Passaram muitos anos sobre Transfer e agora voltamos a ter um texto original da Carla Bolito. Porquê tanto tempo?

Acho que a escrita, tal como a encenação, tem de surgir como um apelo ou, se quisermos, uma urgência, como um desconhecido que quero conhecer. E isso é como quando nos queremos apaixonar: podemos querer muito, mas nem sempre acontece.

Mas agora, voltou a acontecer…

Embora esteja a trabalhar com um jovem dramaturgista moçambicano que está em Portugal a fazer um mestrado, o Venâncio Calisto. É verdade que comecei a trabalhar sozinha neste projeto, mas depois senti a necessidade de ter uma visão de dentro, digamos assim. Afinal esta é uma peça sobre Moçambique…

E sobre a sua própria vida também.

Digamos que este é um espetáculo sobre os despojos do passado de uma família colonialista. Por acaso, é a minha. Mas, mais concretamente, o que despoleta tudo é uma cabeça de marfim, “a minha cabeça” que não é, no sentido literal, mesmo a minha cabeça. [risos]

Então, podemos saber um pouco mais sobre a “sua” cabeça… de marfim?

A cabeça a que o título se refere existe mesmo. É uma peça de marfim que veio com a minha família de Moçambique após o 25 de Abril. Recentemente, senti a necessidade de tirar esse “esqueleto do armário”. Afinal é o dente de um animal, um elefante que foi morto por causa disso mesmo. Durante anos, tive uma enorme incapacidade de lidar com o objeto, até que me apercebi que é semelhante ao espólio escondido com que muitos filhos de retornados têm de lidar. Porque, afinal, quem é que quer exibir algo que, por muito bonito que seja, provém de um crime que é a morte de um animal e que, ao mesmo tempo, parece ter estampada a marca do colonialismo?

O que a levou, agora, a tirar esse “esqueleto do armário” e com ele inspirar uma peça de teatro?

Confesso que este espetáculo não nasceu de uma necessidade de expiação. Acho que ele parte mais daquilo que é até bastante comum a todas as famílias, ou seja, o não dito, o não contado, as omissões e, muitas vezes, as mentiras. Durante muitos anos, o meu pai anunciava à família que a cabeça era minha. Lembro mesmo, sempre que ia a casa dos meus pais, de o ouvir “leva a tua cabeça” [risos]. E eu respondia em surdina: “nem pensar!” Um dia tive mesmo que assumir que a cabeça era minha e tomar posse dela. Foi quando me apercebi da existência que quantos e quantos passados de marfim escondidos podem existir, e com eles chega o tempo de exibir diversas perspetivas possíveis de se ter perante um objeto como aquele.

“Não gosto nada de monólogos. O teatro serve para estarmos com pessoas.”

Estamos, portanto, a falar de uma peça de teatro documental e biográfico?

Não. Até podemos partir de algo que é meu, mas eu tenho imensos pruridos com o teatro documental ou o autobiográfico. Não me apetecia nada começar com “eu sou a Carla Bolito, nasci em Moçambique em…” Digamos que não é de todo a minha praia, embora goste de ver e destaco o bom trabalho de muitos colegas no género. Para mim, o teatro tem de ser mágico, e precisamos sempre de erguer um universo para onde o público seja atraído por algo que é enigmático.

Mas a Carla está lá, a sua família também…

Mas eu prefiro usar o teatro para testemunhar a minha história. Ou seja, esta é a história que eu quero contar.

Estando, então no campo do teatro, que história é essa?

Os elementos biográficos estão lá, mas eu descosi-os e voltei a coser com os elementos da história de Moçambique – a história daquele país antes da chegada dos portugueses. A peça atravessa várias épocas, porém, evita fazer qualquer tipo de reconstituição histórica.

E como é que chegou a essa história tão pouco contada de Moçambique?

Aconteceu quando tirei, precisamente, o “dente do armário” e fui procurar inúmeros estudos antropológicos que são determinantes para conhecer a história dos povos moçambicanos. Um livro extremamente importante nessa pesquisa foi Kupilikula de Harry West [publicado em português pelo ICS – Instituto de Ciências Sociais] acerca da feitiçaria, no caso, aquela que era feita para desfazer feitiços. E o que me fascinou, até como matéria dramatúrgica, foi esse tema ser essencial para analisar e compreender a realidade histórica. Outra surpresa que tive ao longo desta pesquisa foi descobrir nas estantes do meu pai, atrás das estatuetas de pau-preto, tanta coisa sobre a história daquele pais onde ele chegou com 17 anos e onde, mesmo estando distante, nunca deixou de ter a cabeça. Todas estas coisas estão na peça.

Sei que tem a decorrer um processo de certificação, a que a legislação obriga para a criação do registo das peças de marfim com mais de 40 anos. O que se sabe da cabeça de marfim?

Sei que o estilo de estatuaria aparenta ser das tribos macondes do nordeste de Moçambique, mas geram-se dúvidas devido à coroa com dois andares que ostenta. Ainda não consegui descobrir se é um objeto artístico, o que pode até implicar uma amplitude histórica ainda mais relevante, ou se é uma peça de artesanato, o que a torna mais comum.

Em palco, vai ter consigo dois atores. Não lhe apetecia nada um monólogo?

Não gosto nada de monólogos. O teatro serve para estarmos com pessoas. Só estou sozinha quando não há dinheiro para mais. Aqui vou ter a Kimberley Ribeiro, perfeita para a linguagem coreográfica que também pretendia dar ao espetáculo, e o Daniel Martinho, porque queria ter um ator negro a interpretar um personagem branco para, simbolicamente, dar uma bofetada nas convenções.

Poemas Eróticos da Antiguidade Clássica

O poeta grego Hesíodo, escreve na sua teogonia, que no começo do mundo foram criados o caos, depois a terra e em seguida o amor (Eros), vendo nele uma das forças inaugurais do universo. O termo Erótico provém da palavra grega eros (desejo amoroso) designando o amor e a sexualidade. O erotismo joga com a imaginação e a criatividade e tem sido uma fonte de inspiração na arte e literatura. Nesta antologia estão presentes todos os grandes poetas da Antiguidade Clássica – Safo, Homero, Sófocles, Eurípedes, Catulo, Horácio, Virgílio ou Ouvídio – numa seleção de mais de 40 autores e 200 poemas que revelam o modo como o erotismo era vivido na Grécia e Roma antigas, as suas diferentes manifestações e a forma como era cantado enquanto tema central da poesia. Victor Correia, organizador, prefaciador e autor das notas da presente edição, conclui deste conjunto de poemas que “a sexualidade e as suas mais variadas formas, tendo como objetivo o gozo e o prazer, é algo que existe e é exaltado desde sempre”. Como cantou Sulpícia, poetisa que viveu durante o reinado de Augusto e ficou ignorada: “Conheci finalmente o amor! / Mais vergonha teria de o esconder, que de revelá-lo a toda a gente.” Guerra & Paz

