Compositor, músico, performer e artista multidisciplinar, Fernando Mota confessa que sai pouco de casa. Não quer isso dizer que tenha uma vida cultural pouco intensa, já que há muito que se pode fazer sem pôr um pé na rua. Esta semana, no entanto, há de estar no Centro Cultural de Belém, onde estreia, no dia 18, o novo espetáculo, que depois levará em digressão pelo país. Antes da Chuva Sopra o Vento “cruza a dança contemporânea com informática musical, utilizando instrumentos experimentais e objetos sonoros criados a partir de árvores, rochas, água e outros materiais naturais”, descreve. “É sobre como os nossos corpos juntos formam um grande corpo. Sobre como os nossos seres vêm de outros seres, como somos parte de uma consciência coletiva interdependente. Um corpo comum.” Um espetáculo em que divide o palco com Carlota Fairfield Oliveira e José Grossinho, rodeados por uma plateia circular, que promove o encontro. A pouco mais de um mês de se apresentar no Japão, na Expo 2025 Osaka, deixa aqui algumas sugestões para aqueles que, como ele, são mais caseiros (e para todos os outros também).
MONSTRA – Festival de Animação de Lisboa
20 a 30 março
Cinema São Jorge, Cinemateca Portuguesa e Museu da Marioneta
É um dos festivais favoritos de Fernando Mota e começa já esta semana. “Ainda por cima organizado por um querido amigo homónimo, o Fernando Galrito”, sublinha o músico. “Já lá toquei, fui júri, vi filmes com bandas sonoras minhas”, conta. Todos os anos, é programa certo, em família, com os filhos – “ainda gatinhavam e já viam por lá filmes de animação do mundo inteiro”. Este ano, revela, há uma sessão especial, que não vai perder: “Vou ver pela primeira vez na grande tela, o filme O rapaz que apagava beijos, da Radostina Neykova e do Fernando Galrito, com música da minha autoria”.
No Other Land
de Basel Adra, Rachel Szor, Yuval Abraham e Hamdan Ballal
Cinema Ideal e em streaming na Filmin Portugal
Obrigatório ver, para Fernando Mota, é o filme No Other Land: “Um retrato cru e angustiante acerca da brutalidade e imoralidade da ocupação e limpeza étnica que os israelitas impõem às terras e populações palestinianas há mais de sete décadas, com o financiamento dos EUA e a indiferença da Europa”, descreve. “Apesar de ter acabado de vencer o Oscar de Melhor Documentário, não houve nenhum distribuidor norte-americano a exibi-lo até agora”, lembra. Por cá, é possível vê-lo em casa ou numa sala de cinema de Lisboa.
Do Claro ao Breu, de Sopa de Pedra
Lovers & Lollypops
Para banda sonora desta semana (ou das próximas), Fernando Mota sugere um disco do coletivo Sopa de Pedra. “Já tem uns dois ou três anos, mas continua a visitar frequentemente o meu carro, sobretudo em viagens mais longas fora das autoestradas. É de um dos meus grupos de música portuguesa favoritos, as Sopa de Pedra, coro feminino do qual fazem parte as minhas amigas Teresa e Inês Campos e Inês Melo. O primeiro disco já tinha arranjos e interpretações de um grande bom gosto e subtileza. Este viaja por territórios mais exploratórios e misteriosos. Sou fã.”
Torrões de Terra, de Manuel Zimbro
Assírio & Alvim
O livro está esgotado nas livrarias e na editora, mas pode ser encontrado nas Bibliotecas de Lisboa, começa por avisar Fernando Mota. “Sou um péssimo leitor e a maior parte dos livros que leio acabam por estar relacionados com os temas que estou a pesquisar para algum projeto de criação. Este é um deles. Um estranho livro de poesia e guaches, em formato de disco para, segundo o autor, ser guardado ao lado da música na casa de cada um. De um enigmático artista plástico e poeta, que colaborou com René Bertholo e Lourdes de Castro, tendo sido companheiro desta nos seus últimos anos de vida, as suas palavras têm exercido uma grande ressonância nas minhas explorações sonoras e visuais e na forma como observo e escuto o mundo.”
Metamorphosis, de Emanuele Coccia
Ainda sem edição portuguesa
Fernando Mota descobriu o filósofo Emanuele Coccia ao ler o seu livro A Vida das Plantas, editado por cá pela Documenta. “Tem sido um colaborador involuntário em praticamente todos os meus processos criativos. O facto de ter estudo botânica e depois disso filosofia dá-lhe um olhar totalmente novo acerca dos fenómenos naturais e acerca da perceção que temos sobre aquilo a que chamamos natureza, vida ou biologia”, nota o músico. “Este Metamorfoses chamou a minha atenção porque o tema da transformação e da memória tem estado muito presente na minha vida e no meu pensamento.”
“Picado de génio e das bexigas”, lê-se como legenda da caricatura de Camilo Castelo Branco no Álbum das Glórias de Rafael Bordalo Pinheiro. O génio do escritor deu origem a uma obra torrencial com duas tendências essenciais: a novela satírica de costumes e a novela passional. As bexigas que lhe desfeavam o rosto não impediram uma acidentada vida sentimental que foi a mais importante fonte da novela camiliana. Após vários amores tumultuosos, apaixona-se por Ana Plácido (esposa do negociante Manuel Pinheiro Alves), que seduz e rapta. Capturados e presos na Cadeia da Relação do Porto, são julgados e absolvidos do crime de adultério. Depois de vários anos de vida em comum, Camilo casa finalmente com Ana Plácido em 1888. Atormentado pela morte do filho predileto e pela progressiva e crescente cegueira, suicida-se em 1890.
A 16 de março celebra-se o bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco. Evocando o grande escritor, traçámos um breve retrato de seis dos seus personagens, escolhidos, entre tantos outros, do seu impressionante universo romanesco. Procurando, nesta tão difícil seleção, um justo equilíbrio entre livros mais e menos conhecidos do grande público, estes textos, acompanhados das respetivas ilustrações de Inês do Carmo, pretendem contribuir para suscitar o interesse na leitura da extraordinária obra do autor. Porque, como escreveu Camilo, com o seu humor característico, “a mocidade ou não lê nada, ou lê livros moderníssimos e detesta os clássicos, porque estes os ensinam a escrever corretamente.”
“A verdade na novela é a minha religião;
e aposto eu que muitas religiões
são menos verdadeiras que as minhas novelas.”
Mariana
“Ninguém o amará como eu: ninguém lhe adoçará as penas
tão desinteresseiramente como eu fiz.”
Amor de Perdição (1862)
Escrito na Cadeia da Relação do Porto, em 15 dias, Amor de Perdição é o mais célebre dos romances de Camilo. Obra que o filósofo Miguel de Unamuno considerava “a novela de paixão amorosa mais intensa e mais profunda que se escreveu na Península e um dos poucos livros representativos da nossa comum alma ibérica”.
A intriga centra-se nos amores contrariados dos jovens Simão Botelho e de Teresa de Albuquerque, vítimas da rivalidade entre famílias fidalgas. O facto do título em tudo corresponder à situação do autor e da sua amante Ana Plácido, à época encarcerados pelo crime de adultério, não passou despercebido, estimulando a curiosidade dos leitores.
Num golpe de génio, Camilo introduz uma terceira personagem, Mariana, filha do ferrador João da Cruz, “formosa rapariga da aldeia”. Símbolo eloquente do amor-renúncia, Mariana é a amante silenciosa, abnegada e fiel. Camilo salienta a formusura da “gentil criatura”, dos seus “grandes olhos azuis” e do seu “sorriso triste” e qualifica-a de “nobre rapariga”, apesar da sua condição popular. Confidente apaixonada de Simão, serve generosamente de intermediária entre ele e Teresa, acompanha-o na prisão e sacrifica-se para o seguir no degredo. Após a morte de Simão no decurso da viagem, suicida-se abraçando o seu cadáver lançado ao mar, morrendo “sem ter ouvido ‘amor’ dos lábios que escassamente balbuciavam frias palavras de gratidão”.
Silvestre da Silva
“Ao terceiro ano de casado,
Silvestre formava com o peito e abdómen um arco.”
Coração, Cabeça e Estômago (1862)
Silvestre da Silva, o herói de Coração, Cabeça e Estômago, motivado pela experiência acumulada ao longo da vida, decide dedicar os seus últimos anos exclusivamente aos prazeres da gastronomia, desiludido com as inconstâncias amorosas e com a futilidade do combate das ideias.
