A sua música parece viajar diretamente dos anos 70/80 do século passado para os dias de hoje. De onde vem esse gosto pela sonoridade dessa época?
Sinto que fui muito influenciado pela música que os meus pais ouviam em casa. Há vídeos meus com três, quatro anos a dançar ao som dos Dire Straits. Na verdade, este fascínio pela música dos anos 70/80 está muito relacionado com a minha infância.
Para além da sonoridade, também a estética – da roupa, aos acessórios e aos videoclipes – é inspirada nessa época. Faz parte de um personagem ou é mesmo assim?
Sou mesmo assim. Talvez isso se note mais nos concertos, porque tenho o cuidado de pensar em tudo ao pormenor para dar uma experiência especial ao público, mas normalmente sou assim. Claro que não me visto de forma tão excêntrica todos os dias, no dia-a-dia ando de forma mais descontraída.
É membro dos Zanibar Aliens. De que forma se deu esse salto para um projeto a solo?
Antes da quarentena, os Zanibar fizeram uma tournée europeia. Foi nessa altura que percebi que faltava qualquer coisa na minha vida. Sempre fui guitarrista, nunca tinha experimentado cantar sozinho, embora cantasse também na banda. Percebi que podia haver espaço para ter o meu projeto a solo em português, que era algo que tinha muita curiosidade em experimentar.
Que tipo de reação tem tido do público?
Tem sido fantástico. Nunca tinha experienciado ver as pessoas a cantarem as minhas letras e a agradecerem-me por fazer música. Incentivam-me para continuar. Não me posso queixar, o apoio do público tem sido maravilhoso. São os meus queridos fãs [risos].
Na banda canta em inglês, mas no seu projeto a solo optou por cantar em português. O que é mais desafiante para si?
As pessoas têm tendência para achar que cantar e compor em português é mais difícil, mas eu acho que é igual, dá o mesmo trabalho. Acho que existe essa perceção porque há muito mais consumo de música anglo-saxónica. Claro que temos uma grande cultura musical em Portugal, mas em termos de dimensão e de consumo, a nível mundial, não há comparação. Temos muito a ideia de que há coisas que em português soam mais “foleiras”. Eu dizer ‘amo-te’ em português parece mais intenso, em inglês tem outra leveza.
Quais são as suas maiores referências musicais?
Ouço um pouco de tudo. Gosto de consumir todo o tipo de música, não consigo eleger um disco preferido. Adoro a cultura musical dos anos 80, mas também gosto de coisas mais atuais. O meu Spotify é uma grande mistura de géneros musicais.

As suas músicas são leves, com letras simples. Em que se inspira?
Na minha vida. Naquilo que quero ser e no que quero partilhar com as pessoas. Apesar de ser novo já vivi muita coisa, acho que tenho muito para dizer. Há algumas coisas na minha vida que posso partilhar com os outros. Depois as pessoas avaliarão se se identificam com isso ou não. Mas também depende muito da canção, do que ela pede. Se pede uma letra mais séria eu correspondo, se pede algo mais descontraído eu tento dar isso. Passa muito pelo que a melodia pede e pelo que estou a sentir na altura.
Disse, numa entrevista, que gostava de “roçar o foleiro”. Não é difícil saber onde é a fronteira?
Estava a referir-me ao meu visual [risos]. Nos anos 80, esse visual não era considerado “foleiro”, era normal, era assim que as pessoas se vestiam. Na verdade, não o considero assim, parece-me até bastante cool [risos]. Mas não estou muito preocupado com o que as pessoas pensam sobre o que visto, não tenho medo de ser quem sou.
Em 2020, lançou dois EPs: Teorias do Bem Estar e Modéstia à Parte, para além de alguns singles. A pandemia não afetou o seu processo criativo…
Houve momentos em que me questionei quando é que a pandemia iria acabar, quando é que eu poderia voltar a pisar um palco novamente, mas, entretanto, as coisas começaram a abrir, começaram a fazer-se concertos com menos lotação… Foi nessa altura que dei os primeiros concertos a solo. Nesse sentido, foram fantásticos e foi uma ótima experiência. Claro que a pandemia foi um período terrível, até por todos os concertos que tivemos de cancelar, mas consegui ter tempo para me dedicar à minha música, lançar os EPs e escrever este novo trabalho, Mãos Atadas.
Mãos Atadas é o seu terceiro EP. Como define este trabalho?
Fala sobre essa experiência da pandemia, de nos sentirmos impotentes perante as circunstâncias. Reflete aquilo que eu sentia na altura, mas ao mesmo tempo é uma lufada de ar fresco, uma pop dos anos 80 mas moderna, uma evolução dos dois EPs anteriores.
Depois de ter lançado três EPs e alguns singles impõe-se perguntar: para quando o primeiro álbum?
Na realidade, este EP podia ter sido um disco, se eu tivesse juntado mais duas ou três músicas. Há uma vontade minha de não o fazer, não quero estar a meter músicas onde elas não fazem sentido. Quando estou a pensar num novo trabalho faço 20 músicas, por exemplo, e há cinco que passam e que se transformam num EP. Prefiro trabalhar assim a estar a forçar um álbum com várias músicas que sei que não encaixam ali. Mas nunca planeio nada, está tudo em aberto. Quem sabe será o próximo projeto a sair?
No último sábado do mês de maio, dia 28, têm início mais umas Festas de Lisboa. O músico e compositor cabo-verdiano Tito Paris apresenta o espetáculo O que nos Une. A seu lado, em palco, um naipe de grandes vozes: Cremilda Medina, Joana Amendoeira, Paulo Gonzo e Djodje. Um concerto para dançar ao som de mornas e coladeiras à beira-rio, nos jardins da Torre de Belém, naquela que é também uma celebração dos 40 anos de carreira do artista.
Este ano, e como não podia deixar de ser, o Fado volta a ser rei no Castelo de São Jorge. Uma vez mais, este é o palco privilegiado para encontros musicais improváveis: Ricardo Ribeiro junta-se ao pianista de jazz João Paulo Esteves da Silva (dia 17) e Teresinha Landeiro interpreta duetos inéditos com os artistas Agir e Mimi Froes (dia 18).

As Marchas Populares também estão de volta, assinalando da melhor forma o arranque do mês de junho, com as primeiras exibições na Altice Arena (a 3, 4 e 5 de junho). Na noite de Santo António, o ansiado regresso à Avenida da Liberdade, num desfile encabeçado pela Marcha Popular de Vale do Açor, convidada desta edição, e com a participação, pela primeira vez, da Marcha Infantil das Escolas de Lisboa, como poderá conhecer com mais pormenores na edição de junho da Agenda Cultural de Lisboa.
As celebrações populares contam este ano com o protagonismo das Casas Regionais da cidade – embaixadas na capital da cultura regional do país – que vão levar ranchos folclóricos, tunas, bombos e Fado até à Quinta das Conchas para um encontro de dois dias (a 25 e 26 de junho).
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A 9, 10 e 11 de junho, por ocasião das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, promete-se “uma surpresa para a cidade”: uma mão e um pé, uma boca, um nariz, uma orelha e um olho vão circular pelos jardins e praças de Lisboa, numa performance protagonizada pela companhia Snuff Puppets, comunidade de artistas de Melbourne.

Para encerramento das Festas, na Praça do Comércio, o concerto Cheira a Lisboa homenageia o Parque Mayer –berço das Marchas Populares e antigo epicentro da vida artística lisboeta – em ano de centenário. Sobre o palco, a Orquestra Metropolitana de Lisboa, dirigida por Cesário Costa, acompanha seis grandes vozes da atualidade: Anabela, FF, Katia Guerreiro, Luís Trigacheiro, Lura e Marco Rodrigues, que recriam 22 clássicos da música popular com a roupagem dos arranjadores Filipe Raposo, Pedro Moreira e Lino Guerreiro. Um espetáculo inédito para ouvir canções intemporais que contam a história do local e da própria cidade, com o atrativo adicional de partilhar com o público algumas raridades, como o tema Santo António, de João Villaret, que foi alvo de censura em 1956.