Exterminem Todas as Bestas

Sven Lindqvist

“O cerne do pensamento europeu? Sim, há uma frase, uma frase curta e simples, somente algumas palavras, que resume a história do nosso continente, da nossa humanidade (…). Nada diz sobre a Europa como local de origem do humanismo, democracia e solidariedade social na Terra. Nada diz de tudo aquilo de que nos orgulhamos com razão, simplesmente conta a verdade que preferimos esquecer”. Esta obra fascinante, misto de livro de viagens, relato autobiográfico e reflexão sobre a teoria e prática da expansão imperialista, é a crónica de um homem que percorre de autocarro o deserto do Saara e, paralelamente, pesquisa no computador a história do conceito de extermínio. O viajante do deserto concentra-se numa frase de O Coração das Trevas de Joseph Conrad: “Exterminem todas as bestas”. Conrad surge-lhe como um autor profético que previu todos os horrores vindouros. Este processo fá-lo descobrir que a destruição das “raças inferiores” dos quatro continentes por parte da Europa, acompanhada por uma defesa impúdica do extermínio, criou hábitos de pensamento e precedentes políticos que abriram caminho para atos terríveis, culminando no Holocausto. Caminho

Manual de Auto Defesa

Luci Gutiérrez

Basta folhear as primeiras páginas deste livro para perceber que se trata de um objeto singular do qual emana uma estranha sedução. Luci Gutiérrez, a autora, é uma ilustradora que nasceu em Barcelona em 1977. Os seus desenhos, claros e cheios de ironia, têm sido publicados nos jornais e revistas mais importantes do mundo, tais como o New York Times, o Washington Post, o Wall Street Journal ou a revista New Yorker (a ilustradora viveu em Nova Iorque, onde regressa sempre que pode). Luci diz que a sua “verdadeira vocação é observar aquilo que a rodeia, incluindo a própria pele”. Ora, este livro revela, justamente, um olhar acutilante sobre os outros, pondo a nu o ridículo e a mesquinhez que atravessam os nossos tempos mas, em contrapartida, não hesita em revelar os medos mais íntimos da autora. Tudo num expressivo desenho a preto e branco e com um humor negro que, por vezes, se aproxima do surrealismo. Escreve Luci Gutiérrez sobre os seus desenhos: “Seja como for, esta é a minha forma de digerir a realidade, de dar um rosto ao monstro em que a fealdade humana se pode transformar, de o tornar animal de companhia. Mesmo que da digestão nasça outra monstruosidade.” Orfeu Negro

O Príncipe com Orelhas de Burro
José Régio

O escritor, poeta, dramaturgo, romancista e ensaísta, José Régio, fundador da revista literária Presença que marcou o segundo modernismo português, definiu a sua obra de ficção O Príncipe com Orelhas de Burro, publicado em 1942, como uma “história para crianças grandes”. Deslumbrante fábula moral, a narrativa do príncipe Leonel evolui através de uma extraordinária estrutura dialética, jogo de espelhos que a cada imagem (ou tema) devolve o seu reverso: à perfeição, a monstruosidade; ao sonho, a realidade; ao bem, o mal; ao mistério, a ciência; à felicidade, a dor; à normalidade, a transgressão; ao luxo, a miséria; à luz, as trevas. Obra que é uma narrativa “sem tempo” para o nosso tempo, num lugar imaginário (o reino da Traslândia) que é, afinal, também o nosso. Sátira ao poder político, crítica de costumes, mas, sobretudo, reflexão profunda sobre a condição humana, protagonizada pela nobre e comovente figura do príncipe Leonel: aquele que fugiu “à tentação das aparências” e viu o “terrível avesso da superfície bela”. Um livro magnífico e singular na literatura portuguesa que urge (re)descobrir. Agora numa belíssima edição de grande apuro gráfico. Opera Omnia

Dicionário de Artistas
Gonçalo M. Tavares

“O mundo foi riscado por uma criança e ainda não recuperou”, escreveu Gonçalo M. Tavares sobre a obra de Jean-Michel Basquiat. Desde outubro de 2020, o escritor criou pequenos textos sobre artistas contemporâneos que foram sendo publicados semanalmente nas plataformas digitais do Centro Cultural de Belém, no ciclo Dicionário de Artistas. Obras de artistas como Bill Viola, Christian Boltanski, Christo, Cindy Sherman, Damien Hirst, Joseph Beuys, Louise Bougeois, Lucien Freud, Sol LeWitt ou Nan Goldin surgem como ponto de partida destes textos, como “indício visual para a linguagem se pôr a caminho”. Escritos reunidos no presente volume, com imagens d´Os Espacialistas. Os leitores familiarizados com a prática literária do autor não esperam textos descritivos, didáticos ou explicativos. E acertam em cheio! Partindo de um pormenor, detalhe ínfimo ou centro centralíssimo da obra de um artista, estes textos vão para outro local qualquer. “Como um animal que tem fome parte do ninho para um ponto onde pressente o alimento, assim parte o texto à sua vida. Os textos deste Dicionário são seres autónomos que saem à rua livres e bem sozinhos depois da meia-noite.” Relógio D´Água

Lançado este mês de fevereiro, Cabeças de Vento junta a música à poesia para, de uma forma leve e divertida, despertar nos mais novos – e não só –a consciência ambiental e a relação com a natureza. “Muitas crianças passaram um bom pedaço das suas vidas confinadas e, para a maioria, esse confinamento não permitiu o contacto com o ar livre. Como é que podemos pedir aos mais pequenos para cuidarem do planeta se eles pouco ou nada saem de casa? Foi aí que decidimos fazer um livro que provocasse neles a vontade de sair para a rua, de descobrir as coisas lá de fora, do mundo natural. Cabeças de Vento é uma chamada ao ar puro, é um convite a sair de dentro de quatro paredes e a largar os ecrãs e a ir lá para fora brincar, conhecer e explorar”, avança Inês.

O projeto, que pretende, desta forma, “sensibilizar para a vida no planeta, que ultrapassa enormemente a dimensão humana”, consiste num livro ilustrado que permite aceder, através de um código QR, a músicas de inspiração folk rock e tradicional. “A ligação entre a ilustração, a poesia e a música é uma coisa natural em nós e que começou em 2002 com o livro Buscapólos, com poemas do José Jorge Letria. Na verdade, para nós, tem a ver com uma orgânica natural das coisas”, diz Ricardo. Já Inês, considera que, “de facto, a música ajuda a manter mais tempo o livro na vida dos miúdos; reforçando a presença da mensagem na vida deles”.