Camilo constrói a narrativa como uma pretensa autobiografia que descreve a vida do herói nas três fases que correspondem ao título da obra. Na primeira fase (Coração), relata os sete amores desafortunados do protagonista. Na segunda fase (Cabeça), dá conta dos seus infortúnios no meio intelectual e jornalístico. Por fim, na terceira fase (Estômago), descreve o seu retiro no campo, a sua estreia na carreira política, o seu casamento com uma morgada e a sua entrega aos prazeres da boa mesa.
O herói sintetiza a sua existência terrena num delicioso soneto de despedida: “(…) Cabeça e coração senti sem vida, / No estômago busquei uma alma nova (…) / E por muito comer eu desço à cova!” Apesar do tom jocoso, a obra narra a constante procura do protagonista de um sentido e propósito para a vida.
As suas contradições e perplexidades perante um mundo em transformação refletem, afinal, as do seu criador que, consciente do momento de transição literária em que vivia, adivinhava no esgotamento da fórmula romântica a possibilidade do surgimento de algo novo. Por isso, Abel Barros Baptista considera esta obra “uma experimentação pioneira na irrisão do sentimentalismo a partir de dentro. E também de fora, claro”.
Calisto Elói
“Não sou homem de salvas e rodeios;
digo as coisas à moda velha.”
A Queda de um Anjo (1865)
Divertidíssima sátira política sobre a vacuidade da oratória parlamentar e a indiferença governativa aos grandes problemas da maioria. O inesquecível protagonista, Calisto Elói de Silos Benevides de Barbuda, um fidalgo transmontano, austero e conservador, é uma encarnação paródica do país: eleito deputado, Calisto vem viver para Lisboa, onde se deixa corromper pelo luxo e pelo prazer que imperam na capital.
Na composição e definição do personagem, Camilo é minucioso na descrição dos detalhes do seu trajar arcaico e conservador (“o chapéu armado, calção de tafetá”, “gola e portinholas da casaca eram sérias demais e calças rematando em polainas abotoadas de madrepérola”). Aliás, a contaminação da personagem e os indícios da sua queda expressam-se exteriormente através da primeira visita a um alfaiate lisboeta. Esta transfiguração exterior representa, por um lado, a forma como as roupas refletem as normas sociais, a superficialidade da vida e a importância dada às aparências e, por outro, traduz a metamorfose moral e as alterações no discurso e comportamento do deputado (que transita da oposição miguelista para o partido liberal no governo).
A Queda de um Anjo retoma um dos temas constantes na novelística camiliana, o conflito entre a cidade o campo. É, segundo Alexandre Cabral, autor do Dicionário de Camilo Castelo Branco, um romance jocoso em que o escritor se diverte e “aproveita para dar uns bons sopapos nos peralvilhas da cidade”.
Rui Gomes de Azevedo
“O moço é que era
a pureza e estreme honra.”
O Senhor do Paço de Ninães (1867)
Romance histórico que tem como pano de fundo as lutas de D. António, Prior do Crato e a ação dos portugueses na Índia. Apesar da trama decorrer no Minho no século XVI (“Estamos no Minho, o leitor e eu”, assim se inicia a narrativa), algumas das personagens vão percorrer o mundo (Espanha, França, Inglaterra e Oriente) pela pena de um escritor que nunca saiu de Portugal, mas que evidencia assinalável conhecimento dos ambientes, costumes e comportamentos da época.
A obra tem por base um (inevitável?) amor contrariado. Rejeitado pelo pai da noiva, o jovem Rui Gomes de Azevedo deixa o Minho, vem para Lisboa, combate no norte de África em Alcácer Quibir e toma partido por D. António, Prior do Crato, na sucessão ao trono. Desiludido, parte para a Índia, onde assiste às rapacidades e atrocidades dos seus compatriotas. Rui surge na sua “inocência genuína” como personificação idealizada dos valores e costumes austeros dos antepassados (“da casta dos nossos avós”), postos em causa com o movimento da expansão e pelas novas gerações que os “trocaram pela glória da Índia”.
O herói assume uma perspetiva que lembra a do Velho do Restelo revelando o lado negro da expansão ultramarina: os vícios, a crueldade e a ganância do colonialismo português. Camões referiu-se à Goa portuguesa, por experiência própria, como “mãe de vilões ruins e madrasta de homens honrados”; Camilo, por intermédio do seu herói ficcional, reitera essa visão, escrevendo: “A honra aqui é planta que se mirra e fenece”.
Angélica Florinda
“Tanta razão tem o povo em me chamar
bruxa como santa.”
A Bruxa do Monte Córdova (1867)
Ambientada durante o período da guerra civil que ocorreu entre 1831 e 1834, e opôs liberais a absolutistas, a novela relata uma história de amor trágico que reflete a época conturbada que se vivia.
Angélica Florinda, “a mais formosa da sua aldeia”, a quem todos cortejam, envolve-se numa relação proibida com Tomás de Aquino. Amores contrariados que acompanham e se entrelaçam com os eventos históricos da guerra civil. Depois da morte do amante, no campo de batalha, Angélica, entretanto mãe solteira, acaba por enfrentar sozinha o estigma da exclusão social e da intriga. Refugiada num convento, guiada espiritualmente por Frei Silvestre, é acometida por culpas e fervores religiosos, responsabilizada pela morte de Tomás (por com ele se ter unido em pecado) e forçada a repudiar o filho ilegítimo. Angélica Florinda vive um processo longo e tormentoso de penitência até que, aos “quarenta e cinco anos, com parecenças de sessenta” se refugia numa choupana na serra, a um quarto de légua da aldeia de Caparães, onde granjeia fama de exorcista. A bruxa de Monte Córdova passa a atrair “não só homens, mulheres e crianças endemoinhadas, mas também o gado (…), para a todos estes irracionais curar de enfermidades excedentes do alcance das ciências médicas”.
Através do destino trágico da comovente Angélica, Camilo acusa o fanatismo religioso, a pregação fradesca e a intolerância política, da influência que exerceram na carnificina da guerra civil.
Ângela
“Aquilo é mulher finória e soberba.”
Os Brilhantes do Brasileiro (1869)
A narrativa questiona a fidelidade de uma mulher, posta em causa por vender alguns dos seus brilhantes sem dar conhecimento ao marido. A fidalga Ângela de Noronha de Antas vive um amor contrariado pelo plebeu Francisco José da Costa. Aos 20 anos de idade, forçada pelo pai em difícil situação económica, aceita com relutância casar com o brasileiro Hermenegildo Fialho, 26 anos mais velho. Porém, nunca esquece o seu primeiro e único amor. Descoberta a vender cinco brilhantes da pulseira, prenda de noivado, recusa-se com altiva dignidade a dar qualquer esclarecimento ao marido e abandona o lar conjugal sem nada, recusando até o dote que o noivo lhe fizera.
Diferente das protagonistas habituais de Camilo, a fascinante personagem de Ângela recusa submeter-se à autoridade patriarcal e às convenções socias e morais vigentes, agindo unicamente de acordo com a sua consciência e assumindo inteira responsabilidade dos seus atos. O escritor denuncia uma sociedade machista que submetia a mulher, ao longo da sua vida, à total obediência perante as figuras masculinas, primeiro o pai, depois o marido. “Você sabe bem que nós, os homens, não somos mulheres. Elas têm outra casta de obrigações. Se a mulher for igual ao marido, então não há honra nem vergonha neste mundo”, profere Hermenegildo.
Confirmando que há muito da biografia de Camilo nas suas ficções, Alexandre Cabral considera que “o autor, ao descrever Ângela, está a imprimir-lhe a altiva rebeldia de Ana Plácido”.
O MACAM nasce da vontade do empresário Armando Martins de mostrar a sua coleção de arte. Que retrato é que esta coleção traça do seu colecionador?
Essa foi uma pergunta que lhe fiz e a resposta dada foi “nenhum”. Acho que faz o retrato de uma pessoa que se apaixonou muito cedo pela arte, e que foi surpreendido pela arte contemporânea, que desconhecia. O Armando Martins (nascido no concelho de Penamacor, em 1949) veio para Lisboa sem nunca ter tido nenhum contacto com o mundo da arte. O primeiro museu que visitou foi o Museu Nacional de Arte Antiga, mas não ficou nada conquistado, antes pelo contrário. Depois, acabou por ir sendo surpreendido pela arte contemporânea. Inicialmente começou a comprar serigrafias com um amigo e, ao fim de um tempo, achou que aquilo não era suficiente. Foi quando decidiu comprar a primeira obra original para se oferecer a si próprio no aniversário dos 25 anos. E, portanto, acho que a coleção faz o retrato de alguém que não tem medo de arriscar; que, não conhecendo um determinado mundo, não tem medo de entrar nele. O Armando Martins tem esse lado arrojado de enveredar por caminhos que não lhe são conhecidos e de sair da sua zona de conforto. É uma pessoa com um espírito muito curioso, muito atento e muito desperto para aquilo que o pode levar para horizontes que desconhece. Foi o que aconteceu com a arte: surpreendeu-o e levou-o para um mundo que não lhe era minimamente conhecido e que ele descobriu sem ter estrutura para tal, sem ter tido formação para o fazer, de forma totalmente autodidata.
