Lançado este mês de fevereiro, Cabeças de Vento junta a música à poesia para, de uma forma leve e divertida, despertar nos mais novos – e não só –a consciência ambiental e a relação com a natureza. “Muitas crianças passaram um bom pedaço das suas vidas confinadas e, para a maioria, esse confinamento não permitiu o contacto com o ar livre. Como é que podemos pedir aos mais pequenos para cuidarem do planeta se eles pouco ou nada saem de casa? Foi aí que decidimos fazer um livro que provocasse neles a vontade de sair para a rua, de descobrir as coisas lá de fora, do mundo natural. Cabeças de Vento é uma chamada ao ar puro, é um convite a sair de dentro de quatro paredes e a largar os ecrãs e a ir lá para fora brincar, conhecer e explorar”, avança Inês.
O projeto, que pretende, desta forma, “sensibilizar para a vida no planeta, que ultrapassa enormemente a dimensão humana”, consiste num livro ilustrado que permite aceder, através de um código QR, a músicas de inspiração folk rock e tradicional. “A ligação entre a ilustração, a poesia e a música é uma coisa natural em nós e que começou em 2002 com o livro Buscapólos, com poemas do José Jorge Letria. Na verdade, para nós, tem a ver com uma orgânica natural das coisas”, diz Ricardo. Já Inês, considera que, “de facto, a música ajuda a manter mais tempo o livro na vida dos miúdos; reforçando a presença da mensagem na vida deles”.
A obra física, que conta com poemas e fotografias de Inês e ilustrações de Ricardo Machado, transforma-se já no próximo fim de semana num “espetáculo espetacular”. “Este concerto é a possibilidade de transpormos as canções para palco, com banda, que é algo que caracteriza os trabalhos que fazemos. Nós gostamos sempre que a música seja mostrada em conjunto com outros músicos”, esclarece Ricardo. Em palco, para além da voz de Inês e Gonçalo, podem ouvir-se (e ver-se!) instrumentos musicais com diferentes sonoridades, como o ukelele, a guitarra, o bandolim, a bateria, o violino e o contrabaixo. “Vai haver muita interatividade com o público. Queremos pôr a plateia a cantar!”, promete o músico.
Outros projetos
Esta não é a primeira vez que a escrita de Inês se alia à música de Gonçalo. A dupla é também autora do Galo Gordo, um dos mais marcantes projetos artísticos para a infância em Portugal, que já conta mais de uma década de existência e, por isso, já tem “vida própria”.
A casa sincronizada – Uma História Musical, foi outros dos trabalhos da dupla. O livro, ilustrado por Pedro Brito e dirigido a crianças, pais, avós, professores e educadores, nasceu em 2009, em formato de programa televisivo para a infância, e venceu o Prémio SPA/RTP 2012 na categoria de Melhor Livro Infanto-juvenil.
Já durante a pandemia, Inês e Gonçalo lançaram uma coleção intitulada Embala Bebé, que conta com seis audiolivros pensados para crianças até aos 3 anos.
Até dezembro estão previstas quatro exposições, com curadoria de Patrícia Rosas e Rita Albergaria e direção de Benjamin Weil. “Estando instalados em locais totalmente distintos, pretende-se chegar a comunidades e tipos de público também distintos”, avança Weill. As primeiras, de Rui Toscano e Carlos Bunga, podem ser vistas em Benfica e no Terreiro do Paço até 30 de julho.
Rui Toscano
Music Is the Healing Force of the Universe #4, 2021-2022
Rui Toscano, um dos artistas convidados, concebeu um projeto inédito para um contentor localizado na praça do Centro Comercial Fonte Nova, em Benfica. Trata-se de uma escultura original que abre um novo contexto narrativo na sua obra. Partindo de uma imagem de uma pintura de um prato de cerâmica da Grécia antiga, na qual o deus Dionísio toca uma lira ladeado por dois sátiros que dançam agitando um par de castanholas, o artista criou uma instalação pintada diretamente em vidro acrílico, com sobreposição de duas imagens e com luz projetada por trás.
“Esta peça surge na continuação de uma série em que tenho trabalhado, para a qual tenho vindo a fazer uma pesquisa e recolha de imagens de representações de música a ser tocada em antigas civilizações. Interessa-me qualquer tipo de representação – seja pintura, escultura ou baixo-relevo – em civilizações como o Antigo Egito, Pré-colombiana ou Grécia Antiga. Nesta peça em particular, interessou-me trabalhar na distorção da imagem original: aqui, dupliquei as personagens e inverti as cores, como num negativo”, avança Toscano.
Carlos Bunga
Home
Junto à estação fluvial do Terreiro do Paço pode encontrar-se a instalação site-specific de Carlos Bunga, outro dos artistas convidados pelo CAM. Em Home, o artista português radicado em Espanha dá continuidade ao pensamento político – e poético – que tem desenvolvido em torno das ideias de nomadismo e de casa, aqui revelado e questionado.
Através do seu trabalho, onde recorre a materiais orgânicos e versáteis como cartão, fita adesiva e cola, Bunga não só encoraja os visitantes a repensarem a sua experiência do espaço e da arquitetura, como também evoca a natureza frágil e temporária das estruturas urbanas.
“Desde o primeiro momento que, tendo em conta a localização deste contentor, me interessou falar da ideia de viagem e de migração. O cenário de rio é fundamental para um projeto que é nómada e que é uma metáfora das nossas próprias casas. É também uma homenagem aos que não têm casa, aos que a perderam ou que estão em risco de perder. Esta peça tem uma grande componente de fragilidade e de efemeridade. E é feito com material simples por isso mesmo: para que possamos refletir sobre essa ideia de fragilidade”, diz Bunga.
Um projetor de acetatos, uma secretária, um teclado, um velho gravador de áudio para cassetes e um ecrã em fundo, é quando basta para Romeu Costa dar início a esta conferência-performance. Talvez seja prematuro, neste ponto, identificar o homem que nos fala pelo nome próprio e apelido quando, ele mesmo, apenas se anuncia como “Romeu”, assumindo, à boa maneira académica, a primeira pessoa do plural, o “nós”, para se dirigir à audiência.
Este investigador em Ciências Sociais dedicou-se, nos últimos tempos, a estudar a ligação entre o prazer e a culpa, usando as preferências musicais como reveladoras daquilo que somos. Mas, paulatinamente, a conferência científica, baseada em conceitos e números, vão revelando um ser humano que se martirizou durante anos por ter como “guilty pleasure” (à falta de melhor tradução, “prazer culposo”) a música pop cantada pela norte-americana Mariah Carey.
Afinal, quantos prazeres permanecem em segredo por vergonha e, no limite, nos impõem uma noção de culpa só porque podem ser censurados socialmente?
A entrada em cena da cantora de All I Want for Christmas is You (canção que, segundo um estudo científico evocado, potencia maior disponibilidade para fazer compras a quem a ouve no interior de lojas durante a quadra natalícia) vai diluindo o “nós” no “eu”. E estamos no território do “guilty pleasure” de Romeu Costa, aquele que foi, na década de 90 do século passado, um rapaz de Aveiro, homossexual, que ouvia e vibrava em segredo com os hits de Mariah Carey. “Há uns anos, eu não me atreveria a falar em público sobre a minha paixão por ela ou confessar que sei de cor a letra de Without You”, confessa o ator.

Marta Carreiras, que assina com Romeu Costa a direção artística do espetáculo, crê que, ao abordar esta temática do “gosto” como Maráia Quéri o faz, se lança para o debate “a necessária crítica ao cânone produzido pela academia bem pensante”. Afinal, “o que é isso do gosto que inclui e exclui, o que é isso da alta e da baixa cultura?”
Do mesmo modo, Romeu Costa, ao assumir como a figura da estrela pop se tornou parte da própria vida, e permitindo traçar com a vergonha do “gosto” uma analogia com a sua homossexualidade, chega mesmo a questionar “quem é que pode definir se Mariah Carey é ou não é boa música. Serão os mesmos que durante tanto tempo definiam que ser heterossexual é que é bom?”