A obra física, que conta com poemas e fotografias de Inês e ilustrações de Ricardo Machado, transforma-se já no próximo fim de semana num “espetáculo espetacular”. “Este concerto é a possibilidade de transpormos as canções para palco, com banda, que é algo que caracteriza os trabalhos que fazemos. Nós gostamos sempre que a música seja mostrada em conjunto com outros músicos”, esclarece Ricardo. Em palco, para além da voz de Inês e Gonçalo, podem ouvir-se (e ver-se!) instrumentos musicais com diferentes sonoridades, como o ukelele, a guitarra, o bandolim, a bateria, o violino e o contrabaixo. “Vai haver muita interatividade com o público. Queremos pôr a plateia a cantar!”, promete o músico.

Outros projetos

Esta não é a primeira vez que a escrita de Inês se alia à música de Gonçalo. A dupla é também autora do Galo Gordo, um dos mais marcantes projetos artísticos para a infância em Portugal, que já conta mais de uma década de existência e, por isso, já tem “vida própria”.

A casa sincronizada – Uma História Musical, foi outros dos trabalhos da dupla. O livro, ilustrado por Pedro Brito e dirigido a crianças, pais, avós, professores e educadores, nasceu em 2009, em formato de programa televisivo para a infância, e venceu o Prémio SPA/RTP 2012 na categoria de Melhor Livro Infanto-juvenil.

Já durante a pandemia, Inês e Gonçalo lançaram uma coleção intitulada Embala Bebé, que conta com seis audiolivros pensados para crianças até aos 3 anos.

Até dezembro estão previstas quatro exposições, com curadoria de Patrícia Rosas e Rita Albergaria e direção de Benjamin Weil. “Estando instalados em locais totalmente distintos, pretende-se chegar a comunidades e tipos de público também distintos”, avança Weill. As primeiras, de Rui Toscano e Carlos Bunga, podem ser vistas em Benfica e no Terreiro do Paço até 30 de julho.

Rui Toscano

Music Is the Healing Force of the Universe #4, 2021-2022

Rui Toscano, um dos artistas convidados, concebeu um projeto inédito para um contentor localizado na praça do Centro Comercial Fonte Nova, em Benfica. Trata-se de uma escultura original que abre um novo contexto narrativo na sua obra. Partindo de uma imagem de uma pintura de um prato de cerâmica da Grécia antiga, na qual o deus Dionísio toca uma lira ladeado por dois sátiros que dançam agitando um par de castanholas, o artista criou uma instalação pintada diretamente em vidro acrílico, com sobreposição de duas imagens e com luz projetada por trás.

“Esta peça surge na continuação de uma série em que tenho trabalhado, para a qual tenho vindo a fazer uma pesquisa e recolha de imagens de representações de música a ser tocada em antigas civilizações. Interessa-me qualquer tipo de representação – seja pintura, escultura ou baixo-relevo – em civilizações como o Antigo Egito, Pré-colombiana ou Grécia Antiga. Nesta peça em particular, interessou-me trabalhar na distorção da imagem original: aqui, dupliquei as personagens e inverti as cores, como num negativo”, avança Toscano.

Carlos Bunga

Home

Junto à estação fluvial do Terreiro do Paço pode encontrar-se a instalação site-specific de Carlos Bunga, outro dos artistas convidados pelo CAM. Em Home, o artista português radicado em Espanha dá continuidade ao pensamento político – e poético – que tem desenvolvido em torno das ideias de nomadismo e de casa, aqui revelado e questionado.

Através do seu trabalho, onde recorre a materiais orgânicos e versáteis como cartão, fita adesiva e cola, Bunga não só encoraja os visitantes a repensarem a sua experiência do espaço e da arquitetura, como também evoca a natureza frágil e temporária das estruturas urbanas.

“Desde o primeiro momento que, tendo em conta a localização deste contentor, me interessou falar da ideia de viagem e de migração. O cenário de rio é fundamental para um projeto que é nómada e que é uma metáfora das nossas próprias casas. É também uma homenagem aos que não têm casa, aos que a perderam ou que estão em risco de perder. Esta peça tem uma grande componente de fragilidade e de efemeridade. E é feito com material simples por isso mesmo: para que possamos refletir sobre essa ideia de fragilidade”, diz Bunga.

Um projetor de acetatos, uma secretária, um teclado, um velho gravador de áudio para cassetes e um ecrã em fundo, é quando basta para Romeu Costa dar início a esta conferência-performance. Talvez seja prematuro, neste ponto, identificar o homem que nos fala pelo nome próprio e apelido quando, ele mesmo, apenas se anuncia como “Romeu”, assumindo, à boa maneira académica, a primeira pessoa do plural, o “nós”, para se dirigir à audiência.

Este investigador em Ciências Sociais dedicou-se, nos últimos tempos, a estudar a ligação entre o prazer e a culpa, usando as preferências musicais como reveladoras daquilo que somos. Mas, paulatinamente, a conferência científica, baseada em conceitos e números, vão revelando um ser humano que se martirizou durante anos por ter como “guilty pleasure” (à falta de melhor tradução, “prazer culposo”) a música pop cantada pela norte-americana Mariah Carey.

Afinal, quantos prazeres permanecem em segredo por vergonha e, no limite, nos impõem uma noção de culpa só porque podem ser censurados socialmente?

A entrada em cena da cantora de All I Want for Christmas is You (canção que, segundo um estudo científico evocado, potencia maior disponibilidade para fazer compras a quem a ouve no interior de lojas durante a quadra natalícia) vai diluindo o “nós” no “eu”. E estamos no território do “guilty pleasure” de Romeu Costa, aquele que foi, na década de 90 do século passado, um rapaz de Aveiro, homossexual, que ouvia e vibrava em segredo com os hits de Mariah Carey. “Há uns anos, eu não me atreveria a falar em público sobre a minha paixão por ela ou confessar que sei de cor a letra de Without You”, confessa o ator.

Romeu Costa acredita que “o gosto é uma forma de nos entendermos a nós mesmos.”

Marta Carreiras, que assina com Romeu Costa a direção artística do espetáculo, crê que, ao abordar esta temática do “gosto” como Maráia Quéri o faz, se lança para o debate “a necessária crítica ao cânone produzido pela academia bem pensante”. Afinal, “o que é isso do gosto que inclui e exclui, o que é isso da alta e da baixa cultura?”