Que obra foi essa com que ele se auto-presenteou no seu 25º. aniversário?
Esse primeiro quadro original que ele comprou, da autoria de Rogério Ribeiro, é uma obra de 1970, que ele compra em 74. É uma pintura abstrata. Seria fácil comprar um primeiro quadro figurativo, porque há sempre pontos de referência, da analogia com o real, mas o primeiro quadro que compra é um quadro abstrato. Portanto, há assim um mergulho, uma imersão direta num mundo que é de outra dimensão.
Qual é o horizonte temporal desta coleção?
A obra mais antiga é um Malhoa, datada de 1895. Em relação à mais recente, há várias de 2024, e até de 2025.
Que critério presidiu à formação desta coleção: o exclusivo gosto pessoal do colecionador ou a procura de nela representar os artistas e os movimentos mais relevantes das últimas cinco décadas?
Numa primeira fase, foi por gosto pessoal. Tanto que ele começou a comprar de 1970 para a frente e só depois recuou. Não houve aqui uma orientação curatorial da coleção. Ele foi comprando por instinto, por gosto. Sem dúvida que começou a compreender que havia uma cronologia, havia uma ordem e preocupou-se em ter aqui um caminho cronológico. Acima de tudo, ele teve uma preocupação sempre muito presente nesta coleção: a ambição de ter um determinado nome, mas não uma qualquer obra desse nome. Portanto, ele sempre se preocupou em ter uma obra digna, representativa do artista, que considerava como sendo um artista importante para a coleção. Não lhe bastava comprar. Por exemplo, pode ter comprado inicialmente um desenho pequenino do Amadeo [Sousa Cardoso], mas sentia que aquilo não era representativo do Amadeo. Enquanto não comprou uma boa pintura do Amadeo, não descansou. Portanto, há, de facto, uma preocupação nesse sentido, não só de ir criando uma estrutura colmatando com artistas que são importantes e que fazem um percurso, como ter obras representativas desses artistas. Depois, a partir dos anos 2000, ele sai mais do mundo português e começa a ir visitar feiras internacionais, e apercebe-se de que era importante ter arte internacional, manter esse diálogo também de atualização da relação da arte que se fazia em Portugal com a arte que se faz lá fora. Ele estava consciente de que os artistas portugueses ganhariam com esse diálogo internacional.
Se tivesse que escolher uma ou mais obras icónicas que melhor caracterizassem esta exposição, qual ou quais seriam?
Esta é uma coleção a dois tempos. Tem uma orientação contemporânea e, portanto, há uma série de obras contemporâneas que acho que que ilustram bem aquilo que é o core da coleção. Mas, depois há um núcleo primário inicial, que é extraordinário e que faz uma grande paridade com outras coleções nacionais que são exemplares daquilo que é a história da arte, essencialmente do século XX em Portugal. Portanto, se tivesse que escolher, sem dúvida que o Amadeo é um ex-líbris, tal como o Santa Rita, o Eduardo Viana ou a Vieira da Silva. Obviamente que a pintura do Pessoa pelo Pomar é uma pintura emblemática, também. E, eu sei, que A mulher da laranja, do Eduardo Viana, é a pintura preferida do Armando Martins. Já eu acho que O Rapaz das Louças, também do Viana, é uma obra muito representativa deste primeiro núcleo. No segundo núcleo também há muitas. É difícil escolher uma, porque há tantas obras emblemáticas, mas eu talvez escolhesse a da Marina Abramović, que considero uma peça extraordinária. A coleção tem várias obras de mulheres, o que é uma coisa que me agradou bastante quando comecei a conhecer o espólio. E tem obras bastante arrojadas, também…

O espaço expositivo prolonga-se pelo hotel, dado que existem obras de arte expostas nas zonas sociais, nos corredores e nos quartos. Como surgiu esta ideia?
Quando o Armando me deu a conhecer a coleção e me perguntou se eu estaria interessada em trabalhá-la e criar um projeto museológico, perguntei-lhe como é que ele pensava sustentar um museu, porque os museus não são lucrativos. Ele disse-me que já tinha pensado numa solução: ter um hotel associado ao museu que pudesse dar estabilidade financeira, que fosse um motor de sustentabilidade. Como sei como é angustiante estar dependente do Estado e de fundos públicos, e ao saber que podemos ter, aqui no MACAM, um grau de autonomia, fiquei conquistada. Depois, preocupava-me que a vertente “hotel” se sobrepusesse à vertente cultural do museu. Eu já tinha tido a experiência de colocar obras de arte originais em quartos de hotel e foi isso mesmo que lhe propus, pegar em peças que dificilmente entrariam na exposição, por haver outras mais significativas do mesmo artista, e colocá-las nos quartos. Os quartos da ala nova têm obras de artistas portugueses do pós-25 de Abril, os quartos do primeiro piso do palácio têm obras de artistas portugueses e os do segundo piso têm peças de artistas estrangeiros. Quanto aos corredores, o primeiro piso do palácio tem, por exemplo, várias obras do modernismo. O objetivo é que as pessoas tenham uma experiência diferente, que sintam que estão a dormir num museu e que estão a privar com obras da coleção do museu.
Isso faz com que os hóspedes do hotel se interessem por arte moderna portuguesa…
Exatamente. De um modo geral, penso que a grande expectativa dos visitantes estrangeiros e de muitas das famílias é conhecerem a arte portuguesa. Eles vêm para ver a arte portuguesa, portanto, eles querem um sítio onde possam ver arte portuguesa. E a nossa aposta foi muito essa. Embora no último piso tenhamos um núcleo de arte estrangeira, apostamos em dar a conhecer a arte portuguesa. Faz uma falta enorme em Lisboa haver uma exposição permanente de arte moderna. Na verdade, nem a Gulbenkian nem o MNAC [Museu do Chiado] têm exposições em permanência. Há um certo preconceito, um certo tabu com a ideia do permanente. As pessoas acham que tem que haver dinâmica e uma rotação de exposições, e é óbvio que tem, porque nós precisamos de conquistar os públicos e precisamos de atraí-los com novas ofertas. Mas tendo o MACAM quatro galerias, então vale a pena dedicar duas delas a uma permanente, onde as pessoas sabem que podem encontrar uma oferta que lhes permite conhecer a arte portuguesa e a arte contemporânea. Porque é muito bom as pessoas saberem que determinado museu tem um conjunto de obras emblemáticas e significativas e depois ter, de facto, acesso a elas. Para mim era muito óbvio que esse era o caminho para este museu.
The House of Private Collections (A Casa das Coleções Privadas); este é o mote do MACAM. O que é que isto significa exatamente?
Significa que o MACAM não mostrará apenas a coleção de arte do seu fundador, mas convidará também outros colecionadores privados a mostrar as suas coleções, reforçando a nossa missão de as tornar visíveis ao público. Isto irá acontecer na extensão contemporânea do palácio, dedicado às exposições temporárias, que conta com duas salas que permitem mostrar obras de maior escala.
O MACAM situa-se num eixo geográfico compreendido pelo MAAT e pelo MAC/CCB, entre outros. Que mais valia pode este museu acrescentar às dinâmicas desta área?
Uma enorme mais valia. Estamos aqui num art district crescente. Somos muito complementares, porque, no fundo, conseguimos manter um diálogo de contemporaneidade com o MAAT e com o CCB. Temos obras diferentes, mesmo havendo, obviamente, artistas que se repetem nas várias coleções, mas a nossa coleção de arte portuguesa está estruturada desde o final do século XIX, o que não acontece nos outros locais. O MAC/CCB tem toda uma coleção essencialmente internacional, e depois portuguesa, também da contemporaneidade, mas desta fase inicial do século XX. Portanto, nós temos a arte portuguesa que o MAAT também não apresenta, dai achar que é complementar, porque as pessoas sabem que podem vir aqui ter uma ideia genérica daquilo que é a arte portuguesa, moderna e contemporânea, e arte internacional contemporânea. E depois, indo visitar o MAAT, têm novas perspetivas de exposições temporárias. O MAC/CCB tem uma coleção permanente, alternativa internacional, com obras também de artistas portugueses contemporâneos que farão um diálogo com aqueles que nós temos aqui. E isso reforça o conhecimento dos públicos. A oferta nesta área é muito rica, mas acho que nós nos distinguimos perfeitamente.