Com a densidade dramática de uma confissão, o espetáculo acaba a gizar um retrato do próprio país, da última década do século passado até aos dias de hoje, e consequentemente do lugar desse mesmo país no mundo. Talvez por isso, e até no título “aportuguesado”, Maráia Quéri seja, como a dupla de criadores sintetiza, “um espetáculo sobre inclusão em oposição a exclusão.”
Com estreia remarcada para 16 de fevereiro, está em cena, na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, até 6 de março.
Há uns anos, numa ida ao Old Vick, em Londres, Diogo Infante assistiu a uma remontagem de Present Laughter de Noël Coward, e da boca do filho ouviu “tu devias fazer isto”, longe ainda de ter percebido os paralelismos que havia de encontrar no protagonista. O certo é que, aquela que é considerada a peça mais autobiográfica de Coward, está agora em cena no Teatro da Trindade, encenada e protagonizada por Infante, e com o irónico título O Amor é tão simples.
Adaptada à Lisboa dos anos 40 do século passado, “onde até existiam alguns fenómenos semelhantes no teatro da época”, a peça acompanha os caóticos dias que antecedem a partida do popularíssimo ator Guilherme de Andrade numa digressão por África. Para além de ter de lidar com as idiossincrasias da sua habitual “comitiva”, ou seja, a secretária, a ex-mulher, o agente, o produtor, o mordomo e a governanta da casa, Guilherme confronta-se ainda com uma jovem aspirante a atriz que se diz perdidamente apaixonada, um dramaturgo em início de carreira obcecado por estar na presença do ator, e a mulher do agente e melhor amigo, que está “fatalmente” determinada em seduzi-lo.
Perante uma sucessão de acontecimentos inusitados provocados por todas estas personagens, Guilherme começa ainda a debater-se com a marca incessante do tempo, pronunciada naquilo que é já uma crise de meia-idade instalada.
Quando Coward escreveu esta peça em 1938, perto de completar 40 anos (a estreia aconteceu uns anos depois, em 1942, dado o encerramento dos teatro londrinos devido à guerra), procurava para si mesmo “criar um papel de bravura onde se projetasse nas suas contradições, gostos e egocentrismo”, observa Diogo Infante. “E, como sempre, fê-lo com o seu humor inteligente e sofisticado, e um notável sentido crítico.”
Ao entregar-se ao texto e à personagem, Infante deu por si a descortinar pontos de contacto com a personagem de Coward. “Foi aí que me apeteceu brincar comigo mesmo, nomeadamente com a idade, agora que entrei numa fase da vida em que a imagem que me é devolvida começa a ser dura, uma sombra do que foi. Poder falar disso em palco acaba por ser bastante catártico”, assume.
Outra característica onde o ator e encenador encontrou semelhanças foi no poder e responsabilidade que Guilherme tem sobre a vida de outros. “Na peça, todas aquelas pessoas dependem dele, uma vez que é ele a estrela e quem lidera a companhia teatral. Enquanto diretor do Teatro da Trindade, ou até mesmo enquanto encenador, também eu determino o destino de algumas pessoas”. Se a isso juntarmos a popularidade que Diogo Infante tem como ator, as semelhanças com Guilherme de Andrade tornam-se ainda mais evidentes.
Embora O Amor é tão simples seja uma comédia onde a graça e a sofisticação convivem com aquela elegância tão britânica que só o autor de Private Lives e Design for Living conseguia imprimir aos seus textos, a peça está impregnada de uma densa melancolia. “Na verdade”, sublinha Infante, “o amor é tudo menos simples e aquilo que o personagem oculta, sendo tão amado e estando constantemente rodeado de gente, é a mais profunda solidão”. Coward fá-lo com a mestria dos grandes dramaturgos, plantando “dicas sobre esse segredo muito bem guardado, mas que toda a gente conhecia: ser homossexual numa época em que era crime.”
A isto, a peça proporciona ainda uma reflexão sobre o próprio teatro. Naquele tempo, Coward começava a ser catalogado pela crítica como um autor leve e frívolo, tido como uma estrela daquilo que poderia ser denominado de teatro comercial. Nesta peça, o popular autor de alta comédia respondia já a isso com “uma contracrítica”, lançando algum veneno sobre os detratores.
Diogo Infante recusa “polémicas sobre o que é ou não é teatro comercial” uma vez que, a seu ver, “importante é saber se um espetáculo é bom ou é mau”. E, se a seguir ao enorme sucesso do musical Chicago, que encenou, regressa com este Coward, naturalmente o ator, encenador e diretor do Trindade assume a sua “convicção de estar a fazer um teatro mais transversal e abrangente, mas com qualidade.”
Para além de Diogo Infante, O Amor é tão simples conta com interpretações de Gabriela Barros, Patrícia Tavares, Miguel Raposo, Ana Brito e Cunha, Rita Salema, Cristóvão Campos, Flávio Gil, Ana Cloe e António Melo. O espetáculo está em cena na Sala Carmen Dolores, de quarta a sábado, às 21 horas, e aos domingos às 16h30.
Depois de Avesso (2014) e O material tem sempre razão (2018) este álbum revela uma mulher e uma artista mais segura de si e da sua sonoridade. O que mudou?
O facto de ser o terceiro disco permitiu-me aprender com os erros dos primeiros dois. Para além disso, aprendi muito sobre a parte de produção com o Benjamim, o que me tornou muito mais autónoma. Desta vez, entreguei-lhe as maquetes mais finalizadas e com os arranjos mais trabalhados. Até fiquei surpreendida quando ele me disse que íamos começar logo a trabalhar com a banda. Senti-me mais capaz, tinha mais ferramentas para me envolver no processo todo. Por outro lado, a nível pessoal, acho que o que estamos a viver não deixa ninguém indiferente. Transformou a forma como nos relacionamos e olhamos para as coisas e isso teve um impacto muito grande, para além de ter coincidido com o facto de ter sido mãe pela primeira vez o que é, por si só, uma experiência transformadora. O período da gravidez é muito incerto, não sabemos ao que vamos, temos muitas expectativas. Viver isso numa pandemia, em que não sabemos que mundo é que o nosso filho vai conhecer… às vezes não percebia se o que estava a sentir tinha a ver com a gravidez ou com o isolamento. Algumas das canções foram escritas antes da pandemia, e até me questionei se faria sentido pô-las no disco, mas fez. Ganharam novos significados. Há um antes e depois na escrita, e eu gosto desse contraste.
Ninguém nos vai tirar o Sol é uma metáfora para os tempos que vivemos?
O título do disco é também o título do primeiro single. Na verdade, foi uma das últimas canções que escrevi, foi mesmo um exercício de autoterapia, de viver um dia de cada vez, a canção fala nisso: viver um dia de cada vez embora tudo esteja incerto. “Provar a incerteza e esperar”, que é algo que digo na canção. Neste disco, a minha banda esteve muito mais envolvida do que no anterior. Às tantas, estávamos a acabar de gravar esta canção, e o baterista disse que este era um bom título para o disco. Imediatamente, toda a gente concordou. Eu queria que o disco fosse um espelho daquilo que estava a viver, mas que tivesse um tom esperançoso, até porque sou otimista por natureza. Percebi que a frase “vai ficar tudo bem” é muito bem-intencionada, mas nem sempre corresponde à verdade. Para muitas pessoas não ficou tudo bem. Prefiro agarrar-me àquilo que não nos podem tirar.
Também tens uma canção dedicada ao teu filho, A História do Pé de Feijão. A maternidade alterou a tua forma de compor?
Escrevi muitas canções quando estava grávida, para mim e para outros artistas. É uma experiência transformadora, mas infelizmente trouxe-me menos tempo para compor… É muito enriquecedor e tem tanto de incrível e maravilhoso, como de difícil e desafiante. Acho que está a fazer de mim uma pessoa melhor, mais organizada, mais eficiente e mais segura.
