruir os mitos criados pela ideologia colonial, destruindo a sua natureza falsificadora.
Uma organização expositiva semicircular apresenta esses mitos e ideias fundamentais em sete núcleos:
I – Estamos em África há 500 anos
A ideia de que Portugal possuía direitos históricos em África pois tinha descoberto o Continente negro e mantido relações com os povos africanos desde o século XV.
II – Missão colonizadora e Progresso
O mito da “missão civilizadora” baseado na ideia de superioridade biológica e civilizacional do homem branco, associada ao progresso das ações europeias que permitiam iluminar e transformar a África “selvagem”.
III – Vocação colonial e Missão histórica
Recurso à ciência para construir os mitos da “vocação colonial”, característica da “raça” portuguesa” e da “missão histórica”, para justificar a ocupação dos territórios africanos e consagrar a singularidade do colonialismo português.
IV – Os outros (Selvagens) e Nós (Civilizados)
A ideia construída sobre a oposição “primitivo ou selvagem”/ “civilizado ou evoluído” que legitimava as relações luso-africanas de superioridade branca e inferioridade negra, bem como a dureza das práticas destinadas a assegurar a dominação portuguesa sobre os povos colonizados.
V – A África portuguesa
Mito que põe em evidência um vasto espaço que é Portugal em África constituído pelas suas colónias, mas também a sua “portugalização”, onde impera a presença de uma identidade portuguesa que se pretende assente na língua, na cultura, na organização e nas práticas quotidianas.
VI – A Grandeza da Nação e a Luta Armada
A ideia de que “Portugal não é pequeno”, assente na ciência cartográfica que mostrava a grandeza da nação portuguesa que se estendia do Minho a Timor, apresentando uma dimensão semelhante à da Europa ao englobar todas as colónias do império português designadas, a partir dos anos 50, de províncias ultramarinas.
VII – Descolonização, Independências e Legados do Colonialismo
Por fim, abordam-se os 13 anos de luta armada, destruição física e cultural que terminaram no dia 25 de abril de 1974, a complexidade dos processos de descolonização, os fenómenos de violência militar e social, o regresso de milhares de retornados e a construção de novas relações políticas, culturais e económicas com os novos Estados independentes.
Dois eixos centrais estruturam a narrativa da exposição. O primeiro organiza-se em painéis temáticos, nos quais texto e imagem se articulam, dando a palavra ao conhecimento histórico. O segundo eixo pretende “fazer falar” as obras de arte africanas, como evidências materiais do pensamento e da cultura africanas, evidenciando a complexidade organizativa dos sistemas sociais e culturais destas sociedades.
“As produções artísticas africanas, em particular as formas esculpidas e pintadas, traduções materiais do pensamento e das culturas das populações, integradas em todos os seus quotidianos, das práticas domésticas aos mais diversos rituais religiosos e festivos, não só ‘dizem’ a África, como também põem em evidência a capacidade criativa, a sabedoria, a racionalidade institucional e social e a riqueza cultural dos africanos, contribuindo poderosamente para afirmar identidades e práticas civilizacionais africanas”, salienta Isabel Castro Henriques.
Este segundo eixo da exposição é constituído por uma seleção de 139 obras, repartidas entre seis temas: símbolos de autoridade; sacralização da vida; quotidianos: trabalho, produção, comércio; culturas, artes e técnicas; família, relações socias, identidade; África Europa; sínteses culturais. As obras são provenientes das coleções do Museu Nacional de Etnologia, incluindo algumas peças em depósito da Fundação Calouste Gulbenkian e do colecionador Francisco Capelo, e obras de arte africana contemporânea dos artistas Lívio de Morais, Hilaire Balu Kuyangiko e Mónica de Miranda.
No âmbito do programa paralelo que complementa a exposição, patente até 11 de novembro de 2025, decorre no ISEG e no Museu Nacional de Etnologia o ciclo Cinema e Descolonização, com projeções de filmes relacionados com a realidade pós-colonial, além da realização de outras ações de caráter científico, nomeadamente conferências e colóquios.
Françoise Vergès, politóloga, historiadora, e especialista em estudos pós-coloniais francesa, escreveu no livro Decolonizar o Museu (Orfeu Negro, 2024) “decolonizar verdadeiramente o museu é pôr em prática um ‘programa de desordem absoluta’, é fazer um esforço de imaginação e criar outras formas de narrar e compreender o mundo, que nutram a criatividade coletiva e tragam justiça e dignidade às populações que delas foram desapossadas”.
Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades é uma importante exposição que dá um passo firme nesse longo caminho a percorrer.
Carolina Deslandes, Tatiana Salem Levy, Raquel Castro, Catarina Mourão e Lou Vives contam como a sua arte se reflete em manifestações do “eu”.