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Para além das muitas dezenas de arraiais populares, das exposições e das visitas temáticas em torno da história da cidade e do seu santo de eleição – Santo António, quem mais? –, as Festas de Lisboa incluem ainda o Lisboa Mistura, a Festa da Diversidade, o Arraial Lisboa Pride, o CineConchas ou o Bairro em Festa.Toda a programação está disponibilizada no site oficial das Festas de Lisboa.
Comecemos pelo título do primeiro single deste EP, Good Kids. Refere-se a esta parceria entre ti e o Paulo Furtado ou é uma coincidência?
É uma coincidência. Sendo uma música lançada por duas pessoas e sendo nós amigos, já tinha pensado nessa associação, mas é mera coincidência já que a letra nada tem nada a ver connosco e com a nossa relação.
O vídeo de Good Kids é quase uma espécie de diário em vídeo. Querias passar essa ideia de autenticidade?
A ideia veio no seguimento do que já tínhamos feito no Califórnia: viajar até algum lado, montar um estúdio, gravar música e tentar ser o mais espontâneo possível. O objetivo, com o vídeo, era documentar esse processo, desde a viagem à casa onde ficámos, ao estúdio improvisado, àquilo que eram os nossos dias entre tocar e passear pela praia. A ideia era ser quase um documentário para que as pessoas conseguissem perceber exatamente como foi feito.
Esta parceria musical remonta a 2018, à road trip que fizeram pela Califórnia. Recordas-te como tudo começou?
O Califórnia surgiu porque o Furtado ia gravar o Misfit, no [estúdio] Rancho de La Luna, em Joshua Tree. Uns dias antes estávamos a beber um copo na ZDB e eu disse-lhe “ainda bem que vais, estou muito feliz por ti. Vou aproveitar para te visitar quando estiveres em estúdio porque gostava de fazer parte do processo, de estar lá contigo”. Já tínhamos tido uma longa conversa sobre um disco meu a solo, era um assunto que já vinha de há uns anos, mas que ia sendo sempre adiado. Às tantas ele diz-me: “esta é a altura perfeita. Vais ter comigo aos Estados Unidos, fazemos uma road trip, trazes a guitarra e gravamos o teu disco”. E assim foi, não pensámos muito mais sobre isso.
Em novembro do ano passado voltaram a fazer as malas…
Fazendo fast forward para 2020: estávamos em plena pandemia e eu comecei a pensar em coisas que gostava de fazer e desafiei o Furtado a fazer outro capítulo. Já tínhamos falado sobre várias hipóteses para dar continuidade a este trabalho. De repente comecei a elaborar uma ideia. Inicialmente, o previsto era irmos para Tânger porque o primeiro disco tinha sido muito à volta da beat generation e há uma ligação forte de Tânger à beat generation. A ideia era dar continuidade histórica e de contexto. Só que, entretanto, a viagem começou a transformar-se num pesadelo logístico por causa da pandemia, vistos, material de gravação… Cansámo-nos de estar à espera. Em novembro do ano passado metemo-nos no carro e fomos até ao sul de Espanha. Tínhamos visto umas fotografias da casa onde acabámos por ficar, apaixonámo-nos por ela e resolvemos não pensar nem adiar mais. Simplesmente fomos…
Como geriram a parte logística?
Dessa parte quem tratou foi o Furtado. Eu faço as canções e ele trata do estúdio. Estou muito mais verde nessas questões [risos]. Ele tem um estúdio montado em casa e consegue ter sempre um set up mais simplista, que é basicamente um estúdio que dá para montar em qualquer lado. Levámos a carrinha cheia de material. Quando chegámos foi só montar o estúdio. Estivemos três dias na casa a trabalhar…
Este ambiente foi bem diferente do que viveram na Califórnia. Mais melancólico e chuvoso…
Em relação ao clima não conseguimos antever. Marcámos a casa e, passados uns dias, o dono mandou uma mensagem a avisar que o tempo ia estar horrível. Até perguntou se queríamos adiar para outra altura. Andávamos há imenso tempo a querer fazer esta viagem, as nossas agendas não são fáceis e já tínhamos aquelas datas trancadas. Decidimos manter a viagem e eu disse ao dono da casa que, para nós, o clima era indiferente. Íamos estar num sítio bonito em frente ao mar. Mesmo que estivesse a nevar iríamos [risos]. Abraçámos as condições que tínhamos. Estava bastante vento e chuvoso, mas isso acabou por trazer essa atmosfera para o disco. Quando editámos o vídeo do Good Kids, achei que a música casava perfeitamente com a imagem. A canção em si – e a forma como foi arranjada e produzida – casa muito bem com essa melancolia do próprio clima.

As músicas já estavam pensadas antes da viagem?
Tinha as músicas escritas, ou seja, em termos dos acordes de guitarra e de letras estava tudo bastante alinhado. A única música que acabei de escrever lá foi o Randomly, em que parte da letra foi escrita em Espanha. Não tínhamos era nada do ponto de vista dos arranjos. Só tinha as canções à guitarra acústica e as letras. Tudo o que está gravado nas músicas e que vai para além disso foi feito lá, e basicamente por impulso, ou seja, eu gravava a guitarra e a voz, e a seguir o Furtado agarrava nos teclados e começava a fazer os arranjos. Era uma coisa muito espontânea, uma resposta muito direta àquilo que ele tinha acabado de ouvir. Íamos trocando ideias e fomos avançando assim, música a música.
Nestas aventuras a meias com o Paulo Furtado, como dividem os papéis?
Eu faço as músicas e as letras. No Califórnia, o Furtado montou a parte de estúdio e gravou o som. Neste disco já teve um papel mais preponderante, ou seja, além de gravar fez todos os arranjos. Tocou todos os instrumentos adicionais que não são a guitarra e a voz lead. Eu gravei só a guitarra acústica e a voz e ele gravou todos os outros instrumentos. Além de engenheiro de som e de produtor, aqui também foi arranjador e instrumentista.
O vídeo também foi feito por vocês…
Sim, foi filmado pelos dois e depois editado pela Ana Viotti. Chegámos cá com as imagens em digital e em super 8 e a Ana montou o vídeo. As fotografias também foram todas tiradas pelo Furtado. Isto é basicamente um microcosmos auto subsistente [risos].
California e Andaluzia: duas viagens, dois EPs. Qual o destino que se segue?
Temos várias coisas na manga, mas não sei quando é que isto pode voltar a acontecer. Para já não vou adiantar muita coisa, mas há pelo menos dois ou três destinos possíveis onde gostávamos de ir. Vamos ver se a vida nos permite ter tempo para nos dedicarmos a esses projetos. Mas isto é algo que pode perfeitamente existir em capítulos espaçados, sem ser algo muito planeado, como por norma são as carreiras dos artistas e das bandas. É um projeto que podemos ir levando avante cada vez que haja oportunidade e vontade de irmos para um sítio criar música num estúdio improvisado. Há aqui duas premissas: viajarmos juntos e criarmos música em sítios inesperados que não sejam estúdios profissionais.
Para além do formato digital e do CD, haverá também uma edição muito limitada em vinil. Porquê esta aposta no vinil?
Primeiro porque somos fãs do vinil, e depois por uma questão de continuidade, porque também lançámos o Califórnia em vinil. A única diferença é que agora o processo foi muito mais manual e, portanto, temos uma edição ultra limitada de 30 discos, que estarão à venda exclusivamente na Casa Tigre, nos Anjos. Cada disco vai ter uma fotografia assinada por nós, é um objeto de coleção. Vai haver também uma edição em CD e em formato digital.
Em maio, apresentas este EP na ZDB. Tens saudades dos palcos?