Continuas a desdobrar-te em vários projetos (como Cassete Pirata), dás aulas e escreves canções para outros artistas. Como se gere tudo?
O segredo está na creche e nos avós. Tanto os avós maternos como paternos estão muito presentes e dão imenso apoio, o que é fundamental numa profissão como esta. Durante o horário normal de trabalho há a creche, mas os músicos passam fins-de-semana fora a tocar, passam noites fora, os horários são complicados, não é muito fácil levar um bebé atrás… nessa parte da gestão é fundamental. Tem sido um desafio grande a nível mental ter espaço para a parte criativa, que exige muito tempo de inspiração, seja a ver filmes, ler livros, ouvir música e até a procrastinar, que também faz parte do processo… esta é a parte que tem sido mais desafiante, mas que começa, lentamente, a voltar ao que era. As aulas, para além de serem uma fonte de segurança financeira – especialmente numa fase em que os artistas e as suas equipas viram grande parte do seu rendimento cortado – são também um espelho das gerações mais novas e da música nova que se está a fazer. Gosto muito de ensinar. Acho que tem de ser na medida certa – dou aulas um ou dois dias por semana e reservo o resto do tempo para ensaios, concertos, para compor… Também faz alguma diferença o projeto Cassete Pirata ser cá de casa [o vocalista Pir é o companheiro de Joana Espadinha]. Lançámos os dois os discos na mesma altura, foi tudo ao mesmo tempo: lançamentos, entrevistas, promoções… íamos dando em doidos, mas conseguimos.
Quando escreves inspiras-te na tua própria vida?
Não consigo cantar nada que não seja assim, fica estranho. No passado fiz isso: estava numa relação e resolvi escrever canções sobre separação. Depois separei-me a seguir, parecia que estava a adivinhar… Mesmo quando não queremos que seja autobiográfico, há sempre um lado que é, nem que seja a forma como imaginamos que iríamos viver determinada situação.

Questionas-te sobre a forma como o público interpreta as tuas canções?
É engraçado pensar na forma como as pessoas recebem as canções. Às vezes interpretam-nas de uma forma que não tem nada a ver com a intenção original. Uma das coisas mais incríveis da música é o poder de se tornar da pessoa que a está a escutar e deixar de ser de quem compôs. Por exemplo, em relação ao Mau Feitio, às vezes as pessoas dizem-me que não percebem porque a escrevi, porque acham que eu não tenho mau feitio. Esta é uma característica praticamente universal, circunstancialmente todos temos momentos de mau feitio, é algo com que as pessoas se conseguem relacionar. Em relação às coisas que são mais pessoais, ou mais dolorosas, o facto de escrever sobre elas faz com que me sinta mais resolvida. Nunca me senti demasiado exposta por escrever sobre a minha vida.
Tens escrito para outros artistas. Como se dá esse processo?
Gosto de tanta coisa, de tanta música diferente que acabava por querer cantar tudo o que escrevia, o que resultava numa coisa um bocado esquizofrénica de estilos musicais muito diferentes. A certa altura percebi que tinha de fazer escolhas. Por exemplo, a Elisa Rodrigues pediu-me uma música. E eu, que a conheço há muito tempo, tinha uma ideia do que ela iria cantar. Na altura ela estava a escrever um disco numa direção mais folk. Dei-lhe uma canção que ela adorou, mas que não tinha muito a ver com aquele disco. Então, ela mostrou-me algumas coisas que já tinha, e escrevi com esse foco. No caso da Carminho foi muito engraçado. Escrevi uma canção e imaginei-a a cantá-la, mas demorei anos para ganhar coragem para lha mandar. Lá arranjei um amigo que a conhecia e que lha enviou. Ela gostou da canção e pediu-me para lhe dar algum tempo para perceber quando faria sentido cantá-la. Achei que ela estava a ser muito simpática. A certa altura ganhei confiança e enviei-lhe outra canção. Aí ela ligou-me e disse que gostava muito do que eu escrevia, e sugeriu que nos conhecêssemos. Lembro-me da emoção que senti quando a ouvi a cantar algo escrito por mim. Ouvir aquela canção pela voz dela, como eu tinha imaginado, foi mesmo incrível. A partir daí fui tendo mais propostas e mais pedidos. Diverte-me muito pôr-me na pele de outra pessoa e gostava de ter mais tempo para me dedicar a isso.
Já aconteceu ficares muito surpreendida com o resultado final de uma canção tua?
Fiz uma canção para a Cláudia Pascoal que se chama O Soldado, que ela cantou de forma maravilhosa. As canções que escrevi para a Carminho também ficaram incríveis (O menino e a cidade tem uma introdução de guitarra portuguesa inacreditável. Surpreendeu-me muito ouvir essa canção). A Sara Correia, por exemplo, também me arrepia quando ouço. Tenho tido muita sorte com as pessoas que têm cantado as minhas canções. Posso ser honesta e dizer que ainda não houve nenhuma que não tenha gostado.
Já há material para o próximo disco?
Escrevi uma canção para o Luís Trigacheiro logo após ter sido mãe, porque era um pedido urgente e lá consegui terminar. Entretanto mergulhei na maternidade e achei que nunca mais ia ter tempo para escrever, mas, entretanto, fui convidada como compositora para a edição deste ano do Festival da Canção. Por norma escrevo de forma muito natural, mas aqui havia um prazo e tantas opções em aberto em termos de estilo musical… de repente tive uma branca, não sabia bem o que escrever. Então comecei a escrever canções sem as terminar e ia percebendo o que não funcionava. Andei assim duas semanas… tenho para aí dez canções a meio, portanto já há temas para um novo disco.
Foi difícil escolher um intérprete?
Foi, porque o tema da canção é muito específico e era preciso alguém que entendesse o que eu estava a dizer, que é aquilo que tenho estado a viver. Era preciso não só ser uma boa voz e alguém com quem eu tivesse afinidade, como alguém com alguma maturidade e experiência.
Em fevereiro regressas ao Maria Matos, um palco que já conheces bem. O que vai ter este concerto de diferente em relação ao de junho?
Em junho foi um concerto de pré-apresentação, não tocámos o disco todo. Foi mais para matar saudades dos palcos e do público. Na altura lançámos também a edição d’O material tem sempre razão em vinil. Para este concerto de fevereiro achámos que faria sentido ter alguns convidados (para já, temos confirmada a presença da Luísa Sobral). Estamos cheios de vontade de tocar.
Duas exceções confirmam a regra: a antiga Travessa da Amorosa, no Beato, cuja identidade o tempo apagou, e a recente Rua Ilha dos Amores. Mas como o amor, ou a ausência dele, nem sempre é literal e se manifesta de muitas formas, podemos dizer que a esse respeito as ruas de Lisboa têm muito para contar.
Sob os nomes das personalidades ou figuras populares inscritos nas placas toponímicas, encontram-se histórias que se guardaram na memória coletiva e que mostram como o amor é intemporal.
Largo da Severa
Santa Maria Maior
Onde e quando se conheceram Maria Severa Onofriana e o conde de Vimioso, D. Francisco de Paula de Portugal e Castro, não se sabe. A história de amor que viveram, porém, tornou-se mítica e foi imortalizada na literatura, no teatro e no cinema. De meios sociais distintos – ela prostituta, ele nobre de longa linhagem – cruzaram-se no meio boémio da Lisboa do início do século XIX e tornaram-se amantes. Severa, que tinha “lume nos olhos” e “uma voz plangente e sonora”, nas palavras do seu contemporâneo Luis Augusto Palmeirim, frequentava as tabernas do Bairro Alto e da Mouraria onde cantava e batia o fado. A relação com D. Francisco, hábil cavaleiro tauromáquico, abriu-lhe as portas dos salões e festas aristocráticas. Cantou inclusivamente no Palácio do amante, no Campo Grande, onde se diz que chegou a viver. Reza a história que o conde a trocou por outra mulher. Severa estaria já doente com a tuberculose que a vitimou aos 26 anos.
