No início, há apenas silêncio. Os intérpretes vão entrando e olhando para os espectadores na plateia. De volta, recebem os olhares do público. É dessa relação que se faz Ruído, o espetáculo de Sofia Dias e Vítor Roriz, que está na Culturgest entre esta quinta-feira, 10, e sábado, 12 de outubro. Não será por acaso que não há som nestes primeiros minutos – mesmo que o título nos remeta exatamente para o oposto. “Gosto da ideia de provocar esse choque inicial, acredito que dá mais espaço a quem está a ver para aceitar, para estar no presente”, nota Vítor. “Sim, a partir desse presente, entramos na ficção e damos lugar a um imaginário em conjunto. Este espetáculo acaba por ser também uma ode ao lugar do Teatro, onde cabem muitas ficções e onde cabem muitos gestos e movimentos, onde há mistério, e onde não sabemos o que vamos encontrar, mas onde vamos à mesma porque precisamos de ir e de estar, porque precisamos de nos desdobrar”, acrescenta Sofia.
As primeiras palavras são ditas em inglês: “What do you see?” A tradução chega numas legendas escritas em pequenos papéis e colocadas à mão, uma a uma, num retroprojetor. “O que vês?”, “Um corpo?”… Os bailarinos vão descrevendo os seus gestos e dando várias possibilidades de leitura. “Quantas palavras cabem num gesto?”, interroga-se Sofia, lembrando que um movimento não tem de ter um significado apenas e que o público menos habituado à dança se sente constrangido com a obrigação de explicar o que vê. “Como quebramos isso, como convidar e dar as boas-vindas à multiplicidade da perceção de um movimento?”, continua. Em cena, os bailarinos despojam-se de virtuosismos, de movimentos complicados e de camadas e assumem a presença dos seus corpos e das suas fragilidades frente a um público. “É bom estar num lugar e não saber”, há-de ouvir-se mais à frente durante o espetáculo. Antes disso, já a atenção se virou para a plateia, já a “massa abstrata e difusa” se revelou em caras, sonhos, expressões, gestos, vontades, e se convocaram os espectadores a – metaforicamente – subir ao palco. “É uma sensação de pertença, de que também eles podiam estar aqui em cena, um convite à imaginação, a pensarmos como vivemos o presente e como o vamos preencher. Isso acontece em todos os nossos espetáculos, mas aqui é um assunto”, afirma Vítor. “Aqueles corpos convocam a humanidade, é um apelo à empatia”, resume Sofia.
O extra poder da dança
O que há de ruidoso neste espetáculo, então? O título, explicam, surgiu já a meio do processo de criação, que foi acompanhado por cientistas do Center for the Unknown da Fundação Champalimaud, onde a dupla está em residência artística desde 2023 e até ao final deste ano. “O espetáculo não partiu desses encontros, mas fomos tendo muitas conversas, eles assistiram a ensaios e muitas das ideias que acabámos por desenvolver vieram dessas partilhas”, conta Vítor. “Ao vermos as reações deles voltámos a lembrar-nos de que a dança é uma coisa extraordinária, na qual podemos pôr tanta coisa num movimento só, e que os bailarinos têm tantas competências a que já nem prestamos atenção: a forma como ocupam o espaço, a sincronização, a escuta do outro, a improvisação… É quase um extra poder, há algo de muito especial na dança mesmo e, no palco, estamos num lado mais poético e mais livre do que na investigação científica”, diz Sofia.
O diálogo com a neurociência fez com que percebessem que o ruído é essencial à existência e à aprendizagem. “Precisamos do ruído para acedermos ao sinal. Anular o ruído é anular a nossa capacidade de compreensão”, sublinha Sofia. Tudo depende, então, do lugar para onde viramos a nossa atenção, porque há muito de periférico que é, afinal, essencial. O chiar das cadeiras da plateia, o barulho da porta a abrir e fechar, os sapatos na alcatifa do chão da sala, a presença do outro ali mesmo ao nosso lado – não haverá, enfim, tanta beleza no ruído?
Lisboa voltar a ser abalada por um grande terramoto é algo plausível. Há apenas uma questão: quando? De que forma esta ‘inevitabilidade’ se transformou num filme?