Carolina Deslandes
Cantora e compositora
Foi quando saiu o disco Praticamente, de Sam the Kid, que Carolina Deslandes percebeu que música queria fazer. Hoje, as suas letras falam das suas conquista e derrotas, dos seus amores e desamores e daquilo que a incomoda e alegra. A 24 e 25 de janeiro, sobe ao palco do Coliseu, ao lado de Diogo Clemente, seu ex-marido e pai dos seus filhos, no espetáculo Eu e Ele.
“Esse lado mais autobiográfico, que aparece muito no rap e aparece sem vergonha, foi inspirador para mim, porque não havia constrangimento em abordar fosse o que fosse. Todos os artistas que verdadeiramente influenciaram a minha vida e pelos quais me apaixonei são autobiográficos. Senti que esse era o meu compromisso com a minha música: dizer a minha verdade. Quando fazemos música assim, inevitavelmente falamos das nossas coisas boas e das nossas coisas mais difíceis – e ninguém quer sentir que está sozinho nas coisas mais difíceis. Mesmo que não esteja a cantar sobre uma coisa que me aconteceu, estou a ser mensageira de um assunto que me preocupa. Fazer estas canções foi fundamental para me conhecer e para conseguir dar o passo de fazer música mais interventiva. Não posso ser uma mulher em 2024 e não ser feminista. Sinto que nós, mulheres, estamos a acordar partes da nossa vivência e infância, do nosso dia-a-dia e estamos a sentir necessidade de ser vocais sobre isso e de incluir isso na arte que fazemos. As coisas dão-nos vergonha até percebermos que não são só nossas, que aos outros também acontece aquilo. A música e a arte são, cada vez mais, um exercício de aproximação ao outro: ‘anda aqui, que vou dizer-te que isso não faz de ti uma pessoa esquisita ou um perdedor’.”
Tatiana Salem Levy
Escritora
No seu livro mais recente, Melhor Não Contar, Tatiana Salem Levy fala da mãe e da sua morte prematura, do padrasto e do assédio de que foi vítima, e de vários outros episódios que a marcaram. Este mês, voltará à escrita, só não sabe ainda de que livro: se um de pura ficção que vem escrevendo há 10 anos, se outro, mais pessoal, que se pode interpor no caminho.
“Me escrever é uma tentativa de me colocar na escrita, mas não só: me colocar no mundo, elaborar os acontecimentos pela escrita. Mas essa Tatiana da escrita é sempre uma outra Tatiana, uma Tatiana tornada literatura. Do meu eu vai para o eu da leitora e do leitor e entre esses dois eus tem um terceiro, que é a literatura e que torna tudo universal. Quando se passa para texto, de alguma forma, ficciona-se. O ato de contar já é um distanciamento do acontecimento. Esse boom da autoficção toca muito as pessoas. É um toque de uma sensibilidade e de uma emoção, que talvez as pessoas estejam precisando neste mundo tão acelerado. A literatura resiste a esse tempo e proporciona uma experiência temporal diferente onde está incluído tudo o que não dá tempo de viver. É também um gesto comunitário, tal como este movimento feminista. A Vista Chinesa e Melhor Não Contar são livros que não existiriam fora dessa vaga em que as mulheres começaram a se expor mais, a falar mais de si e das violências que sofrem. A gente se sente apoiada, como aquela frase no Brasil que diz ‘ninguém solta a mão de ninguém’. Embora a gente se reconheça na tradição literária, até aqui tínhamos a ideia de que as histórias já tinham sido todas contadas. Quando decidi ser escritora tinha esse fantasma. E, de repente, percebemos que muitas histórias ficaram por contar ou, então, foram contadas, mas não nessa página da grande literatura: eram contadas nos ambientes domésticos, nos diários, nos sussurros. O que tem de diferente agora é a transformação dessa escrita de si em literatura.”
Raquel Castro
Atriz e encenadora
São várias as peças de teatro em que Raquel Castro parte das suas experiências pessoais para criar ficções. A mais recente, As Castro, estará em Lisboa de 8 a 18 de maio, na Sala Estúdio Valentim de Barros dos Jardins do Bombarda, que o Teatro Nacional D. Maria II ocupa durante 2025.