Rua da Preta Constança
Ajuda
Quando, em 1989, a Comissão Municipal de Toponímia decidiu recuperar os antigos topónimos da zona ocidental da cidade, emergiram memórias antigas, algumas já esbatidas pelo tempo e difíceis de reconstituir. No Bairro do Caramão da Ajuda, três novos nomes de ruas aludiam a figuras populares marcantes, ligadas à presença africana na zona: a Rainha do Congo, a Rainha da Ilha das Cobras e a Preta Constança. É desta última a história trágica que haveria de ficar no imaginário coletivo. Constança veio dos confins de África, muito provavelmente para trabalhar nas casas nobres que, desde o terramoto de 1755, se instalaram na Ajuda. Aí conheceu a fortuna, o desengano e a miséria. Seduzida por um fidalgo, de quem teve um filho, viria a perder os dois. O amante abandonou-a à sua sorte e o filho foi-lhe roubado, restando-lhe a errância pelas ruas do bairro que a imortalizou.
Rua Pedro e Inês
Parque das Nações
A história de amor de D. Pedro e D. Inês começa com o casamento do príncipe com D. Constança. Em 1340, a noiva castelhana chega a Lisboa, acompanhada por um séquito no qual vinha uma aia galega, Inês de Castro, por quem D. Pedro se apaixona. Contra todos os poderes instituídos, incluindo o rei, seu pai, mantem com ela uma relação que causa escândalo e receio da influência que a família da amada pudesse exercer na corte. D. Inês é enviada para o exílio, mas nem a distância arrefece a paixão. Com a morte de D. Constança, o príncipe traz Inês de Castro para Lisboa e passa a viver com ela no Paço de Santa Clara. Da relação nascem três filhos, o que contribui para aumentar a oposição da corte ao casal. Pressionado, o rei D. Afonso toma a decisão drástica de eliminar D. Inês. O epílogo da história, popularizado n’ Os Lusíadas diz que D. Pedro, já rei, declara Inês rainha e obriga a corte a beijar-lhe a mão, depois de morta.
Rua Ângela Pinto
Arroios
A biografia conhecida de Ângela Pinto não é marcada por uma história de amor, mas antes pela forma como a atriz viveu o amor. Muito acarinhada pelo público, pisou os palcos pela primeira vez em 1855, com 15 ou 16 anos, e teve um dos pontos altos da sua carreira com a interpretação de Severa, na peça homónima de Júlio Dantas estreada em 1901. De espirito livre e independente, era uma das mais convictas boémias da sua época, sendo célebres os banquetes que promovia no Restaurante Tavares e as ceias no Botequim Magrinho. Fugiu de um casamento com um homem mais velho e das convenções da época, sendo-lhe conhecidos vários amantes, entre os quais D. Luís do Rego. Viveu os últimos dias da sua vida com um amigo na Rua da Emenda.
Triste Feia
Estrela
A identidade da Triste Feia que deu o nome a esta artéria perdeu-se nos tempos, mas não a sua história. Diz a tradição que aqui moravam três irmãs, sendo uma delas conhecida pela sua fealdade. As irmãs namoraram e casaram ao passo que esta, desprezada pelos homens, ficou sozinha. Com o avançar da idade, agudizou-se a solidão e a Triste Feia passava grande parte dos dias sentada à sua porta, numa melancolia profunda. Inspirava simpatia nos vizinhos e em quem passava e tornou-se uma figura popular, ao ponto de não ser esquecida até aos dias de hoje. O nome desta via, que não é rua, surge nas plantas e descrições das freguesias após a remodelação paroquial de 1770, sugerindo que a Triste Feia teria vivido antes desta data.
Rua Ilha dos Amores
Parque das Nações
A Ilha dos Amores que dá nome a esta rua é o lugar mítico criado e descrito por Luís Vaz de Camões nos Cantos IX e X de Os Lusíadas. O local paradisíaco para onde Vénus, deusa do Amor, com a ajuda do seu filho Cupido, conduz os portugueses, como recompensa pelos feitos heroicos na viagem inaugural à Índia através do mar. Nesta ilha, os marinheiros são recebidos por belas e sensuais ninfas que, para além dos jogos amorosos, lhes propiciam banquetes e lhes profetizam glórias. Esta rua foi criada aquando da realização da Expo’98 que procurou evocar na toponímia os oceanos, tema da exposição, os Descobrimentos Portugueses, escritores portugueses e figuras relevantes para Portugal. Na reconversão da zona em Parque das Nações, grande parte desses topónimos foram oficializados por edital de 2009.
Para descobrir ou saber mais sobre a toponímia de Lisboa consulte cm-lisboa.pt/toponimia
Nesta reportagem, damos voz a artistas e projetos que têm, em comum – para além do seu amor pelas artes – o facto de terem todos menos de 30 anos. Falámos com uma artista plástica, uma bailarina, um escritor, três atores e uma banda. Todos com talentos diferentes, mas com o mesmo objetivo de servir a arte que escolheram. Quisemos conhecer o seu percurso profissional, que dificuldades enfrentam neste contexto pandémico, e o que andam a fazer. Decore estas caras, porque elas vão, com toda a certeza, marcar a vida cultural do país nos próximos tempos.
Sogranora
músicos
Em 2016, Ricardo Sebastião, Vasco Gomes e Tomás Andrade treinavam no mesmo clube de basquete no Seixal, quando decidiram, por graça, formar uma banda. Inicialmente, começaram por tocar versões de outros artistas, mas perceberam que, se queriam levar o projeto a sério, teriam de compor as suas próprias canções.
Assim, em 2019, nasciam, oficialmente, os Sogranora. O single de estreia, Semilisboeta, surgiu pouco depois. A pandemia afastou-os fisicamente, mas não lhes cortou a criatividade: durante esse tempo, aproveitaram para compor, cada um em sua casa, e daí surgiu o EP Altivez e Castigo.
Para a banda funcionar, é essencial que haja um bom espírito de equipa, seja com Ricardo a compor as letras e Vasco e Tomás mais responsáveis pelos arranjos, ou com os três a darem ideias durante os ensaios. Para março, está previsto o lançamento de mais um EP, e respetivo concerto de apresentação no Seixal (de onde são naturais). O primeiro single já é conhecido, Qualquer impasse.
Alice dos Reis
artista plástica e visual
Tinha apenas 23 anos quando organizou a sua primeira exposição individual, na Galeria da Boavista. Alice dos Reis cedo percebeu que o seu caminho profissional seria “associado a um contexto criativo e cultural”, o que a levou a estudar na Escola Artística António Arroio. Seguiu-se uma licenciatura em Arte e Multimédia na Faculdade de Belas-Artes, e uma mudança para Amsterdão, onde fez um mestrado em Artes Plásticas.
O vídeo e a fotografia são as suas ferramentas de eleição, e o seu trabalho “acaba por ser autorreferencial”, o que a leva a explorar temas que lhe interessam a nível pessoal, como a natureza, tecnologia, identidade e género. A pandemia trouxe-lhe alguma “frustração e uma sensação de perda de um conjunto de experiências”, mas não lhe faltou trabalho. Dirige, com Pedro Neves Marques, a editora literária e de poesia Pântano, dedicada a livros inéditos em inglês e traduções para português, projeto que a tem feito sentir “bastante completa”. Encontra-se ainda a trabalhar num filme e prevê, este ano, fazer residências artísticas fora do país.
André Loubet
ator
André Loubet tinha 19 anos quando participou na sua primeira peça, uma produção do Teatro do Bolhão, no Porto. Começou a sua formação na Academia Contemporânea do Espetáculo, e seguiu-se o Conservatório.
Uma visão mais romântica da profissão levou-o a privilegiar o Teatro desde cedo, “uma escolha adolescente e algo inconsciente”, admite. É nesta área que se sente bem, mas reconhece que a televisão dá uma outra segurança, de “não andar sempre a contar trocos ao fim do mês. Trabalhar em teatro não dá para perspetivar o futuro a longo prazo”, mas, ainda assim, não se queixa da falta de trabalho.