Sou de Lisboa e desde miúda que ouço esta história. A nossa maior referência em Lisboa, em termos deste tipo de eventos, é o grande Terramoto [de 1755]. Foi sempre uma coisa que me inquietou a todos os níveis, não só para o cinema, mas também para o planeamento de uma cidade. Isto fez com que, desde há muitos anos, quisesse realizar um filme baseado nesta premissa: “E se acontecer outra vez?”. Não é tanto fazer um filme catástrofe, porque isso não me interessa, nem é o tipo de cinema que me importa explorar, mas fazer uma coisa baseada na possibilidade de voltar a acontecer. E a verdade é que, falando com uma série de cientistas, a certeza é de que vai acontecer outra vez, só não sabemos quando. Esse é o tagline da campanha do filme: “se voltar a acontecer”. Decidi então explorar esta ideia neste filme.
Mas, houve uma informação real que a impulsionou…
O que aconteceu foi que, na altura em que voltei a pegar na ideia, surgiu a notícia de que um grupo de cientistas ia efetivamente trabalhar com o Governo na instalação de novos cabos submarinos com uma série de sensores que permitem o estudo do fundo do mar em tempo real. Resolvi trabalhar com esse grupo de cientistas para desenvolver a ideia.
Este não é um filme catástrofe, mas sim, um filme presságio?
(Risos) Sim, pode ser. Talvez não no nosso tempo de vida, não sabemos.
Porquê o título O Melhor dos Mundos?
O Melhor dos Mundos vem de uma frase da Teodiceia de Leibniz, aliás, é a citação com que o filme começa, em que o filósofo diz que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Isto acaba por ter uma ligação, ainda mais interessante, ao Voltaire que pega nessa ideia e a desconstrói no conto filosófico Cândido, criando a personagem de Cândido, o otimista, que, por mais tragédias que aconteçam, acredita que vivemos no melhor dos mundos, porque na realidade é o único que existe. Ou seja, para nós, terráqueos, não existe outra possibilidade senão a de viver neste mundo. E, nesse sentido, este é sempre o melhor dos mundos. O livro foi escrito no rescaldo do Terramoto de 1755. Depois disso, tudo foi posto em causa. Era a época do iluminismo, e Voltaire acabou por satirizar a teoria de Leibniz na sua famosa narrativa.
Atualmente ainda não conseguimos prever sismos e estes acontecem, independentemente, das nossas ações. No entanto, temos muita informação sobre o impacto humano nas alterações climáticas, mas continuamos a viver de forma muita egoísta. O filme também procura refletir sobre esta ambivalência?
Nós como espécie não estamos preparados para fazer uma grande mudança, seria preciso uma mudança radical. Ninguém está preparado, são coisas que demoram séculos. Assim como demorámos séculos, ou milénios, para chegar onde chegámos, também vamos demorar milénios a voltar a outra coisa. O filme não trata só deste caso concreto do terramoto, mas também serve para refletir sobre outro tipo de questões, nomeadamente, como é que as pessoas lidam com situações extremas. Por outro lado, também são abordadas questões mais profundas da humanidade que refletem a divisão entre os que querem realmente fazer alguma coisa e os outros, os que estão sempre a protelar.
A questão do aleatório, do acaso, é algo presente neste filme, mas também já o era na sua primeira longa-metragem, Linhas Tortas. Esta é uma questão sobre a qual gosta de refletir?
Sim, é uma das grandes questões que me interessam e que gosto de explorar. O acaso, a dúvida, o não estar nas nossas mãos o que pode acontecer. Isto acontece quer a uma escala maior como é o caso de um terramoto, mas também a um nível mais pessoal, nos encontros e desencontros do dia-a-dia.
Parece haver um paralelismo entre a história do terramoto, o processo de investigação científica, as incertezas, as dúvidas e a relação amorosa dos protagonistas. Concorda?
Sim, o processo de estudo científico do terramoto acaba por espelhar esse lado amoroso. Reflete a relação de encontro e desencontro dos protagonistas.
A dúvida sobre como melhor agir, o que é ético fazer e a possibilidade das previsões não se cumprirem, levam a uma discussão no seio do grupo de trabalho dos cientistas. Vivemos em constante alarmismo, numa sociedade que não permite falhas. Quis também abordar esta questão?