“Como espectadora e como leitora, desde há muitos anos que sou atraída por trabalhos de pendor mais autobiográfico ou autoficcional. Quando os meus espetáculos partem de uma inquietação minha, sinto que há uma chama inicial que se mantém e que, no final, falam mais comigo. Há uma tensão que se cria quando é dito ao público que aquilo a que vai assistir tem esse ponto de partida. As pessoas ligam-se de uma maneira diferente. Quando começo os meus espetáculos a dizer ‘Olá, o meu nome é Raquel…’, tento que esse contrato seja honesto, porque isso cria no espectador uma expectativa. Às vezes a parte ficcional é mais óbvia, outras menos. Existe um processo criativo em que as coisas são muito escavadas e trabalhadas, para conseguir que de uma história individual se chegue a uma história mais coletiva. Ando muito em torno da domesticidade e da família, da maternidade, das mulheres, temas que são comuns a uma grande maioria das pessoas. É preciso deixar que o processo nos conduza e que haja uma liberdade poética e criativa por cima daquilo que são os nossos pontos de partida. Isso pode levar-nos por vários caminhos e por cima disso podem existir muitas camadas. Até porque a memória também é uma ficção, são coisas que contamos a nós próprios. É verdade que os pontos de partida são autobiográficos, mas a partir do momento em que se escreve e se põe uma personagem em palco, aquilo não sou eu. Estou a fazer de mim, mas é uma persona criada para aquela situação.”
Catarina Mourão
Realizadora
Nos filmes A Toca do Lobo (2015) e O Mar Enrola na Areia (2019), Catarina Mourão parte de imagens de arquivo pessoais para contar histórias: a do avô que nunca conheceu e a de um personagem que vagueava nas praias e vivia da caridade dos banhistas. Este ano, depois de estrear uma curta ficcional rodada nos Açores, e de filmar uma longa também de ficção, há de começar outro projeto a partir dos cerca de 600 diapositivos do pai que encontrou numa caixa.
“Há sempre um momento no percurso artístico em que as pessoas se voltam para questões que as inquietam e têm mais a ver com o seu percurso e biografia. Se calhar porque ganhamos uma certa confiança e não temos tanto medo da exposição, ou porque não vemos isso como um gesto narcísico. As pessoas já não têm esse pudor: assumem muito mais o seu olhar sobre as coisas. É aquilo que melhor conhecemos e que mais podemos aprofundar. E esse trabalho de aprofundamento – parece paradoxal – mas é fundamental para a universalidade, para que chegue ao outro. O perfurar da superficialidade tem a ver com isso. É preciso perceber quando é que se passa de um filme caseiro que só interessa à família para outra coisa, torna-se necessário identificar quais são as inquietações mais profundas que ali estão. Aí conseguimos tocar mais as pessoas e somos mais originais também. Se não, entramos num cliché do “eu, eu, eu” e das recordações e dos natais e das festas de aniversário. Esse processo sobre o arquivo torna-se muito interessante, porque não basta só escarrapachá-lo, é preciso trabalhá-lo.”
Lou Vives
Artista plástico e músico
Ritmos y Poemas é a primeira exposição individual de Lou Vives, patente de 16 de janeiro a 5 de abril, na Kunsthalle Lissabon. Partindo de uma performance com bateria, aborda as “noções de memória, poética queer e efemeridade”. Entre as várias peças, estão litografias, um mural e uma cassete chamada “a minha voz antiga”.
“Nos últimos anos, tenho explorado muito a relação entre verdade e ficção, onde se situam essas fronteiras e como são percecionadas. Agrada-me a ideia de que quem vê ache que a realidade pode ser ficção e a ficção pode ser realidade. Esta exposição em Lisboa é quase toda uma espécie de diário do que vivi este último ano e tem muito a ver com uma exploração de identidade e queerness e de uma relação de distância de uma pessoa que cresceu em Lisboa, mas que tem pais espanhóis e agora vive na Holanda. Utilizo a minha biografia e as minhas coisas como material plástico, mas a verdade é que nos podemos interrogar que trabalho não tem a ver com a subjetividade do seu autor. Os meus processos passam muito pela criação de um arquivo, que pode ser um diário ou um arquivo contemporâneo, que vou explorando. Interessa-me também a fluidez do sujeito e uso no meu trabalho pessoas que ouço na rua, livros que estou a ler, vídeos que vi no Tik Tok, fazendo uma colagem de tudo à minha volta. Nunca tive outra forma de pensar, é aí que encontro a energia, o desejo e a vontade de fazer. O impulso de criar é a partir de mim. É a única forma que tenho de encontrar beleza nas coisas.”
A propósito de um outro espetáculo, assumias encarar o teatro como um espaço de criação pleno de liberdade. A liberdade é o gatilho essencial para criar?
Sim, claro. Acima de tudo, vejo o meu trabalho no teatro muito associado à infância, um tempo em que somos totalmente livres porque não temos grandes inibições. Dou quase sempre o exemplo de crianças a brincar que transformam uma caixa num castelo e um pau numa espada para matar o dragão. Procuro muito comunicar com esse tempo, e isso faz-me fazer as coisas da forma mais livre possível, sem ter de corresponder às ideias de ninguém, senão às minhas e, naturalmente, das pessoas com quem trabalho.