Do mesmo modo, Romeu Costa, ao assumir como a figura da estrela pop se tornou parte da própria vida, e permitindo traçar com a vergonha do “gosto” uma analogia com a sua homossexualidade, chega mesmo a questionar “quem é que pode definir se Mariah Carey é ou não é boa música. Serão os mesmos que durante tanto tempo definiam que ser heterossexual é que é bom?”

Com a densidade dramática de uma confissão, o espetáculo acaba a gizar um retrato do próprio país, da última década do século passado até aos dias de hoje, e consequentemente do lugar desse mesmo país no mundo. Talvez por isso, e até no título “aportuguesado”, Maráia Quéri seja, como a dupla de criadores sintetiza, “um espetáculo sobre inclusão em oposição a exclusão.”

Com estreia remarcada para 16 de fevereiro, está em cena, na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, até 6 de março.

Há uns anos, numa ida ao Old Vick, em Londres, Diogo Infante assistiu a uma remontagem de Present Laughter de Noël Coward, e da boca do filho ouviu “tu devias fazer isto”, longe ainda de ter percebido os paralelismos que havia de encontrar no protagonista. O certo é que, aquela que é considerada a peça mais autobiográfica de Coward, está agora em cena no Teatro da Trindade, encenada e protagonizada por Infante, e com o irónico título O Amor é tão simples.

Adaptada à Lisboa dos anos 40 do século passado, “onde até existiam alguns fenómenos semelhantes no teatro da época”, a peça acompanha os caóticos dias que antecedem a partida do popularíssimo ator Guilherme de Andrade numa digressão por África. Para além de ter de lidar com as idiossincrasias da sua habitual “comitiva”, ou seja, a secretária, a ex-mulher, o agente, o produtor, o mordomo e a governanta da casa, Guilherme confronta-se ainda com uma jovem aspirante a atriz que se diz perdidamente apaixonada, um dramaturgo em início de carreira obcecado por estar na presença do ator, e a mulher do agente e melhor amigo, que está “fatalmente” determinada em seduzi-lo.

Perante uma sucessão de acontecimentos inusitados provocados por todas estas personagens, Guilherme começa ainda a debater-se com a marca incessante do tempo, pronunciada naquilo que é já uma crise de meia-idade instalada.

Quando Coward escreveu esta peça em 1938, perto de completar 40 anos (a estreia aconteceu uns anos depois, em 1942, dado o encerramento dos teatro londrinos devido à guerra), procurava para si mesmo “criar um papel de bravura onde se projetasse nas suas contradições, gostos e egocentrismo”, observa Diogo Infante. “E, como sempre, fê-lo com o seu humor inteligente e sofisticado, e um notável sentido crítico.”

Ao entregar-se ao texto e à personagem, Infante deu por si a descortinar pontos de contacto com a personagem de Coward. “Foi aí que me apeteceu brincar comigo mesmo, nomeadamente com a idade, agora que entrei numa fase da vida em que a imagem que me é devolvida começa a ser dura, uma sombra do que foi. Poder falar disso em palco acaba por ser bastante catártico”, assume.

Outra característica onde o ator e encenador encontrou semelhanças foi no poder e responsabilidade que Guilherme tem sobre a vida de outros. “Na peça, todas aquelas pessoas dependem dele, uma vez que é ele a estrela e quem lidera a companhia teatral. Enquanto diretor do Teatro da Trindade, ou até mesmo enquanto encenador, também eu determino o destino de algumas pessoas”. Se a isso juntarmos a popularidade que Diogo Infante tem como ator, as semelhanças com Guilherme de Andrade tornam-se ainda mais evidentes.

Embora O Amor é tão simples seja uma comédia onde a graça e a sofisticação convivem com aquela elegância tão britânica que só o autor de Private Lives e Design for Living conseguia imprimir aos seus textos, a peça está impregnada de uma densa melancolia. “Na verdade”, sublinha Infante, “o amor é tudo menos simples e aquilo que o personagem oculta, sendo tão amado e estando constantemente rodeado de gente, é a mais profunda solidão”. Coward fá-lo com a mestria dos grandes dramaturgos, plantando “dicas sobre esse segredo muito bem guardado, mas que toda a gente conhecia: ser homossexual numa época em que era crime.”

A isto, a peça proporciona ainda uma reflexão sobre o próprio teatro. Naquele tempo, Coward começava a ser catalogado pela crítica como um autor leve e frívolo, tido como uma estrela daquilo que poderia ser denominado de teatro comercial. Nesta peça, o popular autor de alta comédia respondia já a isso com “uma contracrítica”, lançando algum veneno sobre os detratores.

Diogo Infante recusa “polémicas sobre o que é ou não é teatro comercial” uma vez que, a seu ver, “importante é saber se um espetáculo é bom ou é mau”. E, se a seguir ao enorme sucesso do musical Chicago, que encenou, regressa com este Coward, naturalmente o ator, encenador e diretor do Trindade assume a sua “convicção de estar a fazer um teatro mais transversal e abrangente, mas com qualidade.”

Para além de Diogo Infante, O Amor é tão simples conta com interpretações de Gabriela Barros, Patrícia Tavares, Miguel Raposo, Ana Brito e Cunha, Rita Salema, Cristóvão Campos, Flávio Gil, Ana Cloe e António Melo. O espetáculo está em cena na Sala Carmen Dolores, de quarta a sábado, às 21 horas, e aos domingos às 16h30.

Depois de Avesso (2014) e O material tem sempre razão (2018) este álbum revela uma mulher e uma artista mais segura de si e da sua sonoridade. O que mudou?

O facto de ser o terceiro disco permitiu-me aprender com os erros dos primeiros dois. Para além disso, aprendi muito sobre a parte de produção com o Benjamim, o que me tornou muito mais autónoma. Desta vez, entreguei-lhe as maquetes mais finalizadas e com os arranjos mais trabalhados. Até fiquei surpreendida quando ele me disse que íamos começar logo a trabalhar com a banda. Senti-me mais capaz, tinha mais ferramentas para me envolver no processo todo. Por outro lado, a nível pessoal, acho que o que estamos a viver não deixa ninguém indiferente. Transformou a forma como nos relacionamos e olhamos para as coisas e isso teve um impacto muito grande, para além de ter coincidido com o facto de ter sido mãe pela primeira vez o que é, por si só, uma experiência transformadora. O período da gravidez é muito incerto, não sabemos ao que vamos, temos muitas expectativas. Viver isso numa pandemia, em que não sabemos que mundo é que o nosso filho vai conhecer… às vezes não percebia se o que estava a sentir tinha a ver com a gravidez ou com o isolamento. Algumas das canções foram escritas antes da pandemia, e até me questionei se faria sentido pô-las no disco, mas fez. Ganharam novos significados. Há um antes e depois na escrita, e eu gosto desse contraste.