Sim, no filme há a questão concreta do terramoto, da possibilidade de este acontecer, mas na verdade estamos a falar de todas as questões que se levantam com a informação científica que temos. Como aconteceu, por exemplo, na pandemia. Se calhar o alerta que foi dado a partir da China foi tardio. Quando estava a acontecer, pode ter havido uma reunião parecida com a que acontece no filme, onde se questionou: avisamos ou não avisamos? Se calhar avisaram tarde demais. E quando avisaram, a pandemia já estava fora de controle. Mas isto pode acontecer noutras situações. Quando as pessoas têm uma informação tão grande nas mãos, o que é que fazem? Mesmo em situações de intimidade, no seio familiar ou entre amigos, pode surgir essa dúvida. Tais questões éticas surgem quando se está perante uma situação muito grave e isso pode acontecer quer na intimidade, quer a nível global.
Como foi feito o casting? Já tinha em mente os atores que interpretariam os cientistas Marta e Miguel?
Tanto trabalho com convites diretos a atores, como opto por um processo tradicional de casting. Neste filme quando comecei a desenvolver a ideia, pensei na materialização do argumento e da história e comecei logo a idealizar os atores, sobretudo o par protagonista. Quem será esta Marta, quem será este Miguel? Pensei na Sara Barros Leitão e essa ideia foi-se consolidando, porque conhecia o trabalho dela e por saber que, como pessoa, tinha também uma série de características que se colavam bem à personagem. Para mim, ela era a Marta. Tive a sorte de a convidar e dela aceitar e por isso não precisei de pensar num plano B. O Miguel Nunes já conhecia, já tinha trabalhado com ele. A parte complicada é conciliar agendas, mas correu bem. Já as personagens secundárias passaram por um processo de casting e, no fim, conseguimos ter um bom grupo de atores.
Existe um gap de cinco anos entre os dois trabalhos que fez para cinema. Pretende continuar a fazer cinema?
Fiz muito publicidade. E fiz a série televisa Madre Paula que foi pensada com uma premissa mais ligada ao cinema. Neste momento tenho vários projetos em desenvolvimento, em diversos formatos, ainda não financiados, em processos de candidatura. Para se conseguir fazer um filme há um longo caminho, é um procedimento difícil, mas inevitável. Mas sim, o cinema faz parte do trabalho futuro. Foi com a ficção que comecei, a primeira curta é de 1997. Sempre tive um pé no cinema, um pé na publicidade e considero todos os formatos igualmente interessantes.
O que Leonardo tem para partilhar só poderia ser feito num lugar seguro, como um jardim (aqui, o de inverno do São Luiz, hoje Sala Bernardo Sassetti), onde se instala uma tenda feita de toalhas de mesa e lençóis bordados, saídos ora das mãos mágicas de artesãs dedicadas, ora do anonimato em série das fábricas de têxteis. Comenta o autor e ator que “são um trabalho magnífico da Tati[ane] Oliveira e da Margarida Silva, a representar uma manta de retalhos de coisas novas e antigas, como uma história de vida. Há enxovais, Feira da Ladra, mas também há Ikea,” esclarece Garibaldi.
Por falar em história de vida, é isso que Leonardo se propõe contar a partir da sua chegada ao dia de hoje, o seguinte a ter completado 30 anos e ter deixado de ser jovem. Sendo agora um adulto, “já não basta fugir para debaixo das saias da mãe”, portanto, eis chegado o momento de enfrentar a ideia de que a partir daqui estamos por nossa conta.
Mas é preciso perceber como se chegou aqui, sabendo que a vida é, muitas vezes, repleta de sonhos desfeitos, carregada de dores de crescimento e, no caso, de músicas, porque Leonardo sempre quis ser cantor e, para ele, ainda hoje, a uma música corresponde uma memória.
Boas ou dolorosas, as memórias trazem canções que contam a história do agora adulto Leonardo desde o dia em que se sentiu verdadeiramente triste pela primeira vez: completava cinco anos de idade e ninguém apareceu para festejar.
O Billie Elliot da música
Nascido há 30 anos no interior de Portugal, Leonardo anunciou em criança que queria ser cantor, porque sonhava, um dia, ouvir as suas músicas a passar nas telenovelas. O sonho de ser cantor pop trouxe-lhe agruras, não só perante a incompreensão dos amigos na escola, como da família, sobretudo o pai que, olhando para o filho, apenas via deceção.
Tal como a história do adolescente inglês que, enfrentando preconceitos e contrariando a vontade da família e a expectativa da comunidade, trocou o pugilismo pelo ballet num famoso filme de Stephen Daldry, Leonardo sentiu-se “o Billie Elliot português, mas da música”, e veio estudar para Lisboa. A aventura começou, mas continuava a tristeza.