Essa liberdade vinca-se também num lado muito pessoal…
Acho que é a forma de me confrontar com temáticas como a mortalidade, o oblívio, a perda, a passagem da infância para a idade adulta. Esta ideia da mortalidade está sempre muito presente, chega a constranger-me no dia-a-dia e afeta-me particularmente à noite, porque a cabeça não para…
Porquê essa fixação com a morte em alguém ainda tão jovem?
Houve vários momentos na minha vida que me fizeram contactar com a morte. A minha mãe faleceu prematuramente, quando eu tinha oito anos, e isso foi o catalisador da minha vida, que estabeleceu um antes e um depois. A ausência, a perda e o luto levaram-me a procurar uma forma de lidar com isso, por isso, coloquei-me num lugar de silêncio e de plena escuta, uma criança que observava os outros. Isso fez-me ganhar uma grande paixão pela matéria humana…
E terá sido esse o estímulo para te tornares artista?
Penso que sim. Até porque criar é, também, uma forma de comunicar com a minha mãe. Inconscientemente, nos meus espetáculos, estão sempre presentes figuras maternas e pessoas que, embora sendo já adultas, procuram voltar a ser crianças.
Sei que o cinema foi a tua primeira paixão…
Costumo dizer que o cinema me salvou a vida e, particularmente, um filme – À procura de Nemo [de Andrew Staton, 2003]. Lembro-me de vê-lo e pensar: “eu não sou o único a perder a mãe, isto existe no mundo, outras pessoas passam por isto”. Ajudou-me muito a encontrar forma de lidar com a dor e o luto. Mas, antes disso, já havia o gosto pelos filmes, e inevitavelmente isso está muito ligado ao que vivi com a minha mãe e àquilo que tanto nos uniu: os filmes que víamos juntos. Era muito novo e recordo uma coleção de VHS que saía com a revista TV Guia, penso que chamada qualquer coisa como “os filmes da nossa vida”. Foi assim que descobri um filme que, embora a minha mãe tenha referido não ser adequado para a minha idade, vi às escondidas e me fez apaixonar pelo cinema: Beleza Americana [de Sam Mendes, 1999].
O que te fascinou?
Naturalmente não percebia muito bem o que estava a ver, mas aquela sucessão de imagens, aquelas personagens e as histórias paralelas, o casal protagonista, a filha, os vizinhos… acho que foi ali, ao ver tudo aquilo, que nasceu a minha paixão pelo cinema.

E como é que o teatro aparece na tua vida?
Não tinha grandes referências no teatro. Morava na zona de Alverca e, entre Vila Franca de Xira e Moscavide, locais onde cresci, não havia propriamente o mesmo acesso que se tem em Lisboa. Por isso, o teatro entra na minha vida apenas na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), à qual fui parar porque queria fazer cinema, depois de ter feito Humanidades e julgar ter poucas hipóteses de entrar…
Portanto, era cinema que pretendias estudar…
Queria fazer o curso de Realização mas, a dada altura, estava a ver um filme e percebi que não me bastava criar imagens – eu queria estar dentro das imagens! Por isso, entrei na ESTC para o curso de Teatro – ramo de atores, apenas porque aquilo que pretendia verdadeiramente era ser um ator de cinema.
Logo no final do curso, surge o primeiro projeto em nome próprio. Como é que isso sucedeu tão prematuramente?
Eu tinha um texto que escrevi especificamente para 12 atores, pessoas do meu ano de curso, mas que não pretendia, de modo algum, ser eu a dirigir. Não queria fazê-lo porque sentia haver gente muito mais bem preparada para isso. Fiz vários convites, deixando apenas a exigência de serem esses 12 atores a interpretá-lo, já que aquele texto era uma carta de amor àquelas pessoas em concreto. O certo é que acabei por ser eu a encenar a minha primeira peça, É possível respirar debaixo de água [2015], num espaço do Martim Moniz, a Manteigaria. E menos de dez anos depois, estou a estrear a minha décima criação…
Precisamente. E, a julgar pelo título, será esta a tua peça mais cinematográfica?
Progressivamente, acho que as minhas criações vão estabelecendo uma ligação mais estreita com o cinema. Parece que me tenho aproximado cada vez mais dessa busca, procurando perceber como é que o teatro e o cinema se podem fundir e podem dialogar.