Ninguém nos vai tirar o Sol é uma metáfora para os tempos que vivemos?

O título do disco é também o título do primeiro single. Na verdade, foi uma das últimas canções que escrevi, foi mesmo um exercício de autoterapia, de viver um dia de cada vez, a canção fala nisso: viver um dia de cada vez embora tudo esteja incerto. “Provar a incerteza e esperar”, que é algo que digo na canção. Neste disco, a minha banda esteve muito mais envolvida do que no anterior. Às tantas, estávamos a acabar de gravar esta canção, e o baterista disse que este era um bom título para o disco. Imediatamente, toda a gente concordou. Eu queria que o disco fosse um espelho daquilo que estava a viver, mas que tivesse um tom esperançoso, até porque sou otimista por natureza. Percebi que a frase “vai ficar tudo bem” é muito bem-intencionada, mas nem sempre corresponde à verdade. Para muitas pessoas não ficou tudo bem. Prefiro agarrar-me àquilo que não nos podem tirar.

Também tens uma canção dedicada ao teu filho, A História do Pé de Feijão. A maternidade alterou a tua forma de compor?

Escrevi muitas canções quando estava grávida, para mim e para outros artistas. É uma experiência transformadora, mas infelizmente trouxe-me menos tempo para compor… É muito enriquecedor e tem tanto de incrível e maravilhoso, como de difícil e desafiante. Acho que está a fazer de mim uma pessoa melhor, mais organizada, mais eficiente e mais segura.

Continuas a desdobrar-te em vários projetos (como Cassete Pirata), dás aulas e escreves canções para outros artistas. Como se gere tudo?

O segredo está na creche e nos avós. Tanto os avós maternos como paternos estão muito presentes e dão imenso apoio, o que é fundamental numa profissão como esta. Durante o horário normal de trabalho há a creche, mas os músicos passam fins-de-semana fora a tocar, passam noites fora, os horários são complicados, não é muito fácil levar um bebé atrás… nessa parte da gestão é fundamental. Tem sido um desafio grande a nível mental ter espaço para a parte criativa, que exige muito tempo de inspiração, seja a ver filmes, ler livros, ouvir música e até a procrastinar, que também faz parte do processo… esta é a parte que tem sido mais desafiante, mas que começa, lentamente, a voltar ao que era. As aulas, para além de serem uma fonte de segurança financeira – especialmente numa fase em que os artistas e as suas equipas viram grande parte do seu rendimento cortado – são também um espelho das gerações mais novas e da música nova que se está a fazer. Gosto muito de ensinar. Acho que tem de ser na medida certa – dou aulas um ou dois dias por semana e reservo o resto do tempo para ensaios, concertos, para compor… Também faz alguma diferença o projeto Cassete Pirata ser cá de casa [o vocalista Pir é o companheiro de Joana Espadinha]. Lançámos os dois os discos na mesma altura, foi tudo ao mesmo tempo: lançamentos, entrevistas, promoções… íamos dando em doidos, mas conseguimos.

Quando escreves inspiras-te na tua própria vida?

Não consigo cantar nada que não seja assim, fica estranho. No passado fiz isso: estava numa relação e resolvi escrever canções sobre separação. Depois separei-me a seguir, parecia que estava a adivinhar… Mesmo quando não queremos que seja autobiográfico, há sempre um lado que é, nem que seja a forma como imaginamos que iríamos viver determinada situação.

“A maternidade é uma experiência muito enriquecedora, que tem tanto de incrível e maravilhosa, como de difícil e desafiante”

Questionas-te sobre a forma como o público interpreta as tuas canções?

É engraçado pensar na forma como as pessoas recebem as canções. Às vezes interpretam-nas de uma forma que não tem nada a ver com a intenção original. Uma das coisas mais incríveis da música é o poder de se tornar da pessoa que a está a escutar e deixar de ser de quem compôs. Por exemplo, em relação ao Mau Feitio, às vezes as pessoas dizem-me que não percebem porque a escrevi, porque acham que eu não tenho mau feitio. Esta é uma característica praticamente universal, circunstancialmente todos temos momentos de mau feitio, é algo com que as pessoas se conseguem relacionar. Em relação às coisas que são mais pessoais, ou mais dolorosas, o facto de escrever sobre elas faz com que me sinta mais resolvida. Nunca me senti demasiado exposta por escrever sobre a minha vida.

Tens escrito para outros artistas. Como se dá esse processo?

Gosto de tanta coisa, de tanta música diferente que acabava por querer cantar tudo o que escrevia, o que resultava numa coisa um bocado esquizofrénica de estilos musicais muito diferentes. A certa altura percebi que tinha de fazer escolhas. Por exemplo, a Elisa Rodrigues pediu-me uma música. E eu, que a conheço há muito tempo, tinha uma ideia do que ela iria cantar. Na altura ela estava a escrever um disco numa direção mais folk. Dei-lhe uma canção que ela adorou, mas que não tinha muito a ver com aquele disco. Então, ela mostrou-me algumas coisas que já tinha, e escrevi com esse foco. No caso da Carminho foi muito engraçado. Escrevi uma canção e imaginei-a a cantá-la, mas demorei anos para ganhar coragem para lha mandar. Lá arranjei um amigo que a conhecia e que lha enviou. Ela gostou da canção e pediu-me para lhe dar algum tempo para perceber quando faria sentido cantá-la. Achei que ela estava a ser muito simpática. A certa altura ganhei confiança e enviei-lhe outra canção. Aí ela ligou-me e disse que gostava muito do que eu escrevia, e sugeriu que nos conhecêssemos. Lembro-me da emoção que senti quando a ouvi a cantar algo escrito por mim. Ouvir aquela canção pela voz dela, como eu tinha imaginado, foi mesmo incrível. A partir daí fui tendo mais propostas e mais pedidos. Diverte-me muito pôr-me na pele de outra pessoa e gostava de ter mais tempo para me dedicar a isso.

Já aconteceu ficares muito surpreendida com o resultado final de uma canção tua?

Fiz uma canção para a Cláudia Pascoal que se chama O Soldado, que ela cantou de forma maravilhosa. As canções que escrevi para a Carminho também ficaram incríveis (O menino e a cidade tem uma introdução de guitarra portuguesa inacreditável. Surpreendeu-me muito ouvir essa canção). A Sara Correia, por exemplo, também me arrepia quando ouço. Tenho tido muita sorte com as pessoas que têm cantado as minhas canções. Posso ser honesta e dizer que ainda não houve nenhuma que não tenha gostado.