Pai, e se ficares sem palavras?
Felicita Sala
Fábula
Quantas conversas entre um pai e uma filha já foram por aí fora, de pergunta em pergunta, e deram a volta ao mundo? Nesta história, uma menina, ao ver o pai falar tanto, pergunta-lhe, na hora de se deitar: “O que acontece se ficares sem palavras? Vais ter alguma guardada para mim?” Ele desliga o telefone e dá-lhe uma resposta sem pressas que vai seguindo as suas perguntas encadeadas. Um livro cheio de imaginação e de pormenores divertidos no texto e nas ilustrações, que é também uma forma de, ao longo das páginas, dizer “gosto de ti”.
O meu pai não sabe desenhar
David Pintor
Porto Editora
É na filha que se tem inspirado, nos últimos anos, para criar muitos dos seus livros infantis. David Pintor volta à sua protagonista preferida para contar a história de um pai ilustrador e da sua filha, uma menina que gosta de pedir que lhe faça desenhos. Com humor e boa disposição, o pai vai acedendo aos pedidos, mas quase nunca o resultado é o que a criança esperava. Nisto do desenho, já sabemos, é preciso muita imaginação e não há nada melhor do que inventar histórias a partir de traços numa folha em branco. Um livro sobre uma relação de amor e cumplicidade, e também sobre a magia dos desenhos.
Bluey – Perfeito
Booksmile
São já quase três dezenas, os livros de Bluey editados por cá pela Booksmile. Mesmo a tempo do Dia do Pai, chegou às livrarias mais um título, em que a personagem da série de animação infantil se esforça por fazer o melhor desenho de sempre para o pai. Existirá um desenho perfeito? A cadelinha Bluey vai descobrir que isso da perfeição tem muito que se lhe diga, numa história em que recorda as brincadeiras com o progenitor. Um livro que nos recorda também como os momentos mais simples podem ser os que nos ficam, para sempre, na memória.
Os lápis desejam feliz Dia do Pai
Drew Daywalt e Oliver Jeffers
Nuvem de Letras
Os simpáticos lápis de cera de Drew Daywalt (texto) e Oliver Jeffers (ilustração) têm sido protagonistas de muitas histórias. Este já é o sexto livro editado pela Nuvem de Letras e fala do amor destes personagens coloridos pelos seus progenitores, sejam eles como forem: pais que gostam de ensinar e de aprender, pais talentosos (ou nem tanto), pais (des)orientados, pais exemplares, pais divertidos, casais de pais, mães-pais, pais-avôs, pais-padrastos… Nestas páginas cabem pais de todos os feitios e amores de filhos sempre gigantescos.
As pegadas do pai
Michelle Robinson e Paddy Donnelly
Porto Editora
Num tempo encantado de dinossauros, mas que pode ser assustador para uma pequena cria, esta é a história de um filho que segue as pegadas do pai e sonha, um dia, ser como ele. “Serei forte e alto quando for grande? Será que os meus pés vão crescer assim?”, interroga-se. Do pai há de aprender que até os grandes se sentem pequenos, e que até os pequenos são fortes e capazes. E que medos e erros não nos devem impedir de seguir em frente. É isso crescer – e os pais estão sempre lá para ajudar no caminho.
Num dia de Natal, tudo muda na perceção daquela que aparentava ser a vida feliz de uma mulher casada com o homem amado e mãe de três filhos. Nora Helmer olha em redor e encarna a mais profunda deceção. Afinal, aos olhos do marido, Torvald Helmer, ela não é mais do que um mero acessório na “casa de bonecas” em que vive.
Assim como um brinquedo, perante o desvendar de um episódio em que o seu altruísmo e dedicação puseram em risco a conceção tradicional de família, Nora toma consciência de que sempre foi manipulada, primeiro pelo pai e depois pelo marido. Sem autonomia sobre as suas escolhas e decisões, sobre os seus gostos e até sobre o seu papel exemplar de esposa e mãe, sempre moldados de acordo com as expectativas da sociedade patriarcal, Nora apercebe-se da vacuidade da sua vida.
Decide, então, deixar Torvald e os filhos e partir em busca da sua própria identidade e liberdade. Concretamente, Nora abandona a “casa de bonecas”, paradigma do lar ideal que foi, durante anos, a prisão emocional e psicológica de uma mulher.
Aqui, termina Casa de Bonecas, a obra-prima de Henrik Ibsen, estreada pelo autor norueguês no distante ano de 1879, peça profundamente controversa à época, com os setores mais conservadores a exigirem um final em que Nora voltasse para o marido e para os filhos. Além da importância que teve na história do teatro realista europeu, Casa de Bonecas está constantemente presente no debate sobre os direitos das mulheres, sobre as dinâmicas de poder nos relacionamentos e a luta pela liberdade individual.
São estas razões que voltam a trazer Ibsen, e mais precisamente o universo da peça, ao Teatro Aberto. “Estava atual há mais de 140 anos, estava atual nos anos 50 do século XX, época em que situamos este espetáculo, e está, infelizmente, atual hoje, quando vemos a perpetuação das desigualdades entre homens e mulheres e até um ataque a direitos adquiridos”, atenta o encenador João Lourenço.
Perante a urgência de voltar a este clássico, ou melhor, ao universo deste marco da história do teatro, Lourenço e a dramaturgista Vera San Payo de Lemos procuraram uma sequela, tendo encontrado na peça de 2017 Casa de Bonecas 2.ª parte, do norte-americano Lucas Hnath, não só uma visão contemporânea de Nora Helmer (embora a peça se continue a passar no final do século XIX), como “o dispositivo perfeito para reforçar o debate e questões como a desigualdade de papéis no casamento e no seio da família tradicional” quando, 15 anos depois de ter partido, Nora regressa a casa para pedir o divórcio.
Reinventando Nora
Não sendo inédito no Teatro Aberto, esta é a primeira vez que João Lourenço assume claramente que “este é um projeto de cinema e teatro”, já que ambas as artes se encontram num justo equilíbrio. E tudo começa, precisamente, com um filme que condensa a peça de Ibsen “no essencial”.
Conta Vera San Payo de Lemos que “há muito tempo que [havia] a vontade de fazer a Casa de Bonecas, tendo colecionado inúmeras traduções e versões, inclusive várias sequelas. Existia, portanto, muito material e pensámos que poderíamos transformar a peça do Ibsen num guião cinematográfico, e partir para um projeto que combinasse o filme e o teatro”. Quando descobriram esta continuação do Lucas Hnath, João e Vera decidiram avançar com um espetáculo que, levando o nome da protagonista, condensasse no filme a peça de Ibsen e, em palco, a de Hnath, “embora completamente reescrita”.
“Interessou-nos tirar a ação do final do século XIX e passá-la para o meio do século XX. Não era só a estética da época, mas também por ser nos anos 50 [do século passado] que começam a germinar grandes movimentos de contestação e [a emergir] a revolução sexual. Decidimos assim situar a ação do filme nessa década e, depois, o regresso de Norma, no final da de 60”, explica a dramaturgista.
Depois do filme, acontece a experiência de “mergulhar para dentro dele, ou para dentro da boca de cena”, como diz João Lourenço, e reencontrar Nora, uma mulher totalmente emancipada, feminista libertária e autora de livros “que têm ajudado a libertar muitas mulheres”, preparada, uma vez mais, para enfrentar Torvald. Mas, este regresso reserva ainda a Nora outros recontros, nomeadamente com Ana Maria, governanta da casa e amiga de infância, agora, companheira do ainda marido, e com a filha relutante, Ema.
Para além de Cleia Almeida no papel da protagonista e de Renato Godinho no de Torvald, Nora Helmer conta com interpretações em palco de Patrícia André e Carolina Picoito Pinto e do músico Ernesto Rodrigues. No filme, dirigido por João Lourenço e Nuno Neves, atuam também Filipe Vargas, Benedita Pereira, Miguel Damião e Rita Correia. O espetáculo está em cena até 20 de abril.
[Atualização a 17 de abril: a carreira do espetáculo foi prolongada até 11 de maio]
“Ganhar um Ragazzi Award de Bolonha é como ganhar a lotaria: são milhares de livros a concorrer de todo o mundo, muitos tão bons ou melhores que o teu, numa espécie dos óscares da literatura infantojuvenil”, diz António Jorge Gonçalves sobre o prémio que recebeu recentemente na categoria de Banda Desenhada Infantil, pelo seu DITA DOR, uma novela gráfica integrada na coleção Missão: Democracia, editada pela Assembleia da República.