Aquilo que se pode ler na sinopse de Quando eu morrer, vou fazer filmes no inferno! parece remeter para o cinema de género, com uma mulher ameaçada, surpreendida por dez estranhos que lhe invadem a casa…
Sim, este espetáculo tem uma forte ligação com os temas do obscuro, do mistério, da assombração e da ameaça. Queremos, para já, que tudo se mantenha o mais críptico possível, mas posso avançar que este é, também, um espetáculo sobre relações altamente íntimas, altamente tóxicas. E também sobre a própria criação artística, no caso, sobre o cinema português num futuro próximo…
E é dedicado à tua mãe…
Uma das razões que me levou a fazer este espetáculo foi um diário que a minha mãe escreveu. Antes de falecer, percebi que ela estava a passar por uma grande depressão, falando recorrentemente da sensação de se sentir observada e de poder ser atacada a qualquer momento. Esta ideia do grupo de estranhos que entra pela casa adentro foi uma forma de materializar o estado de ansiedade em que vive alguém que sente que a qualquer momento algo de muito mau pode acontecer. Como o público depois irá perceber, esta situação de ansiedade vai concretizar-se fisicamente, como um cancro. Para além disso, uma das personagens tem o nome da minha mãe e há a invocação de um conjunto de figuras da minha família.
Este projeto acontece no momento certo?
Na verdade, ando há uns seis anos a tentar fazê-lo. Era para ser a minha quinta criação e vai ser a décima. Claro que esta é para aí a 40.ª versão do texto. É um espetáculo que necessita de uma equipa muito grande, tem 12 pessoas no elenco, e a força dele deve-se também a elas.
Um elenco com muitos dos artistas que costumam trabalhar contigo e alguns estreantes, como por exemplo a Lúcia Moniz…
Não é por estarem comigo, mas são um elenco de sonho. Para já, há as pessoas que começaram comigo, e das quais digo sempre que falar do meu trabalho é também falar da Cléo Diára, da Ana Valentim, da Rita Rocha Silva ou do Pedro Baptista. Depois, estou pela primeira vez a trabalhar com pessoas que adoro como a Alice Azevedo e o Leonardo Garibaldi, que para além de ator é também o produtor do espetáculo. Quanto à Lúcia Moniz… reservei para ela a figura, digamos, central e primordial…
A “mãe”, a figura materna?
A personagem da “mãe”, a Otília – tem o nome da minha mãe, mas não é a minha mãe –, levou-me, pela primeira vez, a trabalhar com alguém fora da faixa etária do grupo. E o certo é que a Lúcia trouxe uma grande frescura tendo levado, de repente, o espetáculo para um lugar que eu não pensava de antemão.
Como é que escolheste a Lúcia Moniz?
Foi a intuição de que era a pessoa certa. Já tinha falado algumas vezes com ela aquando de Anima [2022], um projeto do Pedro Batista, em que ela esteve para entrar. Não sei se por causa de O Amor Acontece [filme de Richard Curtis, 2003] [risos], sempre tive pela Lúcia uma grande empatia e carinho, embora não nos conhecêssemos pessoalmente. O certo é que havia de haver um encontro meu com ela e, quando por fim aconteceu, pareceu que já tínhamos estado juntos várias vezes. A verdade é que a Lúcia veio mexer no bom sentido com a dinâmica do grupo, e eu não poderia estar mais feliz por ser ela a fazê-lo.
Em 2021 recebeste o Prémio Revelação Ageas/Teatro Nacional D. Maria II. Estar hoje a poucos dias de estrear um projeto teu numa instituição como a Culturgest também se deve a isso?
Os prémios ajudam sempre qualquer coisa e esse, especialmente, permitiu que começassem a surgir as coproduções com instituições como o CCB ou a Culturgest, ou o apoio da Direção-geral das Artes (que só aconteceu à minha oitava criação), e até a atenção da imprensa… até aí, trabalhávamos à bilheteira, naquele regime de ensaios à noite com as pessoas a virem de outros trabalhos, e muito raramente nos atendiam o telefone quando procurávamos apoios. Embora reconheça ser um privilegiado, é sempre bom quando sabes que há quem te esteja a observar e a reconhecer um percurso, quanto foi preciso lutar e trabalhar para encontrar um lugar. Mas, os prémios não solucionam tudo e problemas como a falta de dinheiro e de meios persistem na atividade artística. Por isso, e como sempre, a luta continua.