Gosto muito de fazer concertos a solo porque é uma experiência radicalmente diferente. Por um lado tem-se muito mais liberdade, mas também se está muito mais em perigo. Não há rede de suporte, estás completamente entregue à tua capacidade (ou não) de puxar o concerto para a frente. Quando se toca com banda há sempre alguém que segura as pontas. A solo estás completamente sem rede. Por outro lado, dá-te liberdade de levares as coisas como queres – se queres abrandar numa canção abrandas, se queres acelerar aceleras, se te apetece saltar para outra música podes fazê-lo. Há uma liberdade absoluta de fazeres o que queres a todo o momento, o que é muito entusiasmante.
Para além deste projeto a solo, tens também os Sean Riley & the Slowriders e os Keep Razors Sharp. Como geres tudo?
Há ainda a Casa Tigre, uma loja que tenho com o Paulo Furtado e com o Rai [Keep Razors Sharp, Poppers]. São vários projetos que se gerem com algum esforço e vontade, mas também com algumas privações. Às vezes temos menos tempo útil a nível pessoal, mas costuma dizer-se que quem corre por gosto não cansa. Não acho que seja exatamente assim, acho que cansa, mas é um cansaço bom.
O que marca esta terceira edição do Festival Lisboa 5L?
O que mais distingue esta edição das anteriores é que vai ser a primeira edição presencial. A edição de 2020 nem sequer se realizou. Veio a pandemia e os promotores decidiram cancelá-la. Comemorámos apenas o dia 5 de maio porque quisemos aproveitar a oportunidade desse dia ter sido designado pela UNESCO e, poucos meses antes, o Dia Mundial da Língua Portuguesa.
O que o diferencia de outros festivais literários nacionais?
O que o distingue de qualquer outro festival literário, nacional ou internacional, é o facto de não ter nem tema nem autor celebrado ou homenageado. No festival de Lisboa, é a própria celebração dos 5Ls (Língua, Leitura, Literatura, Livro e Livraria) que orienta e define a construção da programação. O envolvimento dos parceiros de programação, editores, livreiros, instituições, acrescenta um valor inestimável na composição de um programa diversificado e de qualidade. E, nestas áreas da leitura, do livro e da livraria, o 5L expande-se pela cidade ocupando espaços públicos e privados: bibliotecas, livrarias, casas de escritores, cafés, restaurantes e hotéis literários. E não é só o Festival 5L que se distingue dos outros; a própria cidade também se distingue de muitas outras pela proliferação de livrarias históricas, pelas bibliotecas com condições excecionais, pelos muitos cafés e hotéis frequentados por literatos, pelas casas dos escritores mais relevantes da literatura em português.
Estas três edições permitiram a consolidação da iniciativa?
Não. Ainda não foi possível atingir o grau de notoriedade e de reconhecimento que pretendemos para este festival literário. Para que esse reconhecimento e notoriedade sejam alcançados, e mais do que a qualidade dos participantes que é de grau muito elevado, o Lisboa 5L precisa de se afirmar pela repetição, ano a ano, e por uma maior divulgação.
Como perspetiva a evolução do 5L?
O próximo será sempre melhor que os precedentes. É da sua própria natureza. Os participantes, os organizadores e os parceiros vão adquirindo mais conhecimento, vão acrescentando entusiasmo, vão tecendo redes de afinidades e de cumplicidades que nos permitirão cumprir todos os objetivos: realizar na cidade de Lisboa um festival literário internacional que seja exemplar. Não posso deixar de referir que o Lisboa 5L pode contribuir para que, num futuro bem próximo, a cidade de Lisboa possa vir a integrar a rede mundial das restritas Cidades Criativas da Literatura UNESCO.
John Fante
A primavera há de chegar, Bandini
Considerado um dos grandes autores da sua geração, John Fante (1909-1983) não obteve reconhecimento em vida, ficando a dever a divulgação da sua obra a Charles Bukowski que escreveu: “Fante teve uma grande influência em mim. Fante era o meu deus.” A primavera há de chegar, Bandini, publicado em 1938, é o seu título de estreia e o primeiro de quatro volumes dedicados a Arturo Bandini, seu alter ego literário. No rigor do inverno de uma cidadezinha do Colorado, Arturo, aos 12 anos de idade vive o primeiro desgosto amoroso e confronta-se com a extrema pobreza da família, o adultério do pai, pedreiro sem trabalho, e o fanatismo religioso da mãe. Relato duro e comovente (“feito de coração e tripas”, segundo Niccolò Ammaniti), que contraria a narrativa tradicional da América como terra das oportunidades. Realidade de um país em plena Depressão Económica que só a evasão torna suportável: o pai através do recurso ao álcool, a mãe à religião e Arturo ao basebol e ao cinema, dois dos principais paradigmas da poderosa mitologia popular norte-americana do século XX. [Luís Almeida d’ Eça] Alfaguara
André Gide
A porta estreita
Assim como é estreita a porta que conduz à santidade, as narrativas na primeira pessoa de André Gide são breves, por serem tão depuradas. A história que aqui se conta é a de um amor não consumado entre dois primos, Jérôme e Alissa; a de duas servidões humanas que existem para os seus breves encontros, que conduzem à frustração e à desistência do amor por parte do rapaz, e a uma consumição física em nome da sublimação da alma, no que diz respeito à rapariga. A porta estreita é também uma narrativa epistolar, mas as cartas são sempre interpretadas de acordo com a interioridade de Jérôme, e são também suas outras observações relativas ao comportamento esquivo da prima, que parece querer estabelecer com ele um pacto que conduza o amor de ambos para o plano divino. A porta estreita foi o primeiro sucesso literário de André Gide, corria o ano de 1909, e podemos ver nele o reverso de O Imoralista (1902), narrativa igualmente curta e confessional onde pontificam o desejo e a transgressão. [Ricardo Gross] Cavalo de Ferro
Itamar Vieira Junior
Doramar ou a odisseia
Itamar Vieira Junior ficou conhecido entre nós com Torto Arado (vencedor do Prémio Leya), editado em 2019. Sucede-lhe agora Doramar ou a odisseia, uma coletânea de histórias que o autor brasileiro escreveu antes e depois do primeiro romance e que dedica “às mulheres, maternas, ancestrais, que se fizeram movimento em meu caminho”. 11 dos contos que compõem o livro, prestam homenagem às mulheres. Mulheres obrigadas a lutar contra todas as adversidades, quase sempre em busca da sua liberdade e de respeito, como Alma, a quem tiraram todos os filhos e que um dia se veste com o vestido mais bonito da senhora e parte em busca de um lugar onde possa ser livre; ou Maudigá, a velha parteira que vive no interior de uma floresta onde se prevê construir uma usina hidroelétrica e que se recusa a abandonar a sua velha cabana, na esperança do regresso do seu filho. Um livro no feminino com exceção para manto da apresentação, onde mergulha no universo de Arthur Bispo do Rosário, artista plástico diagnosticado em jovem com esquizofrenia que viveu recluso num hospital psiquiátrico e cuja obra é comparada à de Marcel Duchamp. [Sara Simões] Dom Quixote
Ricardo Fonseca Mota
As aves não têm céu
Segundo romance do vencedor do Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís 2015 (com a obra Fredo) que narra a história de Leto, um homem perdido em busca de salvação. Traído e abandonado pela mulher, Leto fica um ano sem ver a filha. A primeira semana de férias com ela traz ansiedade e um plano de atividades cerrado, sem espaço para improvisos. As noites, porém, fogem ao planeado. Sem conseguir adormecer a criança, Leto recorda que ela costumava dormir com o carro em andamento e recorre ao antigo método. Cansado, não consegue evitar o acidente de viação que resulta na morte da filha. A partir daí, Leto “deseja morrer mas não quer parar de sofrer. Quer sofrer mas sente vergonha de estar vivo.” A sua história cruza-se com a de Raul e Cid, com quem partilha o mesmo espaço, “mas cada um no seu lugar.” Um espaço habitado por vozes e demónios que os atormentam diariamente. [Sara Simões] Porto Editora
Não é possível falar da Comuna sem recordar o percurso anterior do João Mota. Em 1972, já tinha voltado a Portugal há algum tempo…
Sim. Eu voltei do Peter Brook e fundámos logo a seguir Os Bonecreiros, onde encenei uma peça infantojuvenil que foi um grande sucesso. Mas, devido a questões políticas, dá-se uma rutura e eu venho, com o Carlos Paulo, a Manuela de Freitas, o Melim Teixeira e o Francisco Pestana, fundar a Comuna.