Já há material para o próximo disco?

Escrevi uma canção para o Luís Trigacheiro logo após ter sido mãe, porque era um pedido urgente e lá consegui terminar. Entretanto mergulhei na maternidade e achei que nunca mais ia ter tempo para escrever, mas, entretanto, fui convidada como compositora para a edição deste ano do Festival da Canção. Por norma escrevo de forma muito natural, mas aqui havia um prazo e tantas opções em aberto em termos de estilo musical… de repente tive uma branca, não sabia bem o que escrever. Então comecei a escrever canções sem as terminar e ia percebendo o que não funcionava. Andei assim duas semanas… tenho para aí dez canções a meio, portanto já há temas para um novo disco.

Foi difícil escolher um intérprete?

Foi, porque o tema da canção é muito específico e era preciso alguém que entendesse o que eu estava a dizer, que é aquilo que tenho estado a viver. Era preciso não só ser uma boa voz e alguém com quem eu tivesse afinidade, como alguém com alguma maturidade e experiência.

Em fevereiro regressas ao Maria Matos, um palco que já conheces bem. O que vai ter este concerto de diferente em relação ao de junho?

Em junho foi um concerto de pré-apresentação, não tocámos o disco todo. Foi mais para matar saudades dos palcos e do público. Na altura lançámos também a edição d’O material tem sempre razão em vinil. Para este concerto de fevereiro achámos que faria sentido ter alguns convidados (para já, temos confirmada a presença da Luísa Sobral). Estamos cheios de vontade de tocar.

Duas exceções confirmam a regra: a antiga Travessa da Amorosa, no Beato, cuja identidade o tempo apagou, e a recente Rua Ilha dos Amores.  Mas como o amor, ou a ausência dele, nem sempre é literal e se manifesta de muitas formas, podemos dizer que a esse respeito as ruas de Lisboa têm muito para contar.

Sob os nomes das personalidades ou figuras populares inscritos nas placas toponímicas, encontram-se histórias que se guardaram na memória coletiva e que mostram como o amor é intemporal.

Largo da Severa

Santa Maria Maior

Onde e quando se conheceram Maria Severa Onofriana e o conde de Vimioso, D. Francisco de Paula de Portugal e Castro, não se sabe. A história de amor que viveram, porém, tornou-se mítica e foi imortalizada na literatura, no teatro e no cinema. De meios sociais distintos – ela prostituta, ele nobre de longa linhagem – cruzaram-se no meio boémio da Lisboa do início do século XIX e tornaram-se amantes. Severa, que tinha “lume nos olhos” e “uma voz plangente e sonora”, nas palavras do seu contemporâneo Luis Augusto Palmeirim, frequentava as tabernas do Bairro Alto e da Mouraria onde cantava e batia o fado. A relação com D. Francisco, hábil cavaleiro tauromáquico, abriu-lhe as portas dos salões e festas aristocráticas. Cantou inclusivamente no Palácio do amante, no Campo Grande, onde se diz que chegou a viver.  Reza a história que o conde a trocou por outra mulher. Severa estaria já doente com a tuberculose que a vitimou aos 26 anos.

Rua da Preta Constança

Ajuda

Quando, em 1989, a Comissão Municipal de Toponímia decidiu recuperar os antigos topónimos da zona ocidental da cidade, emergiram memórias antigas, algumas já esbatidas pelo tempo e difíceis de reconstituir. No Bairro do Caramão da Ajuda, três novos nomes de ruas aludiam a figuras populares marcantes, ligadas à presença africana na zona: a Rainha do Congo, a Rainha da Ilha das Cobras e a Preta Constança. É desta última a história trágica que haveria de ficar no imaginário coletivo. Constança veio dos confins de África, muito provavelmente para trabalhar nas casas nobres que, desde o terramoto de 1755, se instalaram na Ajuda. Aí conheceu a fortuna, o desengano e a miséria. Seduzida por um fidalgo, de quem teve um filho, viria a perder os dois. O amante abandonou-a à sua sorte e o filho foi-lhe roubado, restando-lhe a errância pelas ruas do bairro que a imortalizou.

Rua Pedro e Inês

Parque das Nações

A história de amor de D. Pedro e D. Inês começa com o casamento do príncipe com D. Constança. Em 1340, a noiva castelhana chega a Lisboa, acompanhada por um séquito no qual vinha uma aia galega, Inês de Castro, por quem D. Pedro se apaixona. Contra todos os poderes instituídos, incluindo o rei, seu pai, mantem com ela uma relação que causa escândalo e receio da influência que a família da amada pudesse exercer na corte. D. Inês é enviada para o exílio, mas nem a distância arrefece a paixão. Com a morte de D. Constança, o príncipe traz Inês de Castro para Lisboa e passa a viver com ela no Paço de Santa Clara. Da relação nascem três filhos, o que contribui para aumentar a oposição da corte ao casal. Pressionado, o rei D. Afonso toma a decisão drástica de eliminar D. Inês. O epílogo da história, popularizado n’ Os Lusíadas diz que D. Pedro, já rei, declara Inês rainha e obriga a corte a beijar-lhe a mão, depois de morta.

Rua Ângela Pinto

Arroios

A biografia conhecida de Ângela Pinto não é marcada por uma história de amor, mas antes pela forma como a atriz viveu o amor. Muito acarinhada pelo público, pisou os palcos pela primeira vez em 1855, com 15 ou 16 anos, e teve um dos pontos altos da sua carreira com a interpretação de Severa, na peça homónima de Júlio Dantas estreada em 1901. De espirito livre e independente, era uma das mais convictas boémias da sua época, sendo célebres os banquetes que promovia no Restaurante Tavares e as ceias no Botequim Magrinho. Fugiu de um casamento com um homem mais velho e das convenções da época, sendo-lhe conhecidos vários amantes, entre os quais D. Luís do Rego. Viveu os últimos dias da sua vida com um amigo na Rua da Emenda.

Triste Feia

Estrela

A identidade da Triste Feia que deu o nome a esta artéria perdeu-se nos tempos, mas não a sua história. Diz a tradição que aqui moravam três irmãs, sendo uma delas conhecida pela sua fealdade. As irmãs namoraram e casaram ao passo que esta, desprezada pelos homens, ficou sozinha. Com o avançar da idade, agudizou-se a solidão e a Triste Feia passava grande parte dos dias sentada à sua porta, numa melancolia profunda. Inspirava simpatia nos vizinhos e em quem passava e tornou-se uma figura popular, ao ponto de não ser esquecida até aos dias de hoje. O nome desta via, que não é rua, surge nas plantas e descrições das freguesias após a remodelação paroquial de 1770, sugerindo que a Triste Feia teria vivido antes desta data.