A distinção chegou numa altura em que não faltam outras boas notícias. O ilustrador acabou de ver editado pela Caminho o seu mais recente livro, criado a quatro mãos com o escritor Ondjaki, O Tempo do Cão, título de capa vermelha e páginas azuis desenhadas a branco que conta a história de um cão que, à noite, “adormece com saudades de um guerrilheiro”.
Foi também por estes dias que António Jorge Gonçalves lançou a coleção de “narrativas autobiográficas de autoras que usam a imagem como forma primordial de escrita”. Publicada pela Noturno Azul – a sua chancela de autoedição –, estas edições têm uma tiragem limitada de 200 exemplares numerados e assinados. vai, mas volta, de Liliana Lourenço, e amanhã, de Ana Biscaia, são os primeiros títulos e já podem ser encomendados no site do ilustrador. “Existe uma escrita visível nos desenhos destas pessoas, a narrativa ali é palpável, elas escrevem através do desenho”, descreve. São dias ocupados, estes, mas muito felizes, reconhece – e, ainda assim, consegue “encaixar” outros programas culturais na agenda.
A Família Addams – o musical
Até maio
Teatro Maria Matos
Ricardo Neves-Neves faz uma encenação musical a partir da história da família mais gótica da ficção. Wednesday, a mãe Morticia, o pai Gomez e outros membros do clã reúnem-se em palco e prometem gargalhadas. “Estou com muita vontade de ver, porque tem atrizes e atores de que gosto muito. A Ana Brandão é fantástica em tudo o que faz, por exemplo”, começa por elogiar António Jorge Gonçalves, destacando também o trabalho de Neves-Neves, “contemporâneo, arejado e com muito sentido de humor”. “Diria que tem muito para poder dar certo”, continua o ilustrador, que assume ter “um coração tim burtiano” – “para mim, tudo o que é comédia negra é particularmente satisfatório… mesmo não querendo isso dizer que também não goste de uma boa comédia romântica”.
LANDA + Oko Ebombo
11 março, 20h30
B.Leza
O ciclo de música Inquietação decorre no B.Leza até final de maio, apresentando “músicos que desafiam fronteiras sonoras e culturais” e “cuja música é cheia de beleza, coragem e mensagens relevantes – permitindo um espaço de reflexão, solidariedade e expressão”. António Jorge destaca os concertos desta terça-feira: “Conheço o Oko Ebombo, de quem gosto muito, mas não conheço LANDA e estou curioso. Agrada-me a mistura do afro e da eletrónica”, diz. Além disso, sublinha, “vai ser bom de certeza, porque é no B.Leza e gosto sempre de lá ir.”
A Semente do Figo Sagrado
12 março, 16h
Cinema Nimas
Está nas prioridades de António Jorge ver este filme do iraniano Mohammad Rasoulof, que já não se encontra em muitas salas de cinema. “Gosto de ir ao Nimas, que é quase uma segunda cinemateca para cinema mais contemporâneo. O filme foi-me aconselhado por um amigo cinéfilo e toda a gente me tem dito que tenho de o ver.” Para o ilustrador, a curiosidade sobre A Semente do Figo Sagrado começa logo por este ser um filme feito à revelia do governo do Irão. “Ser artista em certas sociedades é uma profissão de alto risco”, lembra.
Francisco Vidal, Escola Utópica de Lisboa
15 março a 8 junho
Pavilhão Branco
É inaugurada esta semana a nova exposição de Francisco Vidal no Pavilhão Branco. “Sou fã incondicional do trabalho dele. O Francisco Vidal é um portento”, afirma António Jorge Gonçalves. “Em tempos, pensou ser ilustrador, mas acho que ganhámos um artista visual fantástico. As obras dele têm um poder incrível.” Sobre Francisco Vidal, diz ainda admirá-lo por ser “uma torneira que não para de jorrar trabalho” e confessa que se revê nessa forma de criar. “Há uma alegria enorme nas suas peças, acredito que o Francisco adora fazer o que faz. É mesmo muito forte.”
Tristany Mundu, Cidade à volta da cidade
Até 5 maio
CAM – Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian
Na sua primeira exposição individual, Tristany Mundu apresenta uma vídeo instalação inédita, encomendada pelo CAM. Uma tripla projeção e um conjunto de “bandeiras”, em que o artista “funde o real com o surreal”. “Desde que fiz, no LU.CA, o ciclo dedicado ao grafitti, Porque desenhamos nas paredes?, fiquei mais próximo da linguagem do hip hop e da cultura das periferias, que é muito pulsante. Parece-me muito bem que uma instituição como a Gulbenkian abra espaço e dê visibilidade a uma representatividade forte da cultura afrodescendente”, defende o ilustrador.
Baan e Lobo e Cão
em streaming na Filmin Portugal
“Vejo muito cinema em casa”, começa por dizer António Jorge Gonçalves. Do catálogo da Filmin, destaca dois filmes que pretende ver esta semana: Baan, de Leonor Teles, e Lobo e Cão, de Cláudia Varejão. Sobre o primeiro, que lhe foi recomendado, diz estar curioso, por conhecer mal a obra da realizadora e por acreditar que vale a pena descobrir o trabalho desta nova geração. “Já os filmes da Cláudia, conheço bem e, para mim, as obras dela têm sempre um pó mágico qualquer.”
Olhos d’água, de Conceição Evaristo
Edição da Orfeu Negro
É o livro que está a ler neste momento e recomenda-o sem hesitar: “Muito bom, mesmo”. Em Olhos d’água, da brasileira Conceição Evaristo, o ilustrador tem encontrado “uma escrita depurada”, que o tem encantado. “Gosto do formato de contos, que é, muitas vezes, desprezado e que cria um efeito de mosaico que me agrada muito”, nota. António Jorge, que já tinha lido outras obras da mesma autora, em edições do Brasil, considera que Evaristo “cresceu como escritora” e conseguiu criar “uma ourivesaria de escrita muito apurada”.
Como pano de fundo para Lá, a mais recente encenação de Miguel Seabra, corre a realidade histórica da década de 60 do século passado, quando, vinda da Serra de Montemuro, chegava à zona do Poço do Bispo, em Lisboa, força de trabalho para as fábricas e armazéns que pontuavam esta zona da capital, onde hoje está instalado o Teatro Meridional.
Para escrever essa peça, a ser trabalhada pela companhia lisboeta e pelo Teatro de Montemuro, o encenador decidiu desafiar um autor que tão bem testemunhou “as particularidades das migrações internas”, José Luís Peixoto. “Sendo natural do Alto Alentejo, de Galveias, o José Luís, pela sua experiência pessoal e pela sua cumplicidade connosco [este é o terceiro texto dramático que o autor vê encenado pelo Teatro Meridional, depois de À Manhã e Vida Inversa], era a pessoa perfeita para traduzir aquilo que pretendíamos e abordar as migrações do espaço rural para a cidade e as desigualdades territoriais que ainda hoje persistem.”
À proposta do Meridional e de Montemuro, o escritor respondeu com “um texto desafiante a muitos níveis, mas que nos trocou as voltas”, realça Seabra. Lá é passado em dois tempos distintos – a década de 1960 e a atualidade -, tendo como personagens duas gerações distintas, interpretadas pelos mesmos atores: Abel Duarte, Cristiana Sousa e Eduardo Correia.
Assim, na década de 60, encontramos um pai, uma filha e um tio, em Campo Benfeito, pequena aldeia do concelho de Castro Daire, na Serra de Montemuro. A degradação das condições económicas levam a família a decidir procurar a sorte na grande cidade. Enquanto o tio se mostra entusiasmado com as promessas de uma vida melhor em Lisboa, o pai sustenta alguns temores por abandonar a casa e a terra, e a filha, Ana, teme perder para sempre o rapaz por quem se apaixonou.
60 anos depois, Annie, neta de Ana, prepara-se para deixar Lisboa e, na companhia do pai e do irmão, retornar à terra de origem da família. Na bagagem, a jovem leva o sonho de abrir uma escola de dança em Montemuro e prosperar longe da cidade turistificada e gentrificada na qual parece não reconhecer o direito de existir.
Encontramos assim duas gerações de uma mesma família a fazer migrações em sentido inverso: nos anos 1960, da serra para a cidade; em 2025, da cidade para o campo. Mas, mais do que as motivações materiais das migrações, em Lá torna-se fundamental a eterna procura pelo lugar onde tudo será diferente. Como salienta o encenador, “este descontentamento, o ir atrás do sonho, de melhores condições de vida é constante ao que somos”. “Lá” é portanto o lugar que projetamos e, de algum modo, o lugar onde nos procuramos cumprir. Mas, quando o “lá” se torna “cá”, não estaremos nós de novo à procura de “lá”?