Diretor artístico da Plataforma285, ao lado de Cecília Henriques, Raimundo Cosme anda embrenhado no novo espetáculo do coletivo, que se há de estrear a 29 de janeiro, no Teatro do Bairro Alto. Crice Crice Baby, em cena até 1 de fevereiro, define-se em negação: “Não é uma ode à resiliência. Não é uma romantização da resistência. Não é um apelo à perseverança. Mas também não é um último reduto”, sublinham na apresentação do que descrevem como “um concerto-performance-acontecimento transpirado”. Quase a chegar ao palco, estes são dias de ensaios e de experimentação de ideias, até porque, fazem questão, nunca põem de pé dois espetáculos iguais. “Gostamos de trabalhar sempre com o que não dominamos. Acho que se alguma vez a forma de fazer espetáculos ficar sólida me reformo. Garantindo todas as condições necessárias, agrada-me este privilégio de estar num sítio pela curiosidade e pelo amor”, diz Raimundo. Neste processo de trabalho e por causa do doutoramento que está a fazer, tem mergulhado nas páginas de dois livros que aqui sugere, mas, para esta semana, não faltam outras recomendações – para quem gosta de sair à rua e para quem prefere ficar em casa.
fio^, de Inês Campos
9 a 11 janeiro
Teatro do Bairro Alto
Raimundo Cosme confessa que nunca viu nenhum espetáculo de Inês Campos, mas este, que junta as linguagens da dança, da música, do teatro visual, da poesia e do storytelling, prendeu-lhe a atenção. “Na Plataforma285, vimos do teatro, mas estamos a trabalhar cada vez mais com artes performativas, indo buscar artes visuais e música para os nossos espetáculos. É uma luta, esse trabalho, e interessa-me ver como outras pessoas a resolvem”, diz. Já pôs, por isso, na agenda rumar ao Teatro do Bairro Alto para ver fio^, uma peça sobre as narrativas e os diálogos internos que acontecem dentro das nossas cabeças. “O TBA é um sítio onde têm aparecido muitos nomes que não conhecia, apresentados sem etiquetas paternalistas, e onde tenho feito muito boas descobertas, tanto nacionais como internacionais.”
Agressive Girls
10 janeiro, 22h
Galeria Zé dos Bois
Em Crice Crice Baby, haverá uma banda em palco, as Agressive Girls, e, nem de propósito, esta é a semana em que dão um concerto na Galeria Zé dos Bois, numa noite onde atuam também Bleach Mane & Mizu, warupmaria, 7777 の天使 e Um6ra. “São uma banda de punk eletrónica, queer, feminista, tudo o que é importante. São muito lindas, têm muita força e muita energia, vale muito a pena ir vê-las. Ainda por cima, num espaço mais intimista como a ZDB. Foi a Cecília que, ainda antes de sabermos o que ia ser este espetáculo, disse que gostava que elas estivessem connosco. Fui ouvi-las e gostei muito, são incríveis.”
Endless Sun: Capital Blindness, de Hugo de Almeida Pinho
Até 16 fevereiro
Carpintarias de São Lázaro
Inaugurou em dezembro, esta mostra de Hugo de Almeida Pinho, com curadoria de Paulo Mendes, “sobre a ideia de políticas solares e as suas implicações críticas em diversas esferas energéticas, biopolíticas e tecnológicas”. Para Raimundo Cosme, não se deve perder a oportunidade de ir às Carpintarias de São Lázaro, para a ver. “É uma exposição tão consistente, estruturada e depurada. O Hugo de Almeida Pinho trabalha no detalhe a ideia do sol e da luz do sol e constrói peças de arte visual a partir daí. É linda e muito inteligente.”

A Vida, Segundo Philomena Cunk
Netflix
Está disponível desde 2 de janeiro, este novo filme de Philomena Cunk, personagem delirante, criada pela atriz inglesa Diane Morgan, que faz documentários sobre assuntos que não domina de todo. “É tudo muito fantástico: a leviandade com que ela fala, a caras dos especialistas que entrevista, as teorias que apresenta e que nos fazem rir mas que, na verdade, não andam longe de muitas defendidas hoje por negacionistas e outros…”, afirma o ator e encenador. “Adoro a seriedade com que ela faz aquilo – nunca resultaria em teatro, mas funciona mesmo bem ali num programa de falso documentário. Além disso, a atriz tem alguma coisa, no olhar, de Lucy McCormick, uma artista incrível que também vai estar em Lisboa e que recomendo já”, adianta Raimundo, referindo-se ao espetáculo Lucy and Friends, que estará no TBA, nos dias 14 e 15 de fevereiro.
Love Has Won: The Cult of Mother God
HBO Max
Outra sugestão para ver em streaming, este documentário sobre a vida e a morte de Amy Carlson, uma “salvadora espiritual”. “É uma história muito americana, mas muito interessante. Sou fascinado por cultos e pela forma como as pessoas os seguem sem pensar. A humanidade sempre precisou de fugas e salvações, mas é incrível como as pessoas acreditam em tudo quando querem. Fascina-me a incapacidade de lidar com a inevitabilidade da morte e do drama, quando devíamos estar antes preocupados em deixar o legado de um mundo melhor e memórias de felicidade. Estas crenças não andam muito longe dos populismos que vemos hoje.”