Rua Ilha dos Amores

Parque das Nações

A Ilha dos Amores que dá nome a esta rua é o lugar mítico criado e descrito por Luís Vaz de Camões nos Cantos IX e X de Os Lusíadas. O local paradisíaco para onde Vénus, deusa do Amor, com a ajuda do seu filho Cupido, conduz os portugueses, como recompensa pelos feitos heroicos na viagem inaugural à Índia através do mar. Nesta ilha, os marinheiros são recebidos por belas e sensuais ninfas que, para além dos jogos amorosos, lhes propiciam banquetes e lhes profetizam glórias.  Esta rua foi criada aquando da realização da Expo’98 que procurou evocar na toponímia os oceanos, tema da exposição, os Descobrimentos Portugueses, escritores portugueses e figuras relevantes para Portugal. Na reconversão da zona em Parque das Nações, grande parte desses topónimos foram oficializados por edital de 2009.

Para descobrir ou saber mais sobre a toponímia de Lisboa consulte cm-lisboa.pt/toponimia

Nesta reportagem, damos voz a artistas e projetos que têm, em comum – para além do seu amor pelas artes – o facto de terem todos menos de 30 anos. Falámos com uma artista plástica, uma bailarina, um escritor, três atores e uma banda. Todos com talentos diferentes, mas com o mesmo objetivo de servir a arte que escolheram. Quisemos conhecer o seu percurso profissional, que dificuldades enfrentam neste contexto pandémico, e o que andam a fazer. Decore estas caras, porque elas vão, com toda a certeza, marcar a vida cultural do país nos próximos tempos.

Sogranora

músicos

Em 2016, Ricardo Sebastião, Vasco Gomes e Tomás Andrade treinavam no mesmo clube de basquete no Seixal, quando decidiram, por graça, formar uma banda. Inicialmente, começaram por tocar versões de outros artistas, mas perceberam que, se queriam levar o projeto a sério, teriam de compor as suas próprias canções.

Assim, em 2019, nasciam, oficialmente, os Sogranora. O single de estreia, Semilisboeta, surgiu pouco depois. A pandemia afastou-os fisicamente, mas não lhes cortou a criatividade: durante esse tempo, aproveitaram para compor, cada um em sua casa, e daí surgiu o EP Altivez e Castigo.

Para a banda funcionar, é essencial que haja um bom espírito de equipa, seja com Ricardo a compor as letras e Vasco e Tomás mais responsáveis pelos arranjos, ou com os três a darem ideias durante os ensaios. Para março, está previsto o lançamento de mais um EP, e respetivo concerto de apresentação no Seixal (de onde são naturais). O primeiro single já é conhecido, Qualquer impasse.

Alice dos Reis

artista plástica e visual

Tinha apenas 23 anos quando organizou a sua primeira exposição individual, na Galeria da Boavista. Alice dos Reis cedo percebeu que o seu caminho profissional seria “associado a um contexto criativo e cultural”, o que a levou a estudar na Escola Artística António Arroio. Seguiu-se uma licenciatura em Arte e Multimédia na Faculdade de Belas-Artes, e uma mudança para Amsterdão, onde fez um mestrado em Artes Plásticas.

O vídeo e a fotografia são as suas ferramentas de eleição, e o seu trabalho “acaba por ser autorreferencial”, o que a leva a explorar temas que lhe interessam a nível pessoal, como a natureza, tecnologia, identidade e género. A pandemia trouxe-lhe alguma “frustração e uma sensação de perda de um conjunto de experiências”, mas não lhe faltou trabalho. Dirige, com Pedro Neves Marques, a editora literária e de poesia Pântano, dedicada a livros inéditos em inglês e traduções para português, projeto que a tem feito sentir “bastante completa”. Encontra-se ainda a trabalhar num filme e prevê, este ano, fazer residências artísticas fora do país.

André Loubet

ator

André Loubet tinha 19 anos quando participou na sua primeira peça, uma produção do Teatro do Bolhão, no Porto. Começou a sua formação na Academia Contemporânea do Espetáculo, e seguiu-se o Conservatório.

Uma visão mais romântica da profissão levou-o a privilegiar o Teatro desde cedo, “uma escolha adolescente e algo inconsciente”, admite. É nesta área que se sente bem, mas reconhece que a televisão dá uma outra segurança, de “não andar sempre a contar trocos ao fim do mês. Trabalhar em teatro não dá para perspetivar o futuro a longo prazo”, mas, ainda assim, não se queixa da falta de trabalho.

Mesmo durante a pandemia – e ao contrário de muitos dos seus colegas de profissão – não perdeu rendimento por estar a trabalhar numa coprodução entre o TNDMII e os Artistas Unidos. Em janeiro, esteve em cena com a peça Obstrução (textos de Dimítris Dimitriádis), uma produção dos Artistas Unidos no Teatro da Politécnica. Tem uma criação sua na gaveta que espera ter tempo para desenvolver e apresentar ainda este ano.

João Arrais

ator

Em criança, João Arrais sonhava ser jogador de futebol. Tinha sete anos quando fez o seu primeiro anúncio, mas era a irmã que tinha o sonho de ser atriz. No entanto, a vida tinha planos diferentes para os dois: ela estudou Psiquiatria, ele foi crescendo como ator.

Com 10 anos, participou na sua primeira novela, Jura, exibida pela SIC. Na área da representação já fez de tudo: televisão, cinema, e teatro, mas é à frente das câmaras que se sente bem. O palco traz-lhe outro tipo de gratificação, mas não diz que não a nenhum desafio.

Esteve, há não muito tempo, em cena com o espetáculo Romeu e Julieta, de John Romão. A pandemia não lhe tirou trabalho, mas atrasou o começo da rodagem do filme A Criança, que poderemos ver nas salas portuguesas já este mês (estreia prevista para 10 de fevereiro). Sobre o seu futuro próximo, o ator não pode revelar muito, mas ficámos a saber que vai participar num projeto que estreia em breve na OPTO.

Margarida Serrano

atriz

Margarida Serrano tinha apenas cinco anos quando fez o seu primeiro anúncio para televisão. Dois anos depois, participou na primeira telenovela. A partir daí, os projetos foram-se sucedendo. Nunca teve o sonho de ser atriz, até o ser e perceber que gosta mesmo de representar.