“Podemos dizer que Last Call é uma autoficção, com muita coisa minha, mas onde a maior parte são memórias completamente ficcionadas”, esclarece Leonardo Garibaldi, logo após um intenso ensaio. “É um espetáculo que andei a pensar durante dois anos, quando senti que ia chegar aos 30 e atingir a idade adulta. Como artista, quis descobrir uma identidade que fosse como que um paralelo à vida.”
Tendo como público-alvo os alunos do terceiro ciclo do ensino básico e ensinos secundário e superior, Last Call aborda muita da vivência juvenil, com especial ênfase para os dilemas da aceitação, o bullying escolar e a homofobia. Se o tom é muitas vezes grave e depressivo, o espetáculo tenta deixar muito presente que “não adianta alimentar a vitimização”. Embora Leonardo esteja triste porque deixou de ser jovem, “há que levantar os olhos e perceber o que há de bom à nossa volta.”
Esta produção do grupo Os Possessos está em cena, para o público em geral, até 6 de outubro, sempre às 19 horas. Em 2025, o espetáculo passa por Cascais e pelo Centro Cultural Gil Vicente, no Sardoal, terra natal de Leonardo Garibaldi.
Jorge Mangorrinha e Abel Soares da Rosa
Canções de Liberdade
Com o subtítulo A Política Cantada em Portugal e no Mundo (1964-1974), o presente livro, à semelhança dos discos de vinil, divide-se num Lado A e num Lado B. Na primeira parte, Jorge Mangorrinha produz uma ampla análise da produção musical e fonográfica deste período, culminando com uma abordagem do seu legado nos dias de hoje. Na segunda parte, Abel Soares da Rosa apresenta uma criteriosa seleção de 50 canções e 50 discos ilustrativos da temática em diversas culturas e diferentes géneros musicais. A opção pelo termo canções de liberdade, ao invés de outros mais comuns, como canções revolucionárias, políticas, de autor, de texto, de resistência ou de protesto, por exemplo, parte da busca de uma expressão que melhor possa definir “uma canção que perpassa diferentes géneros musicais. Não pertence apenas a um movimento intelectual, nem a uma expressão exclusivamente política”. Produto de uma investigação vasta e inédita que não se confina às geografias habituais, mas que se atreve a desbravar novos territórios como os Países de Leste, a Escandinávia, o Médio e o Extremo Oriente, a União Indiana, a Oceânia ou o Continente Africano, este é um livro para “ouvir” repetidas vezes: do Lado A e do Lado B. Caminho
Héctor Abad Faciolince
Salvo o meu coração, tudo está bem
O padre Luis Córdoba (o “Gordo”), amável e culto, necessita de um transplante cardíaco para sobreviver. Hospedado em casa de uma italiana, mãe de dois filhos, servida por uma mulata colombiana, aguarda um dador compatível. Obrigado a prescindir dos prazeres da cozinha, sujeito a uma rigorosa dieta, mantém a paixão pela música clássica e pelo cinema como forma de ligação à vida. Durante a longa espera, rende-se aos encantos da vida familiar e apaixona-se pelas duas mulheres: a italiana provoca-lhe um profundo amor espiritual; a colombiana, um vigoroso amor carnal. Sonha então, quando receber o novo coração, em mudar de vida, renunciar ao celibato e casar com as duas que “somadas representam o amor completo”. Este parece um tema algo improvável para um romance ambientado nas últimas décadas do seculo XX, na violenta e problemática cidade de Medellín. O narrador justifica-o com a pretensão de “estabelecer um contraste que servisse de parábola da vida colombiana. (…) Tínhamo-nos acostumado a viver num matadouro de sicários, ladrões, mafiosos, guerrilheiros, paramilitares, políticos corruptos, soldados e policias sem entranhas nem escrúpulos. (…) O que era verdadeiramente estranho, era a bondade, e o Gordo era um caso insólito e exemplar disso, de um homem bom no meio do terror e da maldade.” Alfaguara
Paul Valéry
O Governo da Máquina