Em Lá, a jornada migratória de duas gerações de uma família torna-se, assim, numa experiência interior. E é esse lugar que, independentemente da paisagem de Montemuro ou das ruas de Lisboa, fixa as personagens desta coprodução entre o Teatro Meridional e o Teatro de Montemuro. Como, no poema de Manoel de Barros, que no final de um ensaio nos cita Miguel Seabra, “do sítio onde estou já me fui embora”.
Lá estreia a 6 de março, permanecendo em cena, em Lisboa, até dia 30. A 4 de abril, o espetáculo tem uma apresentação única em Campo Benfeito, no concelho de Castro Daire, seguindo depois em itinerância por Coimbra, Bragança. Évora, Paredes, Lamego, Cinfães e Tondela.
Foi aos 18 anos que Armando Martins (n. 1949) se começou a interessar pelas artes visuais e pelo colecionismo, quando adquiria serigrafias em parceria com um amigo. No dia em que fez 25 anos, a 22 de março de 1974, ofereceu-se a sua primeira obra de arte original: um quadro abstrato de Rogério Ribeiro.
“Foram as cores”, diz o colecionador, acrescentando que “a arte abstrata tem uma vantagem: olha-se para ela e vê-se o que se quiser. E todos os dias se podem fazer leituras diferentes. É por isso que continuo a gostar deste quadro tanto como quando o comprei, há quase 51 anos”.

Desde aí, Armando Martins tem vindo a adquirir arte moderna e contemporânea para sua coleção, em constante atualização. E se até finais dos anos 90 do século passado o fundador só comprava peças de artistas portugueses como José Malhoa, Amadeo Sousa Cardoso, Santa-Rita, Eduardo Viana, Almada Negreiros, Júlio Pomar, Noronha da Costa, Paula Rego ou Julião Sarmento, a partir de 2000 começou a adquirir também obras de arte internacional.
O desejo de fundar um museu para partilhar a sua coleção com o público começou há muito, mas foi com a aquisição a título privado do Palácio dos Condes da Ribeira Grande, na Rua da Junqueira, em 2007, que esta vontade começou a ganhar forma. “Só faz sentido ter uma coleção se for para ser exposta. Acho que este é um caminho que outros deviam seguir, até porque constitui uma riqueza para a cidade, para o país e para todos nós”, acrescenta.
Os diferentes espaços do Museu que é também um hotel
Instalado no edifício histórico do Palácio Condes da Ribeira Grande, que remonta ao início do século XVIII, o MACAM compreende um total de 13 mil metros quadrados, dois mil dos quais de espaço expositivo. A reabilitação do edifício, a cargo do estúdio de arquitetura português MetroUrbe, procurou uma relação harmoniosa entre o palácio – onde na zona térrea se encontram as galerias e na zona superior o hotel -, e a extensão contemporânea que alberga o programa de exposições temporárias do museu.
A fachada desta nova ala – premiada na edição deste ano dos Surface Design Awards, em Londres – é revestida por uma série de azulejos tridimensionais da autoria da artista e ceramista Maria Ana Vasco Costa. Já o hotel, criado como motor de financiamento e de sustentação da autonomia do projeto, dispõe de 64 quartos personalizados, cada um oferecendo uma experiência artística única, já que cada quarto conta com obras da coleção MACAM, assim como o corredor e os terraços exteriores.

Na impossibilidade de expor as mais de 600 peças que constituem a coleção, o MACAM vai mostrar, para já, cerca de 210, resultante de “uma escolha curatorial, que tem a ver com a representatividade de artistas e com os diálogos possíveis”, esclarece Adelaide Ginga, diretora do MACAM.
A historiadora de arte e curadora explica como esta coleção se organiza no espaço: “No palácio, temos duas galerias que vão mostrar em permanência uma parte da coleção. A Galeria 1 é dedicada àquele que foi o primeiro núcleo da coleção, constituído em torno da arte portuguesa, e que tem um percurso cronológico sobre peças muito representativas daquilo que é a história da arte desde o final do século XIX até ao final dos anos 80 do século XX. Na Galeria 2, que reúne arte contemporânea portuguesa e internacional, a organização já não é cronológica, faz-se por núcleos temáticos, onde as obras portuguesas dialogam com as estrangeiras.”
Sob o mote The House of Private Collections (A Casa das Coleções Privadas), o MACAM não mostrará apenas a coleção pessoal de arte do seu fundador, mas convidará também outros colecionadores privados a mostrar as suas coleções, reforçando a missão de as tornar visíveis ao público. Isto acontecerá no edifício novo, dedicado às exposições temporárias, que conta com duas salas que permitem mostrar obras de maior escala.
Confiante e feliz por aquilo que o MACAM vai trazer à zona de Belém, onde existem outros museus como o MAAT ou o MAC/CCB dedicados à arte contemporânea, Adelaide Ginga considera importante a distinção que existe entre eles, bem como a relação de complementaridade.
A diretora salienta “fazer falta em Lisboa uma exposição permanente que represente a evolução da arte portuguesa do século XX”, e acrescenta: “aqui no MACAM, tendo quatro galerias, vale a pena dedicar duas delas a uma mostra permanente que permite conhecer arte portuguesa contemporânea. É muito bom o público saber que determinada coleção tem um conjunto de obras emblemáticas e poder ter acesso a elas.”
O Live Arts Bar na antiga capela
O Live Arts Bar situa-se na capela do edifício, datada do século XVIII, dessacralizada, restaurada e transformada em local de eventos culturais. A programação destinada quer aos hóspedes do hotel, quer ao público em geral, pretende dinamizar toda a zona da Junqueira, através das artes preformativas, da música e da palavra.
Adelaide Ginga sublinha ser “muito importante que a palavra volte a ganhar dimensão de espetáculo. Queremos estimular o gosto de ouvir poemas, de declamar, de conhecer a literatura e a poesia e valorizá-lo na articulação com a música, num ambiente cuidado e intimista”.

A abertura do MACAM está agendada para dia 22, uma data que tem um significado especial: além de ser o aniversário de Armando Martins, coincide também com a aquisição da sua primeira obra original. A inauguração do museu será marcada por três dias de eventos e atividades de entrada gratuita a anunciar em breve.
“Aproveito o tempo a mais que passamos em casa para ensinar a um dos meus filhos como se faz malha.” Assim começa Saber Perder, o primeiro livro de prosa de Margarida Ferra, recentemente editado pela Companhia das Letras, mais de uma década depois da autora ter publicado Sorte de Principiante, de poesia. Ao longo das páginas, entrelaça uma narrativa de pequenos textos, num tecido feito de histórias, lugares, gestos e pensamentos, usando as suas memórias para nos falar de escrita – o prazer de escrever, a dificuldade de escrever, a tentação e a fuga à escrita. Um bom livro para ler nos intervalos das tantas atividades que aqui sugere.
Baile de Carnaval
4 março, das 14h30 às 16h30 e das 17h às 19h
Teatro LU.CA
Já é uma tradição no Teatro LU.CA, este Baile de Carnaval para famílias com crianças a partir dos três anos. Na terça-feira gorda, é Ana Markl quem está aos comandos da música e promete “pop, rock e outros géneros de alegria sonora”, entre máscaras e purpurinas. “Nunca fui, mas gostava muito de ter uma criança foliona para me acompanhar”, diz Margarida Ferra, a rir. “Apesar de já não brincar ao Carnaval há muito tempo, gosto de festas e, sobretudo, de festas à tarde, por isso, a perspetiva de passar uma tarde a dançar parece-me maravilhosa.”
Visitas com jardineiros
5 março, pela manhã
Jardim Botânico de Lisboa
Nas primeiras quartas-feiras do mês, os jardineiros e jardineiras do Jardim Botânico de Lisboa fazem visitas guiadas, bastando para isso dar essa indicação na bilheteira. “Parece-me um ótimo programa para a quarta-feira de cinzas, passar uma manhã ao ar livre, no dia seguinte à folia”, aponta Margarida. “É sempre bom ouvir quem faz e acredito que os jardineiros têm uma relação secreta com as plantas. O Jardim Botânico de Lisboa é lindíssimo e, às vezes, até nos esquecemos de que ele ali está no meio da cidade.”