Porque é que, como a sua irmã [a atriz Teresa Demarcy-Motta], não ficou por França, onde poderia continuar a trabalhar com uma figura do teatro como a dimensão do Peter Brook?
Tínhamos acabado de voltar da Pérsia quando o Peter Brook me pergunta se eu não queria ficar a trabalhar em França. Só que nessa altura já tinha tomado a decisão de voltar, porque sentia, perdoe-se-me a arrogância, que havia muito a fazer em Portugal e que eu poderia ser útil aqui.
Qual era o panorama geral do teatro português nesse início da década de 1970?
Existia um teatro universitário muito bom e estavam a surgir grupos de teatro amador extremamente interessantes, como o Grupo de Campolide e um outro, sediado em Carnide, liderado pelo Bento Martins, com quem havia trabalhado alguns anos e de quem fui sempre muito amigo. No teatro profissional havia, claro, a companhia da Amélia Rey Colaço, onde me estreei e onde estive antes de ir para a guerra [João Mota cumpriu cinco anos de tropa, dois deles em Angola] ou o Ribeirinho, que foi um dos meus mestres… O problema é que, não sendo mau, o teatro profissional em Portugal não via o ator como um criador, mas sim como alguém que é bom a debitar textos. Ora, o Peter Brook ensina-nos que o ator é o criador onde habita o texto, ou como dizia Pessoa, “o ator é um fingidor que finge que é dor a dor que deveras sente”. Quando regresso e começo a falar de improvisação, de técnica de corpo e de voz, perguntava-se “o que é isso?” É preciso não esquecer que Brecht era proibido, que ninguém tinha ouvido falar de [Jerzy] Grotowski e de teatro-laboratório…
A Comuna é reconhecida por ter começado a alterar esse estado de coisas…
Os Bonecreiros foram o ensaio para isso, já que por lá experimentámos muito daquilo que viríamos a fazer na Comuna. É muito interessante que, logo no início, havia um grupo de pessoas, onde se incluíam, entre outros, o João Bénard da Costa, o Nuno Bragança, a Maria Velho da Costa ou o pintor Noronha da Costa, que não só iam aos espetáculos como vinham ver-nos ensaiar.
É verdade ou é mito que a Comuna foi batizada através de uma votação num programa de rádio?
Eu tinha sido convidado pela Radio Renascença para dar uma entrevista e, a dado momento, desafio o público ouvinte a escolher entre três nomes possíveis para a nova companhia: “Os Cómicos”, “Os Comediantes” ou “Comuna”, sempre com “teatro de pesquisa”. Como se sabe foi escolhido o nome de “Comuna”, que tinha sido pensado em homenagem à Comuna de Paris e às comunas de hippies. Mas nem imagina os problemas que o nome deu, curiosamente, logo depois do 25 de Abril…
A sério?
Havia taxistas que se recusavam a trazer-nos aqui, acusando-nos de ser comunistas. Mas o pior foi, quando viemos para este espaço, em 1975, o jornal O Dia acusar-me diretamente de estarmos a tornar mais feia a Praça de Espanha por causa do nome do grupo. Aquele período a seguir ao 25 de Abril foi complicado, ora levávamos com o rótulo de monárquicos, ora de comunistas. Logo eu que nunca tive partido, logo a Comuna que teve artistas de todos os partidos, do PSD ao PCP ou ao MRPP…
E durante a ditadura? Como é que o regime lidou, por exemplo, com essa nova forma de fazer teatro?
Nesse tempo eramos acusados de ser hippies, de ser drogados… Começámos a Comuna com uma criação coletiva, com textos de Gil Vicente, chamada Para Onde Is? Deu logo problemas com a censura que ainda a tentaram proibir. Tinha muita improvisação. Era todo um território de liberdade…
A liberdade é algo absolutamente fundamental para si…
Foi algo que me foi incutido pela minha mãe, a par do sentido de responsabilidade. Sempre me bati pela liberdade. Lembro de ouvir o Peter Brook dizer “nunca percam a vossa individualidade, a vossa personalidade, porque estar num grupo de teatro significa que cada um mantenha a sua maneira de ser e de estar. É com isso que se vai trabalhar”. Imagine ouvir esta conceção de liberdade quando vou para França, no final de 1968, vindo do fascismo… Isto marca o modo como vejo o trabalho de um criador: ele tem de ter liberdade para dar aos outros, os que trabalham consigo, a mesma oportunidade de serem livres.

Não queria afastar-me da história da Comuna, mas o seu percurso confunde-se com o da companhia que dirige há 50 anos, por isso, pergunto se, para além de Peter Brook, mas também de Ribeirinho (a quem há pouco chamou “mestre”), teve outras figuras referenciais no teatro?
Sim, claro. Aprendi muito com o [Adolfo] Gutkin, com o Pedro Lemos (tão esquecido!) na Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro, com a Laura Alves, com a própria Amélia Rey Colaço, com o Rui de Carvalho e com o Canto e Castro, com os quais fiz uma tournée em África e ficámos amigos para sempre…
Voltando à censura, sei que o espetáculo que estava em cena pouco antes do 25 de abril de 74, A Ceia, deu ainda maiores problemas…
Foi terrível. Cheguei mesmo a ser chamado aos censores. Havia uma cena em que o Francisco Pestana interpretava a Igreja e o Melim Teixeira o Estado. Jogavam uma partida de ping pong com a Manuela de Freitas a fazer de rede e a bola, de cor vermelha, era retirada da zona do ventre dela. Então não é que os censores pretendiam saber, veja-se bem, porque é que a bola não era, como convencional, branca mas sim de cor vermelha. Lá lhes expliquei que não podia ser branca porque a mesa e a roupa da Manuela também o eram, mas proibiram-na. Aquilo revoltava-me muito, como aquela coisa de, quando se ia aos ministérios ou aos censores, nos avisarem para deixarmos a “mala de hippie” e irmos de fato e gravata.
Nessa altura ainda não estavam instalados na Praça de Espanha.
Não, isso só acontece mais tarde, em 75. Estávamos numa sala da fábrica da Cervejaria Portugália, na Almirante Reis. Antes disso, a primeira casa da Comuna foi uma garagem em frente ao Liceu Camões, cedida pelo Vasco Morgado, que andava a desafiar-me para fundar uma companhia para ocupar o Capitólio ou o Avenida.
A Comuna é o seu maior orgulho?
A Comuna é um orgulho meu e de muitas outras pessoas, porque sempre fomos um coletivo. O meu maior orgulho foi dar aulas e ter contribuído para formar grande parte dos atores que ai estão. Até porque, para mim, encenar é uma experimentação. No teatro, o centro de tudo é o trabalho do ator.
Mas o talento também conta…
Os atores têm ou não têm alma. Há uns que são muito bons tecnicamente, mas nunca poderão ser uma Eunice Muñoz, uma Mariana [Rey Monteiro] ou uma Carmen Dolores. Por acaso, ainda tenho aqui, na Comuna, alguns atores com essa alma, como o Carlos Paulo e a Ana Lúcia [Palminha].