Mesmo durante a pandemia – e ao contrário de muitos dos seus colegas de profissão – não perdeu rendimento por estar a trabalhar numa coprodução entre o TNDMII e os Artistas Unidos. Em janeiro, esteve em cena com a peça Obstrução (textos de Dimítris Dimitriádis), uma produção dos Artistas Unidos no Teatro da Politécnica. Tem uma criação sua na gaveta que espera ter tempo para desenvolver e apresentar ainda este ano.
João Arrais
ator
Em criança, João Arrais sonhava ser jogador de futebol. Tinha sete anos quando fez o seu primeiro anúncio, mas era a irmã que tinha o sonho de ser atriz. No entanto, a vida tinha planos diferentes para os dois: ela estudou Psiquiatria, ele foi crescendo como ator.
Com 10 anos, participou na sua primeira novela, Jura, exibida pela SIC. Na área da representação já fez de tudo: televisão, cinema, e teatro, mas é à frente das câmaras que se sente bem. O palco traz-lhe outro tipo de gratificação, mas não diz que não a nenhum desafio.
Esteve, há não muito tempo, em cena com o espetáculo Romeu e Julieta, de John Romão. A pandemia não lhe tirou trabalho, mas atrasou o começo da rodagem do filme A Criança, que poderemos ver nas salas portuguesas já este mês (estreia prevista para 10 de fevereiro). Sobre o seu futuro próximo, o ator não pode revelar muito, mas ficámos a saber que vai participar num projeto que estreia em breve na OPTO.
Margarida Serrano
atriz
Margarida Serrano tinha apenas cinco anos quando fez o seu primeiro anúncio para televisão. Dois anos depois, participou na primeira telenovela. A partir daí, os projetos foram-se sucedendo. Nunca teve o sonho de ser atriz, até o ser e perceber que gosta mesmo de representar.
Durante a pandemia continuou a trabalhar, mas alguns hábitos tiveram de ser alterados no set e nos bastidores, com um distanciamento físico a que não estava habituada. Já fez teatro, cinema e televisão, mas onde se sente mais confortável é a trabalhar para as câmaras. Quem a vê no ecrã pode não acreditar, mas é muito tímida e insegura. “O teatro traz consigo um peso maior e isso deixa-me nervosa”, confessa.
Com apenas 14 anos e uma vida inteira pela frente, as suas opções profissionais ainda estão em aberto: “adoro o que faço e vou, sem dúvida, continuar a apostar na formação nesta área, mas não sei o que o futuro me reserva”. Para já, podemos vê-la em A Serra (em exibição na SIC), e, ainda este ano, na série Emília (a ser transmitida pela RTP).
André Osório
escritor
Um texto que escreveu na escola, e que recebeu largos elogios, levou-o a escolher Humanidades no ensino secundário. Aos 14 anos, André Osório mergulhou no mundo da poesia quando o pai, o jornalista e escritor Luís Osório, lhe deu a ler poemas de Herberto Hélder. Começou também a escrever, até que a própria literatura começou a fazer parte da sua identidade.
Os seus primeiros poemas foram publicados na revista Apócrifa, quando tinha apenas 19 anos. Entretanto licenciou-se em Estudos Portugueses e, em 2020, lançou o seu primeiro livro, Observação da Gravidade (Guerra e Paz), muito bem recebido pela crítica. Durante a pandemia aproveitou para fazer uma tradução e para pensar no que se seguiria.
Neste momento, André divide-se entre a sua escrita e a revista literária Lote, que fundou em 2019. Está também a trabalhar numa antologia de poetas portugueses. Na sua mesa de cabeceira encontram-se As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, e O Livro das Comunidades, de Maria Gabriela Llansol.
Beatriz Valentim
bailarina e coreógrafa
Com apenas quatro anos, Beatriz Valentim iniciou-se no ballet na sua cidade natal, Póvoa do Varzim. Aos 14, depois de muito insistir com os pais, mudou-se para Lisboa para frequentar o Conservatório e perseguir o sonho de ser bailarina. A integração no mercado de trabalho não foi fácil e sentiu a idade jogar contra si, já que muitas das audições a que ia pediam alguns anos de experiência ou uma idade mínima que ainda estava longe de ter.
Aos 19 anos, estreou-se no espetáculo Propriedade Privada, de Olga Roriz, no Centro Cultural de Belém, ao lado de bailarinos com mais de 30 anos. Outro trabalho que a marcou foi A Laura quer!, de Sílvia Real, onde destaca “a maneira de trabalhar inteligente e intensa” que lhe ensinou “muito sobre o próprio processo criativo”.
A pandemia tirou-lhe o chão, muitos projetos ficaram em suspenso, e para ter alguma segurança financeira deu aulas online. Em fevereiro, podemos vê-la no palco do São Luiz em Concerto Nº1 para Laura, de Sílvia Real. Este ano vai ainda participar num projeto de Né Barros, e apresentar duas peças da sua autoria.
Personagem de origem espanhola semilendária, celebrizada universalmente enquanto aventureiro libertino e sedutor, Don Juan terá sido tratada pela primeira vez por Tirso de Molina na peça El Burlador de Sevilla y convidado de piedra. Não muitos anos depois, em 1665, na sequência do escândalo de Tartufo, Molière parece andar de novo à procura de problemas e estreia a sua visão de Don Juan. O grande comediógrafo francês dá-lhe “um tratamento muito mais humano” ao aligeirar a dimensão trágica do personagem e “o carácter religioso e edificante das primeiras versões, sob o espírito do Concílio de Trento”, acabando a afrontar a moral católica vigente. A peça acaba por proporcionar ao autor novos dissabores, nomeadamente, ser censurado e ver banida em vida a versão original do texto.
Nesta sua visão da comédia de Molière, António Pires quis, precisamente, “contrariar a ideia romantizada que se criou de Don Juan” e sublinhar um traço que lhe pareceu fundamental, sobretudo, nos dias de hoje, e que passa pelo modo como, com ironia, o texto aponta ferozmente o dedo à hipocrisia, ou seja, esse traço de caráter que tanto incomodou, à época, as autoridades religiosas francesas. “Na peça, para continuar a viver como quer, Don Juan torna-se hipócrita e, tal como todos os outros, esconde-se atrás da religião”, lembra o encenador. Ao acusar a Igreja de ser uma espécie de escudo para a hipocrisia humana, Molière “está a falar de tempos onde, tal como os de hoje, parece haver mais fingimento do que verdade.”

Curiosamente, quando a companhia do Teatro do Bairro começou a trabalhar o texto, aquilo que motivou especialmente António Pires foi a possibilidade de “pôr os atores Jaime Baeta, que interpreta o Don Juan, e João Barbosa, no papel do criado Esganarelo, a jogar. Gosto tanto deles e reconheço-lhes uma energia única que seria notável vê-los nestes papéis”, declara ao lembrar como a peça é uma irresistível comédia, capaz de “expor os mais comuns defeitos humanos através do riso.”
Mas, se os protagonistas têm uma “energia única”, o que dizer dos restantes atores da companhia do Teatro do Bairro? António Pires sente que Don Juan mostra toda a importância de um trabalho de companhia no teatro. “A cada espetáculo, sinto que estes atores estão em casa, e isso fá-los crescer, permitindo-lhes a liberdade de entregarem todo o seu quê de artistas, não somente de atores”. Essa capacidade de serem artistas e intérpretes torna esta comédia, naturalmente, “ainda mais viva e muito teatral.”

O pulsar da teatralidade e das “coisas não iguais à realidade” sobressaem no magnífico cenário de Alexandre Oliveira e nas pinturas e desenhos de Jacqueline de Montaigne, evocação dos 400 anos de Molière, do teatro barroco francês e da “caixinha mágica à italiana”. Todo “este dispositivo cénico privilegia o jogo do teatro, com a perspetiva, a ribalta, as caras pintadas, os vestidos. Foi a maneira de homenagearmos o autor e um modo de fazer teatro” que, a par da diversão e do prazer do fingido, continua a interpelar a nossa condição de seres humanos.