Reality Shows – Ritos de Passagem da Sociedade do Espectáculo, de Eduardo Cintra Torres
Edições Minerva Coimbra
A tirar um doutoramento em Artes Performativas, partindo do primeiro espetáculo da Plataforma285, Raimundo Cosme tem lido e relido este livro de Eduardo Cintra Torres, um autor a quem recorre com frequência. “Gosto muito dos livros dele e este permite-nos pensar no fenómeno da televisão, mas também no impacto da ideia de ‘ser conhecido’ e dos reality shows no nosso imaginário coletivo. Interessa-me bastante este tema da sociedade do espetáculo. Sou da geração do nascimento da SIC, em que se passou a dar primazia ao entretenimento, e nos nossos espetáculos pensamos muito no que é isso da alta e da baixa cultura.”
The Virtues Of Underwear – Modesty, Flamboyance And Filth, de Nina Edwards
Reaktion Books
Na conceção de Crice Crice Baby, Raimundo Cosme descobriu este livro, que ainda não está traduzido para português. “O tema da roupa interior e da sua representação nas artes interessa-me muito. Tem bastante a ver com o que estamos a preparar nesta criação e gosto de pensar nos significados que uma peça de roupa interior, que começa por ser uma coisa comum, pode ganhar ao longo do espetáculo. Tenho lido este livro e pensado muito na forma como vamos conseguir montar espetáculo”.
Para responder a essa tendência, diversos espaços têm-se dedicado a promover cursos e oficinas, tanto para iniciantes, como para pessoas experientes nessas práticas artesanais. Mas o que esses espaços oferecem vai muito além da aprendizagem técnica; eles criam verdadeiras redes de conexão e troca de experiências entre os participantes.

Retrosaria Rosa Pomar
Rua Maria Andrade, 50A / 213 473 090
Na Retrosaria Rosa Pomar somos recebidos por muita cor, graças aos novelos, meadas e tecidos que forram as várias mesas e estantes do amplo espaço. Aquela que é considerada uma referência na cidade para os amantes de tricô tem como principal missão valorizar as lãs de ovelhas portuguesas. “O nosso foco principal e diferenciador em relação às outras lojas é o facto de nós fazermos os nossos próprios fios, exclusivamente com lã de ovelhas de raças autóctones portuguesas. Já temos mais de uma decada de trabalho em prol da defesa dessas raças e do aproveitamento dessa matéria-prima. Além de fazermos um trabalho de valorização das lãs autóctones, criamos uma série de fios para tricô, diferentes uns dos outros, com a lã das várias raças, que também exportamos para o estrangeiro”, conta-nos Rosa.
Para lá do comércio de fios, a retrosaria aposta também na formação, algo que está presente desde o ínico da loja e que surgiu devido a “uma lacuna no mercado”. Os workshops de tricô são dados pela própria, mas há mais labores na área têxtil para aprender ou aperfeiçoar, sempre através das técnicas tradicionais, como é o caso do croché, diferentes tipos de bordados, tapeçaria, costura, entre muitos outros. “Ensinar as pessoas a trabalhar com as mãos é uma coisa muito bonita de se fazer. As pessoas saem daqui com um grande sorriso e, muitas vezes, orgulhosas de uma nova conquista. O facto de ser capaz de criar uma coisa com as próprias mãos é um poder que se tem perdido muito ao longo do tempo, mas que é fantástico e que traz muita alegria e bem-estar”.

Auri Retrosaria
Rua Oliveira Martins, 10E / 961 201 042
A Auri é uma retrosaria tradicional, daquelas à antiga, onde há novelos de lã, carrinhos de linha, kits de costura e todos os acessórios imagináveis para os ofícios com agulhas um pouco por todo o lado. Fundada em 1961, assume-se como mais do que uma loja, é um espaço de convívio. Prova disso são os encontros semanais de tricô que promove e que, inclusive, se estendem para fora de portas: “Temos uma situação muito engraçada, que é o Museu do Tricô. Todos os meses, um grupo de senhoras visita um museu e tricota nesse museu. E também fazemos retiros de fim de semana. É muito giro, é uma coisa fabulosa”, diz Adelina, a atual proprietária do espaço.
Além de aulas de tricô, a loja oferece também aulas de croché, bordado em lã, patchwork e costura criativa e, no âmbito do Projeto RADAR da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que tem como objetivo a promoção de bairros mais solidários, comunicativos e atentos à população com mais de 65 anos em situação de risco de isolamento e de solidão não desejada, atua de forma integrada para contribuir para o bem-estar e melhor qualidade de vida destas pessoas através do ensino do tricô. Essa técnica de entrelaçar o fio é, aliás, a maior aposta da Auri, como esclarece Adelina: “O nosso forte é o tricô. Todos os anos vamos ao Jardim Fernando Pessa celebrar o Dia Mundial de Tricotar em Público e também temos o Jornal do Tricô, que tem uma peridiocidade mensal”.