Este aniversário, este meio século vai ser assinalado com um novo espetáculo. Mas há mais…
Para além da minha encenação do Fausto, estamos a finalizar um documentário sobre a companhia, realizado pelo António Cunha, que será estreado, ainda em data a anunciar, no Teatro Nacional D. Maria II, casa onde me estreei como ator e que dirigi durante três anos. Depois há de ser exibido aqui na Comuna e na RTP 2. Na noite de 30 de abril para 1 de maio, logo a seguir ao espetáculo, vamos fazer uma festa no café-teatro onde gostaria muito de contar com a presença da Manuela de Freitas, atriz que quero homenagear e pessoa a quem, a par de mim e do Carlos Paulo, a Comuna deve tudo.
Ainda acredita num teatro capaz de mudar o mundo?
Sabe, o teatro exige um grande amor, mas um amor apaixonado. E é sempre preciso ter fé e esperança. Eu acredito nos atores com quem trabalho e acredito no público. É essa fé que move a Comuna há 50 anos.
Viveste em Luanda até aos 18 anos, depois mudaste-te para Lisboa, mas também passas muito tempo em Berlim. Dirias que és uma cidadã do mundo?
Vejo-me como uma cidadã angolana. Angola está muito presente na minha forma de ver o mundo, principalmente nas músicas que faço e nas letras que escrevo. A minha relação com Luanda é muito forte e exploro muito isso nas canções. Desde muito cedo que comecei a viajar, sou muito aberta a conhecer novas culturas, novas línguas. O meu trabalho na música é um bocado o resultado disso tudo. Por um lado, tenho uma raiz bem assente em Angola, mas também uma sede muito grande de misturar e nenhum pudor em transformar os ritmos tradicionais cruzados com jazz – que é uma linguagem de que gosto muito – ou com música do Brasil ou de Cabo Verde (que são as minhas principais influências). Gosto de navegar em territórios novos, isso dá-me uma sensação de liberdade muito grande.
Enquanto ativista, consideras que a música é um bom veículo para fazeres passar as tuas mensagens?
Penso que sim. Sempre foi, desde o início. Este é o meu quinto disco e desde o primeiro que usei a música como forma de manifestar algumas opiniões, principalmente em relação a Angola. Mais recentemente, em relação a uma visão feminista do mundo e aos direitos das mulheres. A música tem um poder político muito subtil – que muitas vezes é subvalorizado – de criar conexão e juntar pessoas que não se conhecem no mesmo espaço para ouvirem a mesma canção. Num mundo cada vez mais fragmentado e polarizado isso tem muita força. Traz bem-estar e felicidade e acho que isso é revolucionário. Tenho-o sentido nos concertos de apresentação deste disco. As pessoas saírem felizes do concerto é o maior elogio que me podem fazer. Num momento tão sombrio e difícil, as pessoas darem-se esse presente de serem felizes num espetáculo é algo que tem um poder transformador que é subestimado.
Uma Música Angolana é o teu mais recente disco. Há aqui um duplo sentido nesta frase…
Por um lado, é uma reivindicação do termo ‘música’ para mim mesma: eu enquanto música angolana, uma mulher que trabalha na música. Este é um termo que não é muito utilizado na língua portuguesa. Quando tenho que dizer a alguém aquilo que faço, ou mesmo preencher um formulário em que tenha de colocar a minha profissão, tenho de dizer que sou cantora. Isso é redutor, estou a castrar o meu próprio trabalho. Eu sou cantora, compositora, instrumentista, sou música… por um lado existe essa provocação para que a própria língua portuguesa seja mais inclusiva. Por outro lado, é um bocado provocador no sentido da própria música angolana, música feita em Angola. Este disco não é de música tradicional. É uma proposta de música angolana, de misturas. De ritmos tradicionais angolanos cruzados com ritmos que vêm de outras latitudes: ritmos afro-brasileiros, de Cabo Verde, do Congo. O que talvez faça a ligação entre tudo é o jazz, que acaba por ser o guarda-chuva onde se juntam todas estas linguagens com muita liberdade. Este título acaba por apontar para estes dois lados, mas de forma um bocado provocadora.
Este disco contrasta com o anterior Dentro da Chuva, que era mais introspetivo. Isso significa que te encontras numa fase mais festiva?
É, definitivamente, um disco muito diferente do anterior, que foi um disco a solo. O meu objetivo, com este disco, era trazer uma proposta mais solar, mais quente. É ser mensageira e portadora dos ritmos africanos que a mim me transmitem muita energia. O ritmo e a cadência são contagiantes, dão vontade de dançar, de mexer o corpo. A alegria e a celebração através da dança estão presentes em todas as etapas da vida, inclusivamente na morte. Quando enterramos um ente querido, há gente a dançar, a chorar e a cantar. Faz parte da manifestação de emoções. A dança não é uma alegria oca, vazia; é uma forma de exorcizar. A alegria surge aqui como uma proposta revolucionária num tempo tão sombrio. Apesar de todas as coisas sombrias que estão a acontecer no mundo, temos muito a aprender com os ensinamentos africanos. Protestar dançando, fazer o luto cantando, não é desrespeito nenhum. Pelo contrário, é uma forma de nos curarmos coletivamente.
Uma das canções que se destaca é Luísa, uma homenagem às mulheres.
A canção surgiu de uma forma muito espontânea. Foi um exercício de escrita, de rimas… sou fascinada pelo nome Luísa, talvez por causa da canção de Tom Jobim. Comecei, na brincadeira, a apontar palavras que rimassem com Luísa. A partir daí, comecei a construir uma história, uma personagem inventada, fictícia, inspirada em muitas mulheres – incluindo em mim própria e nas minhas vivências. É um micro-conto em formato canção que pretende transmitir energia para a maneira como olhamos para nós próprias, que às vezes é um pouco impiedosa e exigente demais. Cada vez que uma mulher fala, canta, escreve, ou se expressa de alguma forma, há, algures, uma outra mulher que se identifica com isso e não se sente tão sozinha.
Luanda é uma carta de amor à cidade onde nasceste?
É uma canção para a minha musa, uma musa complicada – como diz a canção – que fala desses dois lados de Luanda. Por um lado, a sua beleza: as cores, o contacto do mar com a terra… acho fascinante, a beleza de Luanda é muito intensa. Por outro lado, toda a dificuldade social, sociopolítica, a miséria de um povo que, em certa medida, foi abandonado. É uma canção que explora esses lugares de contradição da própria compositora.

Fala-me de Kwanza Sul. Parece quase uma canção de embalar, destaca-se das outras músicas do álbum…
É uma canção mais minimalista, uma canção-solo, podia estar no disco anterior. Surge de uma nostalgia, de uma saudade, escrevi-a quando estava longe de casa. Tem a ver com a relação que criei com a minha própria casa durante os confinamentos, com a sensação de estar num lugar seguro enquanto vemos o mundo acabar.
O disco conta com várias colaborações com artistas de origens muito diferentes (o angolano Nástio Mosquito, o brasileiro Vítor Santana e a alemã Susanne Paul). Porquê estes nomes?
A partir da sonoridade base do disco, fui pensando nas colaborações. A ideia de convidar o Nástio Mosquito surgiu porque a própria canção, Baúka, me parecia que podia estar nos discos dele. Sou grande fã do Nástio, para além de ser um grande amigo. Ele estava na Bélgica quando lhe fiz o convite e gravou à distância. Em tudo o que ele faz mete muita ironia e sarcasmo, um tom desafiante que achei que combinava com esta canção. O Vítor Santana surge porque, quando comecei a ouvir o refrão de Mate só com a minha voz, comecei, na minha cabeça, a ouvir a voz dele. Acho que as nossas vozes combinam muito bem, complementam-se de certa maneira. Ele estava em Minas Gerais, no Brasil, e assim que enviou a parte dele, percebi que a canção nasceu para ser assim. A Susanne Paul é uma violoncelista extraordinária com quem colaborei num projeto de jazz em Berlim, e foi o mesmo processo. Já estava com ideia de que o violoncelo ia trazer um lado clássico e ao mesmo tempo brincalhão, um lado mais infantil para a canção O Sul. Fiquei fascinada com o que ela gravou em Berlim. Foi tudo à distância, na verdade. A banda-base gravou num estúdio em Almada, e os convidados gravaram em várias partes do mundo. São as coisas boas da tecnologia.