Uma deriva atlântica. As artes do século XX a partir da Coleção Berardo
MAC/CCB
A nova exposição permanente do MAC/CCB reúne obras de cerca de 160 artistas, “de Pablo Picasso a Amadeo de Souza-Cardoso, de Lourdes de Castro a Marcel Duchamp, de Andy Warhol a Wifredo Lam, de Maria Helena Vieira da Silva a Joaquín Torres-García, de Jackson Pollock a Malangatana, e de Lucio Fontana a Ana Hatherly”… “Quero muito ir ver, porque me interessa tudo o que sejam propostas de leituras de coleções, combinando peças de formas diferentes e criando novos sentidos”, afirma Margarida, apontando os nomes por detrás desta mostra que tem curadoria de Nuria Enguita e Marta Mestre, e assessoria científica de Mariana Pinto dos Santos. “A Marta e a Mariana fizeram juntas uma exposição em Guimarães que era fabulosa, foi a melhor que vi no ano passado, por isso, desta dupla só espero o melhor”, elogia, sublinhando que gosta de exposições que “façam pensar e levantem questões, mesmo quando nos põem num lugar de desconforto”.
Mbye Ebrima
7 março, às 22h30
B.Leza
Margarida Ferra conheceu Mbye Ebrima, cantor, compositor e tocador de kora, natural da Gâmbia e residente em Lisboa, quando o músico atuou recentemente na Quinta Alegre, onde a escritora trabalha como responsável pela Comunicação. Agora, não hesita em sugerir este concerto no B.Leza em que Ebrima apresenta o seu novo álbum. “Ele é fantástico, muito físico e corporal, consegue transmitir pela música uma história. Tem um ritmo narrativo, de alguma forma”, descreve. “Também gosto muito do B.Leza, nunca saio de lá desiludida, mesmo quando vou às cegas. É um lugar muito confortável, com uma proximidade em relação aos músicos que me agrada.”
Mulheres na cidade
8 março, às 11h
Torreão Poente da Praça do Comércio
No Dia Internacional da Mulher, este percurso de duas horas, organizado pelo Museu de Lisboa, anuncia-se como um caminho “por histórias de vida e momentos marcantes da história da cidade e do país, em que o feminino se impôs alto e bom som”. Para Margarida Ferra, “é muito interessante este programa de museu fora de portas, como se o museu estendesse para fora do seu edifício em vez de estar fechado entre quatro paredes”. “Vejo os museus como lugares em que olhamos para o passado em relação com o nosso presente. E a perspetiva feminina desta visita, depois de tantos séculos de invisibilidade, é de celebrar”, acrescenta.
Há dias mais alegretes – contos e panelas
8 março, das 10h30 às 14h
Laboratório (In)Visível
8 março, às 15h
Quinta Alegre
Um programa duplo é o que Margarida Ferra sugere para este sábado na Quinta Alegre. De manhã, o encontro está marcado para a cozinha do palácio, onde se pode aprender a fazer (e depois comer) cachupa vegetariana, com Victoriana Neto e Eupremio Scarpa, dois chefes não profissionais mas que dominam as panelas – a iniciativa é dos Alegretes, o grupo de pessoas que frequentam a Quinta Alegre e se tem juntado para pensar e criar propostas de atividades para a programação. À tarde, Maria Remédio convida crianças a partir dos 6 anos para “uma oficina-laboratório onde se vão experimentar ideias de coisas visíveis e invisíveis” e fazer uma instalação artística em conjunto. Ambas as atividades requerem reserva. “São sugestões aqui na casa, mas acredito que vão ser bons pretextos para voltar ou para vir pela primeira vez”, garante Margarida.
No reino de O’Neill
Até 8 março
Biblioteca Nacional de Portugal
É a última semana para visitar a exposição que assinala o centenário de Alexandre O’Neill na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e Margarida Ferra não quer deixar de fazer esta sugestão para quem ainda não conseguiu ir. “Recomendo o O’Neill de olhos fechados. Gosto muito de ver exposições de literatura, embora não seja fácil mostrar uma coisa que é para ser lida.” Com curadoria de Joana Meirim, a mostra sobre um dos nomes maiores do surrealismo em Portugal parte do seu espólio, doado pela família à BNP, e percorre as várias dimensões do autor. “Os livros estão aí para ser lidos e falam por si, por isso, interessam-me os bastidores da escrita, esses caminhos da arqueologia do texto são fascinantes para mim”, confessa a escritora.
O novo disco chama-se Um Gelado Antes do Fim do Mundo. Porquê este título?
É uma frase que resume o espírito do disco, que tem um lado emocional, mas que também fala sobre as grandes questões que nos atormentam, sobretudo a nossa incapacidade de imaginar um futuro, de criar alternativas, de cultivar as utopias. A ideia do fim do mundo acaba por ser uma espécie de guarda-chuva que tem muitos subtemas, desde as alterações climáticas, à escalada da extrema-direita, à questão do adormecimento e da alienação das pessoas a partir das redes sociais. Como contraponto, a ideia do gelado é uma metáfora para o que também é a proposta do disco, que é cultivar o lado poético, do encantamento com a arte, com a natureza, aquilo que nos recarrega as baterias para lidar com estas angústias que assolam a nossa civilização. É um bocadinho isso: um pé no encantamento e um pé no fim do mundo – esta espécie de apocalipse que vivemos.
Este disco sai cinco anos depois de Madrepérola (2020), que foi muito marcado pela experiência da maternidade…
O Madrepérola foi feito durante a gestação e no pós-parto. Depois, veio a pandemia e também alguns embates com o cansaço da gestão da vida de uma artista que também é mãe e que também tem de conseguir tempo para a criação num mercado tão pequeno como o nosso e com tantos desafios. Houve um período de pousio em que pensei que nunca mais ia fazer um disco. Entretanto, fiz o segundo disco Mão Verde (o meu projeto de música para crianças com o Pedro Geraldes, o António Serginho e a Francisca Cortesão), depois escrevi um disco com a Aldina Duarte e a minha vontade de escrever foi começando a surgir… Há um ano fiz, com o Luís Montenegro, uma versão da canção Que força é essa amiga?, do Sérgio Godinho, e foi daí que nasceu a centelha que me fez gravar este novo disco, que não é tão otimista e tão solar como o anterior (que, por ter sido feito durante uma gravidez, estava cheio de esperança no futuro). O novo disco já veio numa fase pós-pandemia, de reconstrução da minha vontade de criar, mas também numa altura em que o mundo está muito complexo. Se calhar foi preciso este hiato de cinco anos para eu perceber o que queria dizer e também para me redescobrir enquanto artista e ser criativo, depois dos impactos dessas experiências todas.
Quando lançaste o Madrepérola, disseste que não sabias se era o teu último disco. Manténs essa ideia?
Acho que essa ideia está sempre presente. Quando saiu o outro disco as pessoas perguntavam-me muito isso, quase como se fosse uma ameaça. Mas não é, porque acho mesmo que o formato do disco está em vias de extinção. Não sei até quando terei o romantismo de me meter nestas grandes aventuras, porque isto é uma maratona e exige muito investimento financeiro, mas também muito investimento de tempo e de trabalho, para depois as pessoas ouvirem durante uma semana e passarem à próxima novidade. É um bocadinho ingrato, porque o tempo da arte e da criação está cada vez mais distante do tempo do mercado.
Achas que é um sintoma dos tempos?
Não. Sempre foi, mas atualmente é uma distância quase irreconciliável. E depois também como nos sobram muito poucos meios para divulgar o nosso trabalho, estamos a competir nas redes sociais com um prato de sushi ou umas férias nas Maldivas e é um bocado injusto… Percebo, por isso, que as pessoas desistam do formato. Quando faço um disco faz-me sempre sentido que seja um corpo de trabalho que tenha um conceito, um espírito. As canções têm um parentesco entre elas, há ali um sentido que une aquelas canções e, portanto, para mim fez todo o sentido manter este formato para esta proposta do Um gelado antes do fim do mundo. Não sei se o vou continuar a fazer, se calhar ou lançar mais EPs, coisas mais pequenas, conjuntos de músicas mais soltos, mas não consigo prometer que continuarei com este formato.
Nestes tempos tão conturbados que estamos a viver e com a desinformação toda que há nas redes sociais, a caneta e o microfone ainda são uma boa forma de combate?
Não sei se é o meu romantismo a falar, mas acho que as canções, sobretudo nas fases mais conturbadas – historicamente isso está documentado – têm essa capacidade de criar um espírito de identificação, um sentido de pertença e alguma mobilização. Não é à toa que há hinos de gerações, de movimentos sociais, de países, de lutas, porque a música tem uma capacidade não só de conter o espírito da época, como de mobilizar as pessoas. Isso não é algo palpável, mas, sobretudo num momento em que há tanta toxicidade no debate público, tanta desidentificação com as instituições e com aquilo que são os nossos representantes, a cultura tem um papel fundamental. É o último reduto da humanização no sentido em que é a ler, a ouvir música e a ver filmes que nós imaginamos o que é estar no lugar do outro. Isso é uma coisa muito simples, mas contém tudo aquilo que nos define enquanto humanos, essa capacidade de empatizar. A música (mais concretamente a escrita) é a minha ferramenta e, portanto, o meu contributo para comunicar com as pessoas e falar sobre as causas que acho urgentes, mas também para trazer algum encantamento, algum amparo.