Don Juan está em cena no Teatro do Bairro até 27 de fevereiro, com récitas de quarta a sexta às 21h30 e aos fins-de-semana às 18 horas.
João Maurício Brás
Os Novos Bárbaros – A Moral de Supermercado
O leitor desengane-se que não encontrará este livro nas grandes superfícies. Doutorado em Filosofia, João Maurício Brás, é figura notada nas redes sociais, que incendeia com o seu sarcasmo e iconoclastia. Ao terceiro livro na Opera Omnia, após O Mundo às Avessas (2018) e Os Democratas que Destruíram a Democracia (2020), dá-nos nova obra séria e totalmente pessimista. Seguindo a linha de pensamento de Emil Cioran, Philippe Muray e Nelson Rodrigues, Maurício Brás não poupa nas mais duras palavras ao fazer o diagnóstico do fim da Civilização em curso. As nossa vidas, todas voltadas para o presente, para as hipérboles criadas pela comunicação social que se esvaziam à hipérbole seguinte; para a submissão ao politicamente correto, às políticas identitárias, e ao endeusamento do mercado livre, desembocam no supermercado em que se transformou o mundo, e segundo o autor, são indícios do enfraquecimento das relações humanas e de uma “existência que valorize a dignidade e a decência”. João Maurício Brás recomenda ainda que cada indivíduo se proteja deste tempo caótico. Opera Omnia
Manuel Alegre
Tentação do Norte
“Por um lado, parece-me que não é muito curial tentar perceber o que na obra de um autor é ou não ficção. Não digo verdade, nem realidade, já que, em meu entender, a ficção pode ir mais fundo que a realidade e ser mais verdadeira que a verdade, passe a expressão”. Tentação do Norte, a mais recente novela de Manuel Alegre, é uma variação, em prosa poética, sobre os temas da realidade e da ficção, da memória e da imaginação (“Esta é a verdade, se é que tudo não é ficção de ficção, fruto do muito imaginar”). A procura de algo que só existe no passado (“numa praia batida pelo vento ao norte do Norte”), numa história de separação amorosa, de luta e de resistência política. E a noção de que com esse passado se foi ”um tempo, uma cultura, um imaginário”. Uma prosa “que não passa de um esboço, uma tentação poética de encontrar-me contigo naquela praia que, já sabes é sempre ao norte do Norte”, mas que contém já a dolorosa consciência de que “os velhos que somos não podem abraçar os jovens que naquele dia se separavam.” Dom Quixote
Nuno Saraiva
Diário de uma quarentena em risco
Nuno Saraiva, ilustrador, cartunista e autor de banda desenhada, confinado devido à pandemia do coronavírus a partir de 10 de maio de 2020, decidiu dar-se ao luxo de fazer algo que há décadas não conseguia: desenhar “só pra si”. Resolveu desenhar um cartune por dia, partilhado apenas pelos seus seguidores do Facebook e Instagram. Este diário desenhado somou perto de 150 cartunes, dos quais, o autor, selecionou 100 para este livro. Alguns deles conseguiram notoriedade imediata e tornaram-se virais, outros deram origem à polémica – “incompreendidos pelos amigos, deturpados por desconhecidos, atacados por haters militantes, e até alvo do algoritmo censor”. A pandemia é o tema omnipresente nesta série de desenhos, mas o futebol, a religião ou a política (“Não serão alguns políticos os melhores ilusionistas? E não serão os cartunistas aqueles chatos que, em palco, se levantam para questionar o truque do ilusionista?”) não escapam ao olhar mordaz e ao traço inconfundível do cartunista. O talento, a presença de espírito, a inteligência e o humor de Saraiva põem a quarentena em risco! PIM! Edições
George Bernard Shaw
As Aventuras de uma Negrinha à Procura de Deus
Publicada aos 82 anos de idade, As Aventuras de uma Negrinha à Procura de Deus, novela fortemente inspirada no Candide de Voltaire, é o último grande êxito do dramaturgo George Bernard Shaw. A intenção inicial de Shaw era escrever uma peça, mas na impossibilidade de encontrar um palco onde mostrar a negrinha nua, “bela criatura de pele acetinada e músculos reluzentes que faziam a raça branca dos missionários parecer feita, por contraste, de acinzentados fantasmas”, optou por uma prosa ficcionada. A negrinha, convertida por uma missionária, aventura-se a percorrer a selva africana à procura de Deus, acompanhada por uma moca e guiada por uma Bíblia. Após uma sucessão de encontros divinos e profanos, resolve seguir o conselho de Voltaire, cultivando o seu jardim e cuidando dos seus filhotes, desistindo de obter a explicação total do universo. Shaw satiriza, de forma provocatória, a religião e “as várias etapas no desenvolvimento da conceção de Deus”, o colonialismo e o racismo dos ingleses, num cenário que sugere o da União Sul Africana, feroz no seu apartheid. Sistema Solar
Melanie Klein e Joan Riviere
Amor, Ódio e Reparação
Amor, Ódio e Reparação pretende transmitir em linguagem corrente alguns dos processos mentais mais profundos que estão na base das ações e dos sentimentos quotidianos de homens e mulheres normais. Considerando que a psicologia humana é determinada pela constante interação entre impulsos afetuosos e impulsos de ódio e agressão, as autoras fazem remontar muitas das particularidades do adulto às suas origens na infância e mostram muitas características do adulto que são prova da persistência de modos precoces de pensar. Obra em duas partes, na primeira Joan Riviere analisa o ódio, a avidez e a agressão; na segunda, Melanie Klein examina as forças do amor, da culpa e da reparação. As autoras mostram também que, ao longo da vida, o adulto engendra infindáveis modos de adaptação – subtis, complexos – para encontrar um equilíbrio entre as forças vivificantes e os elementos destruidores da natureza humana. Incursão inédita pelo campo da psicanálise à data da sua publicação original, 1937, este é um clássico que não foi ultrapassado nem na atualidade científica, nem na pertinência. IUI- Imprensa da Universidade de Lisboa
Leroi Jones (Amiri Baraka)
Música Negra
Leroi Jones (1934-2014), mais tarde Imamu Amiri Baraka (líder espiritual, príncipe abençoado), foi poeta, dramaturgo, crítico musical, ativista político, membro destacado do movimento beatnik e do Black Power. Redigiu inúmeros artigos sobre racismo, colonialismo e música afro-americana. Nesta coletânea de ensaios, originalmente publicada em 1967, descreve a cena do free jazz norte-americano dos anos 60. Num exercício radical de crítica musical, procura traduzir em palavras a liberdade de improvisação de um género que, em seu entender, deve ser percecionado enquanto expressão de uma atitude sobre o mundo, e não somente como uma forma de fazer música. Neste contexto, escreveu: “Já o músico negro, ele pega no seu instrumento e começa a tocar sons em que nunca antes havia pensado. Improvisa, cria, vem-lhe de dentro. (…) Logo, ele também consegue fazer o mesmo se lhe derem independência intelectual… Pode inventar uma sociedade, um sistema social, um sistema económico, um sistema político que seja diferente de tudo o que existe neste planeta. Vai improvisar, fazer nascê-lo de dentro de si.” Orfeu Negro
O Hospital Real de Todos Os Santos: Lisboa e a Saúde
O terramoto de 1755 foi fatal para o Hospital Real de Todos os Santos, um marco no centro da cidade que viria a ser completamente desativado vinte anos depois, pondo fim a uma história de quase três séculos. O icónico edifício e o papel que teve na sociedade lisboeta podem agora ser revisitados graças a uma obra de investigação e divulgação recentemente editada, produto de uma parceria entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Santa Casa da Misericórdia. A obra congrega uma investigação multidisciplinar, recorrendo à arqueologia, arquitetura, farmacopeia e políticas de saúde pública, entre outras, para oferecer uma visão global e profunda daquele que foi um projeto de vanguarda à data da sua fundação, em 1492. O livro será lançado e disponibilizado brevemente. TCP Câmara Municipal de Lisboa/Santa Casa da Misericórdia
Carla Simões
A Origem do Cinema contada aos sobrinhos
Catarina e Vasco vão uma vez por mês a um cinema antigo, nos Restauradores, levados pelo tio André, cinéfilo convicto. No Salão Foz, já viram filmes mudos acompanhados ao piano, com um senhor de bigodinho muito engraçado, com um chapéu de coco e uma bengala. Foi lá que ficaram a saber que o cinema é feito de fotografias. Perante o espanto dos sobrinhos com tal informação, o tio André decidiu contar-lhes a história do cinema, e, juntos, embarcaram numa autêntica viagem no tempo. Este livro, ilustrado por Anna Bouza da Costa, é a mais recente edição da Cinemateca Portuguesa publicada no âmbito das atividades do serviço educativo da Cinemateca Júnior, onde a autora, Carla Simões, trabalha. A origem do cinema contada aos sobrinhos tem revisão científica de José Manuel Costa, diretor da Cinemateca. Cinemateca Portuguesa
Quando olha para o panorama das artes performativas de há 25 anos (1997, o ano da fundação das Produções Real Pelágio) e de hoje, que reflexões lhe surgem dessa comparação?