Há ainda uma canção do fadista Ricardo Ribeiro para um poema de Pedro Homem de Melo. Como surgiu esta ideia?
Alguns meses antes de gravar, ouvi o Ricardo Ribeiro cantar Valsa da Libertação ao vivo e fui falar com ele. Fiquei muito curiosa sobre a música e ele disse-me que era um poema de Pedro Homem de Melo que tinha musicado. Perguntei-lhe se podia gravar a música e ele ficou muito contente. Claro que a versão do Ricardo é muito diferente desta. Eu já tinha pensado numa abordagem mais jazzística para esta canção, com um solo de trompete, algo que desse um impulso às próprias palavras deste poema, que é belíssimo. É uma canção que resulta muito bem ao vivo, as pessoas têm adorado. Outra das canções que não fui eu que escrevi é Fumo, do Paulo Flores. Sou grande fã dele, é um dos grandes heróis da música angolana, e sempre gostei muito desta música.
Estás em digressão mundial com a Companhia de teatro Delbono, integrando o elenco da peça Amore. O que fazes concretamente?
É um pouco difícil responder a essa pergunta. Eu não conhecia o trabalho desta companhia. Eles fazem um teatro que não é nada tradicional, é interdisciplinar, mistura música, dança, poesia e tem um lado plástico, cénico, quase de pintura em palco. Neste espetáculo eu canto, digo texto, danço, participo em alguns momentos. Comecei a fazer parte deste projeto o ano passado e acho apaixonante. Vai estar em Lisboa, no São Luiz, em outubro. Entretanto vou dividir a minha agenda entre este projeto e os espetáculos de apresentação de Uma música angolana.
A 20 de abril levas este disco ao Maria Matos. Entusiasmada por poder mostrar este disco ao público lisboeta?
Quando pensei no disco (e depois quando o gravei e lancei) já estava entusiasmada. Agora que fiz os primeiros concertos (passámos por várias cidades alemãs, por Roterdão, por Berna…) estou ainda mais ansiosa para levar este espetáculo ao meu público em Lisboa. É difícil competir com o público de Lisboa, talvez Luanda possa entrar nessa competição [risos]. Tenho lembranças incríveis de vários concertos que dei em Lisboa. Será, provavelmente, um dos momentos mais altos desta tournée.
Quando, no início dos anos 80 do século passado, o escritor Manuel Puig se instala no Rio de Janeiro, e começa a trabalhar com o também argentino Hector Babenco na adaptação para o cinema de O Beijo da Mulher Aranha, está longe de imaginar o fenómeno mundial em que se virá a tornar. A peça, que começou por ser um romance e que o autor concluiu já no exílio, era um retumbante sucesso nos teatros da América Latina, e o filme seria um dos mais famosos da época, valendo a Babenco a nomeação para o Oscar de Melhor Realizador e consagrando o recentemente falecido William Hurt com o Oscar de Melhor Ator.
Ao longo dos anos, O Beijo da Mulher Aranha subiu a palcos de teatro de todo o mundo, deu origem a uma ópera e até a um musical da Broadway. Em Portugal, para além de uma encenação de Almeno Gonçalves já neste século, em meados da década de 1990, no Teatro Nacional D. Maria II, Diogo Infante e Nuno Melo protagonizaram o homossexual Molina e o ativista político Valentín, num espetáculo encenado por Natália Luiza.
“O Diogo [Infante] nunca esqueceu a peça, que considera uma das suas favoritas”, conta Hélder Gamboa, encenador e co-diretor artístico (com a atriz Ângela Pinto) do coletivo Tenda que cumpre, este ano, 18 anos de atividade, desafiado pelo agora diretor artístico do Teatro da Trindade a dirigir O Beijo da Mulher Aranha.
“Curiosamente nunca vi o filme, nem nenhuma das anteriores produções para teatro que se fizeram por cá, mas apaixonei-me pelo texto”, revela o encenador no final do ensaio para a imprensa, ainda com a voz ligeiramente embargada pela comoção que teima em sentir sempre que o espetáculo (“quase, quase pronto!”) termina. “Esta peça ensina-nos que qualquer um de nós pode ser diferente como indivíduo, trilhar caminhos também diferentes, mas que isso não nos deve impedir jamais de aceitar o outro.”
O Beijo da Mulher Aranha passa-se na cela de uma prisão durante a vigência de um regime opressor e ditatorial. Nela encontram-se Molina, um homossexual acusado de atentado ao pudor, e Valentín, um preso político de esquerda. Embora nada pareça suscetível de os ligar, de modo a suavizar a passagem do tempo em circunstâncias tão duras, Valentín vai escutando a minuciosa descrição que, dia após dia, Molina vai fazendo do filme de Jacques Tourneur A Pantera. A estratégia de escapismo do companheiro vai conquistando Valentín e entre os dois nasce uma forte amizade e cumplicidade. Contudo, Molina guarda um segredo que se pode revelar fatal para Valentín e a sua luta.
Como nota o encenador, estas personagens são “dois homens de mundos diferentes fechados numa cela. Molina, apesar de estar preso, encontra a felicidade de não ter que esconder a sua alegria por poder ser uma mulher e ter um homem para tratar como sempre quis. Já Valentín, o revolucionário que buscar mudar o mundo, acaba por encontrar ali uma paz que nunca encontrou lá fora, nem sequer nos braços de um amor que rejeitou por não partilhar os seus ideais políticos.”
E o que nos ensina Molina e Valentín? “Que em circunstâncias normais, dois seres humanos que não olhariam sequer um para o outro, podem ser obrigados a conversar e a entenderem-se, mostrando que o diálogo e a compreensão são a melhor solução para o mundo melhor que muitos de nós ainda desejamos.”
Para interpretar os protagonistas, Hélder Gamboa escolheu os atores João Jesus (Molina) e Diogo Mesquita (Valentín). “Nunca tinha trabalhado com eles e estou rendido à entrega e ao talento”, frisa Hélder Gamboa. “Quando li o texto percebi que tínhamos tudo a ganhar em conseguir dois atores que tivessem já uma boa cumplicidade. O João e o Diogo conhecem-se bem, são muito amigos, e isso tornou o processo de composição das personagens mais fácil”, sublinha o encenador.
Para além da dupla, o espetáculo conta ainda com as participações de André Ramos e, em vídeo, de José Raposo. O Beijo da Mulher Aranha está em cena de 13 de abril a 5 de junho, de quarta a domingo, às 19 horas.
A Revolução dos Cravos é um daqueles momentos definidores da nossa história, daqueles que fica gravado na memória de quem o viveu, independentemente da simpatia ou engajamento político de cada um. Pode-se sempre começar uma conversa com “onde estavas no 25 de Abril?”, e raro será quem não saiba e não consiga falar de um antes e um depois daquele dia.
Elisa Worm
bailarina e coreógrafa
Elisa Worm estava em tournée com o Ballet Gulbenkian quando se deu a revolução em Lisboa. Nessa noite fizeram um espetáculo em Viana do Castelo, mas foi ainda na véspera, no Porto, onde a companhia estava alojada, que recebeu indicações de um amigo de que algo estava para se passar.
Tiveram a confirmação enquanto tomavam café perto do Rivoli. Alguém apareceu a dar conta das novidades, afirmando que “o Spínola era o instigador”. Ficou aterrorizada: “Desatei aos gritos, vamos para a extrema-direita, para o fascismo!”. Explica que tinha uma péssima opinião do general desde a infância e não por motivos políticos. Nas férias de verão em Sintra, foi vizinha de Spínola e lembra-se dele, sempre fardado, a castigar os sobrinhos com o pingalim de que nunca se separava, o que a impressionou enormemente.