Durante a pandemia continuou a trabalhar, mas alguns hábitos tiveram de ser alterados no set e nos bastidores, com um distanciamento físico a que não estava habituada. Já fez teatro, cinema e televisão, mas onde se sente mais confortável é a trabalhar para as câmaras. Quem a vê no ecrã pode não acreditar, mas é muito tímida e insegura. “O teatro traz consigo um peso maior e isso deixa-me nervosa”, confessa.

Com apenas 14 anos e uma vida inteira pela frente, as suas opções profissionais ainda estão em aberto: “adoro o que faço e vou, sem dúvida, continuar a apostar na formação nesta área, mas não sei o que o futuro me reserva”. Para já, podemos vê-la  em A Serra (em exibição na SIC), e, ainda este ano, na série Emília (a ser transmitida pela RTP).

André Osório

escritor

Um texto que escreveu na escola, e que recebeu largos elogios, levou-o a escolher Humanidades no ensino secundário. Aos 14 anos, André Osório mergulhou no mundo da poesia quando o pai, o jornalista e escritor Luís Osório, lhe deu a ler poemas de Herberto Hélder. Começou também a escrever, até que a própria literatura começou a fazer parte da sua identidade.

Os seus primeiros poemas foram publicados na revista Apócrifa, quando tinha apenas 19 anos. Entretanto licenciou-se em Estudos Portugueses e, em 2020, lançou o seu primeiro livro, Observação da Gravidade (Guerra e Paz), muito bem recebido pela crítica. Durante a pandemia aproveitou para fazer uma tradução e para pensar no que se seguiria.

Neste momento, André divide-se entre a sua escrita e a revista literária Lote, que fundou em 2019. Está também a trabalhar numa antologia de poetas portugueses. Na sua mesa de cabeceira encontram-se As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, e O Livro das Comunidades, de Maria Gabriela Llansol.

Beatriz Valentim

bailarina e coreógrafa

Com apenas quatro anos, Beatriz Valentim iniciou-se no ballet na sua cidade natal, Póvoa do Varzim. Aos 14, depois de muito insistir com os pais, mudou-se para Lisboa para frequentar o Conservatório e perseguir o sonho de ser bailarina. A integração no mercado de trabalho não foi fácil e sentiu a idade jogar contra si, já que muitas das audições a que ia pediam alguns anos de experiência ou uma idade mínima que ainda estava longe de ter.

Aos 19 anos, estreou-se no espetáculo Propriedade Privada, de Olga Roriz, no Centro Cultural de Belém, ao lado de bailarinos com mais de 30 anos. Outro trabalho que a marcou foi A Laura quer!, de Sílvia Real, onde destaca “a maneira de trabalhar inteligente e intensa” que lhe ensinou “muito sobre o próprio processo criativo”.

A pandemia tirou-lhe o chão, muitos projetos ficaram em suspenso, e para ter alguma segurança financeira deu aulas online. Em fevereiro, podemos vê-la no palco do São Luiz em Concerto Nº1 para Laura, de Sílvia Real. Este ano vai ainda participar num projeto de Né Barros, e apresentar duas peças da sua autoria.

Personagem de origem espanhola semilendária, celebrizada universalmente enquanto aventureiro libertino e sedutor, Don Juan terá sido tratada pela primeira vez por Tirso de Molina na peça El Burlador de Sevilla y convidado de piedra. Não muitos anos depois, em 1665, na sequência do escândalo de Tartufo, Molière parece andar de novo à procura de problemas e estreia a sua visão de Don Juan. O grande comediógrafo francês dá-lhe “um tratamento muito mais humano” ao aligeirar a dimensão trágica do personagem e “o carácter religioso e edificante das primeiras versões, sob o espírito do Concílio de Trento”, acabando a afrontar a moral católica vigente. A peça acaba por proporcionar ao autor novos dissabores, nomeadamente, ser censurado e ver banida em vida a versão original do texto.

Nesta sua visão da comédia de Molière, António Pires quis, precisamente, “contrariar a ideia romantizada que se criou de Don Juan” e sublinhar um traço que lhe pareceu fundamental, sobretudo, nos dias de hoje, e que passa pelo modo como, com ironia, o texto aponta ferozmente o dedo à hipocrisia, ou seja, esse traço de caráter que tanto incomodou, à época, as autoridades religiosas francesas. “Na peça, para continuar a viver como quer, Don Juan torna-se hipócrita e, tal como todos os outros, esconde-se atrás da religião”, lembra o encenador. Ao acusar a Igreja de ser uma espécie de escudo para a hipocrisia humana, Molière “está a falar de tempos onde, tal como os de hoje, parece haver mais fingimento do que verdade.”

“As pessoas olham Don Juan como uma personagem apaixonada e romantizada, mas eu vejo-o quase como uma criança, muito livre e sem regras”, considera António Pires.

Curiosamente, quando a companhia do Teatro do Bairro começou a trabalhar o texto, aquilo que motivou especialmente António Pires foi a possibilidade de “pôr os atores Jaime Baeta, que interpreta o Don Juan, e João Barbosa, no papel do criado Esganarelo, a jogar. Gosto tanto deles e reconheço-lhes uma energia única que seria notável vê-los nestes papéis”, declara ao lembrar como a peça é uma irresistível comédia, capaz de “expor os mais comuns defeitos humanos através do riso.”

Mas, se os protagonistas têm uma “energia única”, o que dizer dos restantes atores da companhia do Teatro do Bairro? António Pires sente que Don Juan mostra toda a importância de um trabalho de companhia no teatro. “A cada espetáculo, sinto que estes atores estão em casa, e isso fá-los crescer, permitindo-lhes a liberdade de entregarem todo o seu quê de artistas, não somente de atores”. Essa capacidade de serem artistas e intérpretes torna esta comédia, naturalmente, “ainda mais viva e muito teatral.”

Luís Lima Barreto, ator histórico do Teatro da Cornucópia, volta a trabalhar com António Pires.

O pulsar da teatralidade e das “coisas não iguais à realidade” sobressaem no magnífico cenário de Alexandre Oliveira e nas pinturas e desenhos de Jacqueline de Montaigne, evocação dos 400 anos de Molière, do teatro barroco francês e da “caixinha mágica à italiana”. Todo “este dispositivo cénico privilegia o jogo do teatro, com a perspetiva, a ribalta, as caras pintadas, os vestidos. Foi a maneira de homenagearmos o autor e um modo de fazer teatro” que, a par da diversão e do prazer do fingido, continua a interpelar a nossa condição de seres humanos.

Don Juan está em cena no Teatro do Bairro até 27 de fevereiro, com récitas de quarta a sexta às 21h30 e aos fins-de-semana às 18 horas.

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