Muitas coisas melhoraram, mas muitas continuam exatamente na mesma. Há 25 anos, andei com o coreógrafo Francisco Camacho porta a porta pelo país fora, a tentar convencer programadores e presidentes/vereadores de câmara a apresentarem os nossos espetáculos. Queríamos teimosamente provar que a dança que se fazia na altura em Portugal poderia ser vista por qualquer pessoa, de norte a sul, inclusive elaboramos um “dossier de circulação” que disponibilizámos depois à comunidade; um esforço enorme cuja repercussão ainda hoje a sentimos. Muitos dos nossos coprodutores dessa altura continuam a receber-nos.
Em Portugal, a dança tem um lugar evidente nas artes performativas, existem muitos mais coreógrafos jovens a trabalhar nesta área, existem muitos mais festivais, pequenas associações, estruturas de artistas que apoiam outros artistas, ou seja, a comunidade cresceu muito e isso é muito positivo. O que mudou muito pouco ou nada é que infelizmente os nossos políticos, independentemente dos partidos a que pertencem, continuam a não alterar o orçamento para a Cultura, continuamente subvalorizado, o que faz com que companhias e associações de artistas vejam os seus projetos acabar por falta de recursos, ou façam uma ginástica inadmissível para sobreviverem (e muitos não conseguem), para continuarem e para adaptarem os seus projetos à precariedade.
Muito sinceramente, acho que a falta de interesse nesta área é evidente! Quantas pessoas, ministras, ministros, deputados vimos nas salas de espetáculos? Lamento dizer, mas raramente, e isto prova realmente onde estamos ainda…
Outra dificuldade que encontramos e que persiste na área da educação pelas artes, e é evidente no projeto das Produções Real Pelágio, e certamente em muitas outras estruturas que trabalham paralelamente estas duas grandes áreas é, se por um lado o Ministério da Educação (ME) considera que o nosso trabalho, por sermos maioritariamente artistas, deveria ser mais apoiado pelo Ministério da Cultura (MC); o MC entende que o ME deveria apoiar-nos mais porque o nosso projeto inclui crianças, jovens e toda uma vertente mais pedagógica. Isto não faz sentido nenhum. A educação pelas artes acaba sempre por ser uma área por vezes invisível. O esforço em trabalhar com escolas, direções e crianças, é enorme, e nós acreditamos que é imprescindível este contacto e que deveria chegar a todas as escolas, mas sentimos que não é valorizado e apoiado de forma consistente.
Como perspetiva os próximos anos de atividade das Produções Real Pelágio (PRP)?
Neste momento, temos uma equipa extraordinária, e tudo o que fazemos deve-se a muito diálogo, muita reflexão constante entre todas e todos. O núcleo principal são seis pessoas, mais seis professores regulares que trabalham nas escolas A Voz do Operário (VO), nossa parceira há cerca de 10 anos, e a Escola Básica do Castelo, a que se juntam pontualmente vários artistas com quem trabalhamos projeto a projeto.
Este ano, pela primeira vez, conseguimos ter contratos de trabalho (três a tempo inteiro e três a part-time), o que é incrível. Estamos no Teatro da Voz (espaço cedido pela escola VO, uma parceria exemplar inédita entre artistas e uma escola), que é a nossa sede, onde para além dos nossos ensaios e de vários projetos e artistas que apoiamos, temos o Centro de Formação Artística, onde damos aulas extracurriculares para além das aulas que levamos às escolas.
Finalmente temos um site atualizado disponível… e muitos projetos na cabeça. O que espero sinceramente é que o MC compreenda que existem muitos projetos tal como o nosso, que não podem, nem devem deixar de ser apoiados quando elegíveis, por falta de visão e de investimento político e estratégico, mas é o que acontece. E acabam assim de um dia para o outro. As Produções Real Pelágio já estiveram para acabar várias vezes, para destruir a equipa porque o dinheiro não chega, mas graças a apoios de coprodutores e a apoios sustentados e continuados como o da Câmara de Lisboa e outros, continuamos a resistir, mas não sem grandes ansiedades. Temos um percurso, isso é garantido e é uma conquista feita à custa de muito esforço.

Quais dos protagonistas da Dança pertencentes à sua geração considera seus “companheiros de estrada”, e que tipos de ligação mantêm hoje uns com os outros?
Gosto muito de trabalhar em dupla, acho que penso melhor! Quando tenho a oportunidade, gosto de partilhar as minhas dúvidas constantes, pois duvido muito do que penso, da maneira como danço, daquilo que faz sentido apresentar num palco, constantemente. Esse diálogo para mim é imprescindível. Acho que pessoas muito importantes para mim foram, sem dúvida, o João Fiadeiro, a Vera Mantero e tantos outros.
No entanto, há três pessoas que destaco, meus parceiros indiscutíveis e que determinaram tudo o que fiz e faço, e me mudaram e me ajudaram a ser quem sou! Artisticamente, e não só. Uns pelos longos anos com que trabalhei e trabalho, mas também pela a intensidade que envolveu cada colaboração, a cumplicidade existente:
O Luís Filipe Quitas, dramaturgo, ator (1964-2016), coautor da encomenda para o espetáculo POUR BIEN. Eu tinha 23 anos, e este espetáculo foi o culminar de todos os meus devaneios e inquietações resultantes de uma adolescência muito intensa, sofrida, mas com momentos inesquecíveis e muito bons. Aos 15 anos fui viver sozinha para Londres, e foi regressar a Portugal e querer colocar tudo num mesmo espetáculo, quase como a minha apresentação a uma nova comunidade que começava a conhecer… Com o Filipe aprendi que tudo é possível colocar em palco, desde o mais foleiro ao mais erudito, desde que bem sustentado! O Filipe ensinou-me que tudo é possível, que a nossa imaginação não tem limites e essa liberdade marcou-me profundamente e para sempre.