O primeiro single do disco, Making teenage Ana proud, tem uma mensagem muito forte e empoderada. A Ana adolescente está orgulhosa do sítio onde chegou?
Making teenage Ana proud é uma espécie de lema pessoal. Penso muitas vezes se as minhas decisões artísticas ou se as minhas escolhas profissionais orgulhariam a Ana adolescente. Quis celebrar um bocadinho o espírito aguerrido dessa Ana, que era muito contestatária, tinha convicções férreas e um espírito insubmisso. Penso que é uma boa referência para manter viva essa capacidade de me revoltar contra aquilo que acho injusto. E este disco também tem muito esse espírito insubmisso, e eu quis celebrá-lo. Penso que a adolescente que fui ia orgulhar-se e surpreender-se bastante por eu ainda estar a fazer música e por ter feito do rap profissão, que foi uma coisa muito inesperada. Acho que ela ia ficar orgulhosa de mim e dizer “superaste as minhas expectativas”.

O disco anterior tinha muitas colaborações. O novo álbum também?
Tenho três participações, mas para já só vou revelar uma delas, que é a Gisela João, que vai ser minha convidada no concerto do Tivoli. Colaborei com a Gisela muitas vezes nos discos dela, já escrevi muitas letras para ela e ela também entrou numa das minhas canções do Sereia Louca [2014]. A voz dela está sempre no meu imaginário. Quando escrevi o refrão da canção em que ela participa imaginei logo que ficaria incrivelmente bem na voz dela. Esta canção fala sobre a escalada da extrema-direita de uma forma muito poética, aludindo a uma notícia de 2023 em que as águas do Danúbio baixaram tanto com a seca que vieram à tona os navios nazis que estavam afundados desde a Segunda Guerra Mundial e que tinham sido afundados propositadamente cheios de explosivos para tornar o rio inavegável. Achei que era uma ideia muito interessante porque era quase como se a seca e a escassez trouxessem à tona os monstros do passado. A partir dessa metáfora, falo sobre a escalada da extrema-direita um pouco por todo o mundo, e a Gisela canta o refrão com a sua voz grave, numa toada de fado.
O universo do hip hop ainda é maioritariamente masculino. O que falta para haver mais mulheres nessa área?
Falta destruir o patriarcado, mas não só no rap. Também em muitas outras esferas da nossa vida: na política, no desporto de alta competição, nas grandes empresas, no rock, na música eletrónica… O hip hop é um boys club mas há muitos outros meios em que as mulheres também são minoritárias e nos quais as características essenciais para competir com os nossos pares não são muito estimuladas na socialização das mulheres, como ter espírito competitivo, ser desbocado, investir nos nossos talentos… Temos de nos focar na nossa cultura como um todo, que ainda é muito desigual, muito misógina e em que as mulheres são todos os dias condicionadas, desencorajadas e relegadas para segundo plano e não conseguem vingar em muitas esferas em que, se vivêssemos numa sociedade mais igualitária, poderiam ter tanta ou mais visibilidade que os seus pares.
O caminho que fizeste, com todo o mérito e reconhecimento que tens, ajudou a abrir portas para outras mulheres no rap?
Gostava de acreditar que sim, mas acho que isso ainda não é muito óbvio. Às vezes criam-se quase bolsas de exceção a uma regra, que não abrem espaço à mudança por si só. Tem de haver muitas outras coisas a contribuir para a mudança ser estrutural. Também não quero fazer da minha história individual de sucesso, ou de exceção, uma prova de que é possível, porque as minhas companheiras de rap podem não estar nas mesmas circunstâncias que eu ou eu estar num lugar de privilégio. Não quero que o facto de ter conseguido criar uma carreira no rap sendo mulher em Portugal seja a prova de que é possível. Penso que é um contributo para que as coisas mudem, mas era preciso muito mais e não estou a ver uma mudança assim tão profunda no rap como vejo, por exemplo, no contexto da música portuguesa como um todo onde, cada vez mais, há mulheres a gerirem as suas próprias carreiras, a escreverem as suas próprias letras, em lugares de topo nas editoras ou nas agências.
Tens uma relação muito forte com a escrita, seja nas crónicas ou nas músicas que escreves – para ti e para outros. Imaginas-te a viver só da escrita?
Poderia deixar de fazer música, mas nunca poderia deixar de escrever. Desde que aprendi a escrever que a escrita (sobretudo a poesia) se tornou uma espécie de, não só superpoder, mas também uma espécie de higiene do pensamento, um lado confessional, que me organiza e me reconecta. Nos últimos anos tive a oportunidade de desdobrar a minha escrita em muitos registos: nas crónicas, nas letras, na literatura e na música para a infância, na poesia, na formação de escrita de letras de canções. A palavra é a base de tudo o que eu faço. Acho mesmo que é esse o meu superpoder.
O que é que podemos fazer, enquanto educadoras de rapazes, para que se acabe com esse machismo tão latente na nossa sociedade?
Acho que há duas coisas importantes: uma é saber que eles estão mais atentos ao que nós fazemos do que ao que dizemos, por isso temos de ter relações saudáveis, partilhar as tarefas domésticas, projetar uma imagem de força, de orgulho em nós próprias, não sermos sempre autocríticas, não sermos submissas, não nos desvalorizarmos, não sermos críticas com o nosso corpo, celebrarmos as mulheres. Acho que isso é muito importante. Depois acho que temos de criar homens que sejam sensíveis e que não tenham medo da sua vulnerabilidade. Falar sobre emoções e deixá-los conectar com as suas vulnerabilidades, porque acho que isso é o que o patriarcado rouba dos rapazes – a oportunidade de serem seres vulneráveis. Isso traz um lado tóxico e muitas vezes autodestrutivo e violento às relações humanas, que depois inquina tudo em redor. Se criarmos rapazes que sejam capazes de dizer que estão tristes e explicar porquê, se lhes ensinarmos que eles podem ser péssimos a jogar à bola e que não é por aí que deixam de ter valor perante os seus pares, se lhes permitimos ter outros interesses que não sejam só condicionados por essa lógica muito competitiva e muito viril que a nossa cultura alimenta, acho que também temos meio caminho andado. E ensinar a importância do consentimento, pô-los a fazer tarefas domésticas desde pequeninos, tantas coisas que nós podemos fazer… Quando estava grávida, pensei que, se tivesse uma menina, seria mais fácil, porque era só dar-lhe autoestima. Os rapazes, de certa forma, já vêm para o mundo numa situação de poder. Percebi que empodero muito mais o meu filho se permitir que ele seja uma pessoa vulnerável e conectada com as suas emoções, validando-as.
Dia 8 deste mês celebra-se o Dia Internacional da Mulher. Por que é tão importante continuarmos a celebrar este dia?
Vivemos num país em que os números da violência doméstica são assustadores, é uma autêntica epidemia. O gap salarial também é pornográfico e agrava-se à medida que vamos subindo nas hierarquias. Isto é ainda mais incompreensível num país onde a maior parte das pessoas licenciadas são mulheres, portanto nem sequer é uma questão de mérito ou de falta de preparação. As mulheres portuguesas estão muito sobrecarregadas, trabalham muito mais horas por dia na chamada economia do cuidado. Se não falarmos, se não exigirmos políticas públicas, se não reivindicarmos mudanças legislativas e na própria gestão das empresas, mesmo dentro das nossas casas e nas nossas relações, vai demorar centenas ou milhares de anos, se é que vai evoluir positivamente até haver igualdade. E nada nos garante que isso venha a acontecer quando vemos que, com a escalada da extrema-direita um pouco por todo o mundo, a prioridade é fazer retroceder os direitos das mulheres e das minorias. Todos os estudos de mentalidades apontam para que os homens das próximas gerações sejam mais conservadores e mais machistas do que os homens da nossa geração. Se nós ainda não conseguimos a igualdade e não podemos dormir à sombra dos direitos adquiridos, perante estes sinais devemos estar ainda mais alerta e mais empenhadas em relembrar todos os dias do ano – não só o 8 de março – de que temos muito trabalho pela frente. Cá estaremos para resistir até ao fim por tudo o que conquistámos nestes quase 51 anos de democracia.
paginations here