No Porto, não sentiram a animação que se espalhava em Lisboa. O seu momento especial e o que recorda com mais emoção foi descer a Alameda nas manifestações de maio, com o seu filho ao lado. Diz, com alguma ironia, que também foi aí que acabou o 25 de Abril: “Depois, começou tudo a andar para trás.”
Desde criança que se identificava com os valores de esquerda e com o progresso. Muitos dos seus colegas do Ballet Gulbenkian eram apolíticos; ou mesmo reacionários, e olhavam-na de soslaio quando se falava de política ou de direitos humanos. Lembra-se, em pequena, quando vivia com os pais na Baixa, de ver as carroças de madrugada a dirigirem-se para o mercado, seguidas por bandos de crianças à espera que caísse algo para o chão que pudessem comer: “Aterrorizou-me muito a fome que havia em Lisboa, a pobreza. As crianças andavam praticamente nuas, descalças, não tinham cuecas mas apenas uns trapos que encontravam. Eram proibidas de entrar na igreja.”
Em 1965, deixou o recém-criado Grupo Gulbenkian de Bailado para fugir para a Alemanha de emergência e “com a roupa que tínhamos no corpo”, por causa da perseguição do regime ao seu marido, o pintor Manuel D’Assumpção.
Deixou de dançar em 1976, para se dedicar a “fazer bailarinos”. Dez anos depois fez-se à estrada com o seu carro e só parou em Estarreja, onde formou a companhia que mais tarde se deslocaria para Santa Maria da Feira com o nome de Ballet Contemporâneo do Norte. Hoje, já não dá aulas “porque o corpo não deixa”, e voltou à sua amada Sintra.
Jorge Martins
pintor
A guerra colonial começou em Angola no dia em que o pintor Jorge Martins cumpriu 21 anos, a 4 de fevereiro de 1961. Este acontecimento haveria de marcar profundamente a sua vida e a futura vivência do 25 de Abril: “Estava na Escola de Belas Artes e lembro-me de pensar que a coisa ia dar para o torto. Foi um ano de decisões difíceis para um jovem da minha idade. Casei-me e, no final do ano, já estava a viver em Paris.”
Fruto dessa decisão, passou os 13 anos seguintes sem poder regressar a Portugal, e estava plenamente integrado no meio parisiense quando se deu a revolução. Para ele, foi uma noite inesquecível: “Estava uma noite linda e tépida em Paris e passei-a com duas amigas, num descapotável, a percorrer as boîtes de Saint Germain e Montparnasse. O dono do descapotável, que era um carro lindo, insistia em trocar um quadro meu pelo carro, mas acabei por conseguir convencê-lo de que não estava interessado.”
Já no seu ateliê, pelas oito da manhã, um amigo telefona-lhe anunciando que algo se passava em Portugal. Nesse dia, toda a comunidade portuguesa se perguntava o que seria, pois não havia ainda informação fidedigna. No dia 28, resolve apanhar um avião para Lisboa: “Foi uma viagem extraordinária porque o avião, que normalmente tinha meia dúzia de gatos-pingados, estava completamente cheio”. Ficaram parados na pista de Orly durante três horas, à espera da autorização para aterrar em Lisboa: “Com o whisky do freeshop, quando finalmente partimos, já estava tudo com os copos, no avião”. Lembra-se também que, atrás de si, estava sentado o realizador brasileiro Glauber Rocha. Ficou em Lisboa o tempo suficiente para assistir ao Primeiro de Maio mas logo voltou para Paris, graças à incerteza sobre a evolução dos acontecimentos e ao facto do mercado de arte ter-se evaporado de um dia para o outro.
Tendo finalmente recuperado um passaporte válido internacionalmente, aproveitou para viajar e, pouco tempo depois, decidiu mudar-se para Nova Iorque, uma cidade que o apaixonou e onde viveu dois anos. Voltaria a Paris mas mudou-se definitivamente para Lisboa em 1992, numa altura em que lhe pareceu que a cidade estava com uma energia interessante. Antes da pandemia fez duas grandes exposições em Espanha e editou um livro com esboços e textos da sua autoria, que ainda aguarda lançamento.
O confinamento teve um lado positivo: dedicou-se mais ao trabalho e tem hoje “uma quantidade apreciável de obra inédita que está pronta para uma futura exposição, assim que regresse o ritmo normal das instituições e esta nova guerra o permita”.
Raquel Henriques da Silva
historiadora e investigadora
A historiadora de arte, investigadora e professora Raquel Henriques da Silva abriu a conversa com um aviso: “Não é especialmente heróico, o meu 25 de Abril”. A sua história está intimamente ligada à guerra colonial, à qual ainda tentou fugir, sugerindo ao seu namorado, futuro marido e pai dos filhos, Luís, que fossem viver para a Suécia, um país que tinha fama de acolher bem os estrangeiros. À beira de ser chamado para a tropa, o namorado recusou, por ser muito ligado à família e porque a viagem seria apenas de ida, sem saber quando poderiam voltar.
Apesar de salientar não ter, à época, uma consciência política muito forte, a guerra era, no seu entendimento, “uma coisa estúpida, completamente idiota. Não era preciso ter grandes convicções políticas para se ser contra a guerra, sobretudo aos 19 anos.”
O futuro marido foi colocado em Angola para cumprir a recruta e Raquel Henriques da Silva, por imposição do pai, organizou o casamento por procuração para poder juntar-se a ele. Houve, no entanto, um percalço. Quando realizou que na cerimónia encenada seria o pai a fazer o papel de noivo, recusou-se. Foi o seu padrinho, “um homem santo”, que resolveu o problema conseguindo marcar o casamento para Luanda, situação que, quer o pai, quer as autoridades, aceitaram.
Desse tempo de partida para África, relembra: “Não só fui para a guerra, como casei. Eram duas coisas que nunca tinha pensado fazer. O amor falou mais alto, éramos miúdos. Costumo dizer que fui para a guerra por interposta pessoa”. Quando se dá o 25 de Abril, estava no Uíge, uma das zonas mais tensas de Angola, para onde o marido fora transferido. É ele que lhe telefona do quartel a avisar que algo se passara em Lisboa e que tinha de ficar em prevenção, no quartel. “Fomos sabendo notícias aos poucos e não havia grande alegria, o colega mais político do Luís dizia que era um golpe de direita, do Spínola, e discutíamos noites inteiras sobre o que se teria passado.”
Lembra-se, com pena, de amigos e conhecidos que vieram a sofrer muito com o desenrolar dos acontecimentos: “uma descolonização tardia e uma situação de revolução em Portugal, não podia correr bem”.
António-Pedro Vasconcelos
cineasta
Em abril de 1974, o cineasta e escritor António-Pedro Vasconcelos vivia num apartamento na Lapa, o bairro onde ainda vive, o qual partilhava com Vasco Pulido Valente. Lembra-se de ter sido despertado, de madrugada, pela namorada, que lhe deu a notícia e que o alertou para ligar o rádio. Desde a conclusão do filme Perdido Por Cem, estreado em 1973, o realizador foi convidado para chefe de redação da revista Cinéfilo, do jornal O Século. Foi para lá que se dirigiu imediatamente e no caminho, na Rua do Quelhas, confirmou a notícia ao ver os soldados que ocupavam a Emissora Nacional.
Na sede soube que Salgueiro Maia já se encontrava no Largo do Carmo: “Estavam sempre a chegar notícias, nesse dia fizeram-se cinco edições do jornal”. Lembra-se dos fotógrafos Eduardo Gageiro e Alfredo Cunha, ambos colaboradores do Cinéfilo, num corrupio de idas e vindas para entregar os rolos que iam tirando, e de ele próprio passar o dia entre a redação e o Largo do Carmo, até à rendição de Marcelo Caetano.
Recorda-se de um episódio que o impressionou, o funcionário responsável pela submissão dos textos à censura manteve o seu propósito, como se nada se tivesse passado. Apesar das evidências, insistiu mas quando compreendeu, exclamou: “E agora, o que vou fazer?” Para o cineasta, foi a primeira e única vez que sentiu alguma compaixão pelas vítimas do momento histórico.