Associação dos Artesãos da Região de Lisboa
Rua de Entrecampos, 66 e 66A / 217 962 497
Desde 1982 que as Oficinas de Artes e Ofícios da Associação dos Artesãos da Região de Lisboa (AARL) ensinam diversos saberes, disponibilizando cursos nas mais distintas áreas, como a cerâmica criativa e figurativa, conservação e restauro de loiças, encadernação, olaria, pintura em azulejo, restauro de mobiliário, entre outros. Aliás, quem entra no n.º 66 da Rua de Entrecampos não imagina o que o espaço esconde assim que se desce à cave. Várias oficinas apetrechadas com todo o material necessário para desenvolver os mais diversos ofícios, todas com trabalho a acontecer, o que torna aquele lugar num sítio de convívio e partilha. Na área têxtil, a associação oferece cursos em tecelagem, bordados e Arraiolos, onde se aprendem técnicas tradicionais portuguesas.
A AARL dá apoio aos sócios na divulgação e venda dos seus produtos, mas, de acordo com Carina Trigueiros, “a base da associação sempre foi a formação”. “É um dos nossos pilares. A formação sempre foi muito importante nos objetivos da nossa fundadora; o chegar às pessoas, a toda a gente. As nossas aulas não têm limite nem de idade, nem de género, nem se é sócio ou não, toda a gente pode participar”, diz. “As pessoas vêm aqui por vários motivos: algumas vêm só aprender uma coisinha, umas vêm para se distrair, outras vêm para aprender técnicas, para desenvolverem trabalhos seus. Há, inclusive, pessoas que, ao fim de um tempo de cá estarem, abrem o seu negócio, tornam-se mesmo artesãos”.

FICA – Oficina Criativa
Rua de Arroios, 154B / 913 190 670
O espaço é muito amplo e luminoso. Ali, tudo está preparado para se deitar mãos à obra. Os 300m2 abrem-se a curiosos e profissionais que queiram aprender um ofício – através dos workshops, oficinas ou masterclasses -, ou realizar os seus próprios projetos, seja de forma independente ou com ajuda personalizada – através do Ginásio de Ofícios, uma modalidade onde todos podem usufruir da oficina totalmente equipada com máquinas e ferramentas para os executar. Aquele que se assume como um espaço criativo, e para o qual a democratização do saber e do acesso a oficinas técnicas é prioridade, oferece formação em áreas tão diversas como a serigrafia, a marcenaria, a cerâmica e o têxtil.
No que respeita a este último ofício manual, a FICA dá workshops de tufting, punch needle, tecelagem, bordado sobre tecido, iniciação ao bordado, tapeçaria, croché, esmirna, entre outros. O objetivo, segundo Rita Daniel, “é transmitir ao máximo aquilo que são as técnicas manuais e os ofícios manuais, tentando ter uma oferta um bocadinho pragmática. Apesar dos nossos workshops estarem focados para a transmissão da técnica num sentido muito direto e prático, não queremos facilitar aquilo que é o ofício e aquilo que implica o saber fazer; a ideia é a pessoa ter um conhecimento que lhe permita, depois, valorizar as peças que são feitas à mão e valorizar o artesão em si”.

Artlier
Rua Gervásio Lobato, 47B / 933 932 532
Escola de artes e ofícios, o Artlier junta o conhecimento e o lazer, apresentando-se como um espaço de partilha de saberes, de aprender pelo fazer e aprender o saber fazer. É um lugar de contar histórias e estórias de pessoas e costumes, um lugar de resgatar tempo e tradições, e fá-lo através de cursos, workshops e oficinas em áreas tão distintas como o têxtil, a madeira, a cerâmica, a pintura e o desenho. Em relação ao têxtil, Joana Teixeira interpela-nos: “o têxtil é um mundo, não é? É uma portinha que se abre e é gigantesca”.
Nesta área, o Artlier oferece formação, entre outros, no clássico tricô, croché, tapeçaria, bordado de Arraiolos, bordado livre em papel, remendo de malha e remendo de tecido, sendo estes dois últimos os workshops mais recentes, e Joana explica porquê: “A escola começou em 2002 com restauro de móveis e restauro de madeiras. E, ao longo deste tempo, foram-se acrescentando mais, mas sempre numa vertente de recuperação, de restauro, de reparação. Além disso, o processo de remendo alia a importância ambiental de um guarda-roupa mais circular e os benefícios mentais e criativos da costura manual”. O objetivo deste workshop é aprender formas de recuperar e intervir em peças de roupa danificadas, prolongando o seu uso e conferindo-lhes mais valor.
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