Paul Valéry (1871-1945), um dos grandes intelectuais do século XX, amigo de Mallarmé e de Gide, foi ensaísta, filosofo e poeta – o último grande poeta simbolista. Um desgosto amoroso levou-o a abandonar a poesia e a dedicar-se ao estudo da matemática, da filosofia, da linguagem e da música, investigando aprofundadamente as ligações entre ciência e literatura. Incentivado por Gide, regressa à poesia e publica a partir de 1917 a sua melhor obra poética: La Jeune Parque (1917), Le Cimetière Marin e Album de Vers Anciens (1920) e Charmes (1922). “Das inteligências vivas, umas gastam-se a servir a máquina, outra a construí-la, outras ainda a planear ou prepara uma mais potente; uma última categoria de espíritos gasta-se a tentar escapar ao domínio da máquina”, escreveu Valéry em 1925. A pedido da publicação La Revue de France, Paul Valéry escreveu um artigo no qual expunha as suas reflexões sobre uma eventual crise da inteligência face à progressiva mecanização da sociedade. O ensaio O Governo da Máquina resulta dessa reflexão visionária que, um século depois, quando a revolução digital é já imparável e a inteligência artificial suscita um profundo debate ético e legal, mantém intacta a sua espantosa oportunidade. Orfeu Negro
Tove Ditlevsen
Os Rostos
Tove Ditlevsen, uma das vozes mais originais e importantes da literatura dinamarquesa, nasceu em Copenhaga e cresceu no bairro operário de Vesterbro. As experiências de infância, os quatro casamentos seguidos de divórcio, a tensão entre a vocação de escritora e os papéis de filha, esposa e mãe, a luta contra o abuso de álcool e drogas, os problemas de saúde mental e os vários internamentos em hospitais psiquiátricos, são temas recorrentes nos seus livros, que vão do romance ao conto, passando pela poesia e pelo género autobiográfico. Tove Ditlevsen acabaria por se suicidar em 1976, aos 58 anos. Em Os Rostos (1968), Lise, escritora de livros infantis, casada e mãe de três filhos, vê-se progressivamente dominada por terríveis assombrações em forma de vozes e de visões que lhe desestabilizam a vida quotidiana. Os rostos que a rodeiam, até aí familiares, surgem-lhe “sempre a alterar-se, como se ela os visse refletidos em águas agitadas”, “num número infinito de variações”, “como máscaras de carnaval feitas de um cartão que se rasgava e humedecia”. O romance reproduz admiravelmente as mudanças de perceção de Lise e, à medida que esta se sujeita aos tratamentos hospitalares e à medicação, desenvolve uma perturbante interrogação sobre o potencial efeito libertador da loucura. Dom Quixote
Victor Correia
Sexualidade e Erotismo na Bíblia Sagrada
“Há mandamentos sexuais na Bíblia, mas na prática quase todos esses mandamentos são quebrados. Heróis bíblicos como Abrão, Moisés, David, Sansão, entre muitos outros, violam os mandamentos dos livros do Êxodo, do Deuteronómio e do Levítico sobre sexualidade”, escreve Victor Correia, doutorado e Filosofia Política e Jurídica pela Universidade Sorbonne, em Paris. O autor acrescenta: “(…) a bíblia tem muitas e diferentes versões de ética sexual, contraditórias entre si”, salientando ainda: “(…) é um livro que foi escrito por seres humanos, com as suas fraquezas, os seus desejos, as suas visões e as suas formas de ver o mundo, condicionadas pelo seu tempo e pelo seu país (…)”. De facto, a Bíblia não é, como muitas vezes se pensa, um livro assexuado. Só no Livro do Genesis, por exemplo, existem cerca de trinta e cinco histórias com temas sexuais. Este livro oferece-nos uma ampla seleção de histórias sexuais vividas por patriarcas, profetas, reis de Israel, sacerdotes e outras grandes personagens da Bíblia, que envolvem poligamia, incesto, prostituição, adultério e homossexualidade. Uma pormenorizada investigação sobre a Bíblia que convida o leitor a descobrir um conjunto de histórias sobre sexo e erotismo quase desconhecidas, depois de séculos a serem camufladas pela Igreja. Guerra & Paz
Stephen King
Carrie
Há 50 anos, Stephen King começou a escrever um texto para uma revista masculina. Insatisfeito, atirou as páginas para o caixote do lixo. Mas, a sua mulher repescou-as, leu-as e convenceu-o a continuar: Carrie ganhou forma de livro e lançou a carreira do autor, vendendo milhões de exemplares e inspirando quatro filmes. A obra narra a história de isolamento de uma jovem subjugada por uma mãe dominadora e fanática religiosa, atormentada pelos colegas da secundária e humilhada na noite do baile de finalistas. Progressivamente, vai-se apercebendo de que possui singulares poderes telecinéticos, aos quais aprende a recorrer para se vingar dos que a maltratam. O relato, vibrante e original é narrado a várias vozes, incluindo a da protagonista, uma vizinha e uma colega de escola, e inclui artigos de jornal, entradas de dicionário e até um artigo científico. Esta edição especial do 50.º aniversário da publicação de Carrie conta com um prefácio de Margaret Atwood. A grande escritora canadense salienta que, mais do que o terror sobrenatural típico de King, na base deste livro “está sempre o verdadeiro terror: a pobreza, a negligência, a fome e o abuso demasiado reais que existem hoje na América.” Bertrand