Outro é o Sérgio Pelágio, cofundador das PRP, coautor e músico de vários espetáculos, parceiro numa digressão de cerca de 300 espetáculos durante 25 anos, entre os quais a trilogia da Sra. Domicília, personagem que ambos construímos quando estávamos a estudar em Nova Iorque e que durante cerca de 15 anos apresentámos em diferentes locais, de festivais de pequena e grande dimensão a espaços alternativos, aceitávamos tudo! Queríamos na altura provar que a dança portuguesa poderia circular! Muitas digressões em Portugal e no estrangeiro, éramos a certa altura quase uma “banda rock”, até conseguimos comprar uma carrinha para as nossas digressões. Neste momento, o nosso percurso é mais independente, mas aquilo que aprendi com o Sérgio está sempre em tudo o que faço! Durante muitos anos costumava dizer que as ideias, as grandes ideias dos vários espetáculos sempre foram do Sérgio, eu limitava-me a colocá-las na prática e sempre foi assim… o Sérgio era muito mais do que um músico, escrevia guiões, trabalhava a dramaturgia, dava ideias para ações, adereços, maneiras de me movimentar, etc…
E o Francisco Camacho, com quem há uma relação artística e de amizade de 30 anos. Foi a coreógrafa, bailarina e grande produtora (do Festival Danças na Cidade), a Mónica Lapa, que me apresentou ao Francisco quando regressei de Londres onde tinha estudado dança durante cinco anos, tinha 20 anos e não conhecia ninguém. As colaborações entre nós durante este 30 anos foram muitas: Bute-Bute (1992) onde o Francisco foi meu intérprete e seguidamente fui intérprete de vários espetáculos dele (Live-Evil, Andiamo!, Lost Ride, e recentemente VELHⒶS), para além disso coabitámos (EIRA e PRP) um mesmo espaço de trabalho durante cerca de oito anos. Ainda colaborámos ambos como intérpretes num espetáculo (Espiões) de Filipa Francisco. As afinidades são evidentes, artísticas, estéticas, mas também a outros níveis, que partilhamos regularmente, como por exemplo ao nível da produção do nosso trabalho. Com o Francisco, durante os ensaios há por vezes uma empatia muitas vezes quase telepática, ele comenta algo e era exatamente isso que eu queria dizer… Quando convidei o Francisco para coreografar um solo para mim, o Lost Ride, foi precisamente porque adorava e adoro a maneira como ele me dirige, diz-me as coisas que preciso ouvir, dando-me liberdade e ao mesmo tempo sempre exigindo grande rigor. Admiro profundamente o trabalho dele e o seu olhar exterior nas minhas últimas criações (A Laura quer!, e este Concerto n.º1 para Laura) determinam certamente o resultado.
No balanço a que se impôs durante a pandemia, passou-lhe pela cabeça largar tudo e dedicar-se a outra coisa?
Sim e não! Não sou uma desistente, nunca fui, sou muito teimosa, quando está tudo “a cair” sou daquelas que vê sempre ainda uma solução! Tive momentos muito trágicos na minha vida (pessoais e profissionais), mas quem não tem? Sinto-me sempre uma privilegiada e nos momentos piores tento sempre pensar que há pessoas em situações muito piores e são muitas.
No entanto no primeiro confinamento, tal como todo o mundo, andava perdida, pensava que a fazer outro projeto era urgente arriscar muito, era esta a altura, quis estar mais presente dentro da comunidade, porque acabamos por partilhar muitas vezes dentro de uma equipa, e deixar mais de lado uma comunidade incrível de artistas à nossa volta; juntei-me à ação cooperativista e quis ajudar outros que precisavam mais. Foi muito importante, e ainda é, este grupo informal que continua em voluntariado a ajudar… Mas passei momentos muito solitários, as PRP estavam nesta altura num impasse, o Grupo 23: silêncio! (uma digressão via-se obrigada a ser interrompida e por questões de falta financiamento tinha de ser extinto), mais uma vez não tínhamos sido apoiados pelo MC apesar de elegíveis e era altura de restaurar tudo novamente, despedir pessoas, etc… e com a pandemia tive uma onda de pessimismo enorme, salvou-me como me salva sempre ir para o estúdio e dançar, pesquisar, cantar, incentivar e isso acalmava-me. Ainda sem tudo certo, mas tentava retirar forças para continuar e uma coisa era certa, não queria ficar sentada no sofá a ver o mundo a colapsar, tinha de agir!
O que distingue a receção ao seu trabalho em Lisboa, no resto do país, e no estrangeiro?
Tenho tido experiências muito diferentes, festivais muito ecléticos e salas muito informais, escolas… e esse confronto interessa-me muito! O que é que as pessoas retiram que aos profissionais às vezes lhes escapa? As crianças e os jovens às vezes diziam pelo seu lado mais ingénuo, e até por vezes corrosivo, aquilo que precisava de ouvir para alterar algo, para compreender o que estava a fazer (um desenho de uma criança chegou a ter a chave para o final de um dos nossos espetáculos – o Tritone). Em relação ao estrangeiro, como raramente somos conhecidos, há um lado também muito original. Por exemplo, quando fomos ao Brasil (Festival Panorama, a convite da curadora e produtora Catarina Saraiva) ou um festival em Liubliana, onde apresentámos o Casio Tone há alguns anos. Foram momentos especiais e inesquecíveis.
Quem foi a pessoa que mais lhe abriu a cabeça para tudo o que é possível fazer num palco?
Há três pessoas, como disse anteriormente, mas se tiver de nomear uma só, foi o Sérgio Pelágio.

Concerto nº. 1 para Laura oscila entre a melancolia, a energia xamânica que parece desejar um qualquer exorcismo, e um registo paródico que desconstrói estereótipos da cultura popular. Concorda com esta leitura?
Gosto da sua interpretação e fico contente pela sua visão sobre este Concerto. Sempre gostei de abordar questões sérias de uma forma por vezes brincalhona! Neste espetáculo, revejo momentos trágicos e muito hilariantes do meu percurso… mas, para não tornar este espetáculo demasiado autobiográfico (nunca foi essa a intenção), o facto de trabalhar com dois intérpretes mais jovens que nunca viram os espetáculos anteriores da Real Pelágio, espero ter conseguido retirar alguma melancolia inevitável.
Gosto de misturar materiais improváveis num mesmo contexto, por exemplo, citações musicais de Erik Satie e Igor Stravisnsky, juntamente com canções como Set the world on fire, (The Ink Spots) ou You dont know what love is (Don Raye/Gene DePaul) ou ainda canções originais de Sérgio Pelágio como é o caso de Pour Bien (Pour Bien/1995) e Ahora No (Road Movie/1996). Baralhar, rir e chorar ao mesmo tempo…
Não sendo música nem cantora, a música sempre teve um papel fundamental na minha vida, ouvia muito música punk na minha adolescência, mas também rock, jazz, música clássica, contemporânea, mas também alguma música foleira abraçava diferentes géneros musicais. Considero-me uma pessoa foleira. Gosto de sentir a liberdade de poder misturar materiais improváveis e, eventualmente, pouco coerentes vindos de uma mesma pessoa. Sim, desejo mudança, desejo que o que faço transpire essa vontade de agir e de querer transformar… se isso for evidente, fico muito contente!
O que procura transmitir aos bailarinos mais jovens, como a Beatriz Valentim e o Magnum Soares, que consigo colaboram neste espetáculo?
Procuro dar-lhes toda a confiança para não desistirem, que na idade deles é possível passarem momentos mais precários e financeiramente questionarem a profissão, mas com o talento que ambos têm, não devem desistir! Dizer-lhes sempre que nunca devemos colocar nada em palco que não tenhamos certeza de que chegamos ao melhor possível… não ter demasiadas certezas! A dúvida é saudável. E falar de coisas sérias a brincar também é fundamental! Nunca se levarem demasiado a sério! Nas suas ideias e na vida em geral.
Quem é Laura, nome por mais de uma vez citado nas suas criações?
Esta reposta não posso dar. É um enigma. Cada espetador retirará as suas conclusões, mas para isso terá de ir ver! É uma espécie de MacGuffin, uma ideia que veio também de todo o nosso fascínio (meu e do Francisco) pelo cinema em geral, e muitos realizadores que ambos admiramos profundamente, a exemplo Ingmar Bergman, Hitchcock, Tarkovsky, Kubrick, Cassavetes, e tantos outros. No início dos nossos processos começamos sempre por ver muitos filmes e levamos, de alguma forma, estes imaginários para dentro dos ensaios e das improvisações. E é a segunda vez que este nome surge no título de um trabalho nosso.
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