Com a sua proverbial energia e apesar das limitações impostas pela pandemia, António-Pedro Vasconcelos encontra-se a preparar, há dois anos, um documentário sobre os protagonistas do 25 de Abril, a ser emitido em seis ou sete episódios na RTP, por ocasião dos 50 anos da revolução. Diz que descobriu “um mundo absolutamente fascinante. É fundamental perceber como uma série de capitães preparam um golpe e em menos de 24 horas derrubam uma ditadura com 48 anos, sem disparar um tiro”. Considera que é crucial mostrar às gerações mais jovens que a liberdade não é um bem adquirido e que muitos se bateram por ela, com o risco da própria vida.
Entretanto, concluiu o seu mais recente projeto cinematográfico, intitulado Km 224, com estreia marcada para o próximo 21 de abril.
Fernando Tordo
músico
Na noite de 24 de abril de 1974, Fernando Tordo fazia parte de um conjunto de comensais reunidos no restaurante do Chico Carreira, no Parque Mayer, para celebrar o aniversário da atriz Ivone Silva. O grupo consistia essencialmente na equipa que preparava a nova produção da revista destinada ao Teatro ABC, que se viria a chamar, já depois da revolução, Uma no Cravo, Outra na Ditadura.
O espetáculo contava com textos da parceria Rogério Bracinha e César de Oliveira, aos quais se juntou Ary dos Santos, e música de Pedro Osório, Thilo Krasmann e do próprio Fernando Tordo. Os textos eram provocadores, como era apanágio da revista, mas neste caso ainda mais, já que os tempos prenunciavam mudança, como refere o cantor, “as entrelinhas dos textos já eram bem gordas. Aliás, a revista perdeu a graça depois da queda do regime, por mais que tentem. Nunca mais houve aquela energia das guerras com a censura.”
No jantar, onde estavam, entre outros, Nicolau Breyner, Ary dos Santos, José de Castro e João Lagarto, já a noite ia longa quando Rogério Bracinha resolveu sair da nuvem de fumo de tabaco que preenchia o espaço para dar uma volta no exterior. Pouco depois voltou a entrar e segundo Tordo, “ele, que era um homem que falava pouco e fumava muito, apareceu com um ar estranho e anunciou que estavam a passar tanques na Avenida da Liberdade!”
Já era madrugada e a festa ainda seguiu, mas o músico e compositor, que nessa altura vivia na Rua da Saudade, no mesmo prédio de Ary dos Santos, lembra-se de levar a colega atriz Maria Ema a Campo de Ourique e ter de dar uma volta enorme para conseguir chegar a casa, perto da Sé, graças à complicação que já se tinha gerado.
Outro momento que recorda com particular divertimento foi ter saído de casa no seu Volkswagen cor de laranja e descer a rua, com o corpo fora do carro no teto de abrir, e conduzir com os pés em plena celebração: “E isto foi o meu 25 de Abril!”.
Recentemente, Fernando Tordo sofreu uma hospitalização forçada pela COVID-19 e aproveitou o tempo para compor uma suíte, a que entendeu chamar Suíte das Mulheres de Azul, em honra das médicas e enfermeiras que o trataram. Publicou um livro de poesia e o álbum Os Fados que Eu Fiz mas, segundo o próprio, “o vício que agora tenho é a pintura”. Espera-se para breve uma exposição.
Cidadãos
Simon Schama
Assim que Simon Schama, professor de História da Arte e de História na Universidade de Colúmbia, abordou por alto com os seus editores americanos a ideia deste livro, um deles reagiu de imediato: “Mas será que o mundo necessita de outro livro sobre a Revolução Francesa?” Na verdade, Cidadãos veio contrariar a ideia geral sobre a Revolução Francesa. O autor afirma que, em certos aspetos, a força da fúria revolucionária não foi modernizadora mas contra a modernização da economia francesa durante a monarquia, que o Antigo Regime era na realidade inovador (mostrando embora uma indiferença brutal para com os desfavorecidos) e que a cultura patriótica de cidadania nasceu nas décadas que se seguiram à Guerra dos Sete Anos, apresentando-se mais como uma causa e menos como um produto da Revolução Francesa. O resultado foi uma obra polémica, objeto de críticas à esquerda e à direita, um sucesso comercial na Grã-Bretanha e nos Estado Unidos da América, mas que à data de publicação não foi traduzida para o francês. Dizem que, mais de 30 anos depois, estas páginas “ainda ferram e queimam”. O melhor elogio possível a uma obra sobre a Revolução Francesa. [Luís Almeida d’Eça] Bookbuilders
O Imoralista
André Guide
Este livro podia ter por subtítulo “a confissão de Michel” embora, em bom rigor, o relato não seja na primeira pessoa, embora corresponda ao de alguém que o escutara na origem e que o reproduz com absoluta fidelidade, e segundo uma convenção que o leitor recebe como se também lá tivesse estado para ouvir a confidência do protagonista. Michel é como que um alter-ego de André Gide (Prémio Nobel da Literatura em 1947) que o escritor usa para falar de si e manifestar o imperativo ético de alguém que buscou uma moral apenas sua, liberta de qualquer lei, dever ou conformismo. Usando de uma escrita clássica, onde a beleza e a clareza das frases iluminam as inquietações fundas de um espírito que se debatia com a rigidez de uma educação calvinista herdada da família, Gide relata o renascimento de Michel (após longa doença) e o despertar da sua sensibilidade para a beleza mais crua do mundo que existia fora do seu meio e daquilo que possuía. Um livro extraordinário, numa tradução imaculada da responsabilidade de Diogo Paiva. [Ricardo Gross] Cavalo de Ferro
Daqui a Nada
Rodrigo Guedes de Carvalho
O Presidente John Fitzgerald Kennedy é assassinado e a tragédia passa na televisão. Nesse momento, Marta está em trabalho de parto, acompanhada pela tia e pela mãe. Pedro não está com elas e Rita solta o seu primeiro berro enquanto, na televisão, um homem morre. 30 anos depois da primeira publicação, a D. Quixote volta a editar Daqui a Nada, romance de estreia do jornalista Rodrigo Guedes de Carvalho, que com esta obra venceu o Prémio Jovens Talentos da ONU. Tendo a praia da Apúlia e o Porto como cenários principais, esta é uma história de duas gerações marcada pela Guerra de África, mas também pelas “guerras” com as quais todos nos debatemos. Uma história de solidão, de amores desencontrados, de pais que não souberam ser pais, mas que também não souberam ser filhos, num perpetuar de dúvidas e porquês que desembocam na conclusão de que “não se deve deixar para amanhã”. Dom Quixote
Ofuscante – a asa esquerda
Mircea Cărtărescu
Era no escuro do seu quarto, enquanto da janela observava o frémito da Bucareste notívaga, que Mircea se sentia verdadeiramente ele próprio. Era também aqui que as interrogações se sucediam e ele se deixava levar “pelo continuum realidade-alucinação-sonho”. “A minha memória é a metamorfose da minha vida, o insecto adulto cuja larva é a minha vida. E sem um mergulho corajoso no abismo de leite que a envolve e esconde na crisálida da mente, nunca saberei se existi, se sou louva-a-deus voraz, aranha fantasiadora em andas intermináveis ou borboleta de beleza sobrenatural.” Primeiro livro de uma trilogia de romances de leitura autónoma de Mircea Cărtărescu, considerado o escritor romeno mais importante da atualidade, Ofuscante é um mundo de paranoia, devaneios e sonhos, que cruza histórias verídicas com outras fruto da imaginação, numa metamorfose constante, em que a cada virar de página somos surpreendidos com um novo enredo. “É possível que no âmago deste livro não haja outra coisa senão um grito amarelo, ofuscante, apocalíptico.” A descobrir! E-Primatur
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