Ed Conway
Mundo Material
Basta acompanhar a maioria da comunicação social mainstream para compreender que os temas que mais ocupam as consciências e os tempos de antena atuais centram-se principalmente nos conflitos sociais e políticos, na crise climática e na ideia de sustentabilidade e numa certa crença que a tecnologia avançada nos irá ajudar a ultrapassar muitos dos nossos problemas. Em Mundo Material, Ed Conway, editor de economia da Sky News, colunista do The Times e autor de vários livros, vem relembrar-nos, com um grande senso comum, que ‘’apesar de ouvirmos dizer que vivemos num mundo de desmaterialização crescente, que atribui cada vez mais valor a artigos intangíveis como apps, redes e serviços online, o mundo físico continua a ser o nosso sustentáculo.’’ E também como somos dependentes de materiais ‘‘triviais, enfadonhos e amiúde baratos’’ que o nosso planeta proporciona e que tomamos como garantidos. Esta desconstrução pragmática do mundo moderno, através duma análise profunda da relação da humanidade com um conjunto de materiais fundamentais, valeu a Mundo Material e ao seu autor a consagração de Livro do Ano e Livro de Ciência do Ano para órgãos de informação como o Times, Financial Times e The Economist. [Tomás Colares Pereira] Temas & Debates
Tiago Rebelo
O passado vem já a seguir
Maria Ana tem uma galeria de arte na Rua da Boavista. [onde a Agenda Cultural também tem a sua sede.] Casou muito cedo, com um homem 16 anos mais velho, hoje ministro da Administração Interna. Aos 32 anos, e a viver um casamento que era um tormento de prepotência e agressividade, Maria Ana entra pela primeira vez no bar em frente à sua galeria. Aí trava amizade com o dono do bar, Quinto, um italiano bastante discreto e pouco dado a aventuras, que se deixa cativar pela marchand d’art. Esta aparente acalmia sofre um revés quando Maria Ana começa a ser ameaçada por Vadim Sidorov, um oligarca russo com investimentos em Portugal e ligações a Putin, a quem foi atribuído um Visto Gold, num esquema pouco lícito que envolvia o seu marido, o irascível Pedro Macário. Mas não é só o ministro que tem algo do seu passado que precisa esconder a todo o custo, também Quinto, um homem de rigorosas rotinas e hábitos frugais, deixou para trás uma vida de violência e morte ligada à máfia calabresa, e é quando aparece numa foto num jornal ao lado de Maria Ana que tudo se precipita. Um thriller tenso que se passa a um ritmo alucinante, percorrendo locais emblemáticos da nossa cidade, como a Avenida da República, Campo de Ourique ou a Avenida António Augusto de Aguiar. [Sara Simões] ASA
Os diretores e programadores de cinco festivais de cinema, que se realizam no mês de outubro em Lisboa, revelam as principais novidades, convidados e, claro, os filmes que todos vão querer ver.

LAFF – Lisbon Arab Film Festival
1 a 5 outubro
Quando a franco-tunisina Saoussen Khalifa chegou a Portugal, há cinco anos, reparou que “havia muitas semelhanças e influências do mundo árabe em Portugal”, mas “havia pouca consciência destas ligações”. A necessidade de mostrar este cruzamento de culturas foi o ponto de partida para a realização do Lisbon Arab Film Festival.
Nesta primeira edição do evento procura-se promover o diálogo entre culturas e oferecer uma visão das sociedades árabes de hoje, contrariando ideias estereotipadas. Da programação, João Gonçalves, destaca o filme de abertura, Everybody Loves Touda, do franco-marroquino, Nabil Ayouch, que marcou presença no festival de Cannes e que foi escolhido como o candidato de Marrocos aos Óscares
Mas há mais: Bye bye Tiberias, de Lina Soualem, documentário focado na ocupação de Israel na Palestina, e o filme da sessão de encerramento, Inshallah a Boy, drama de Amjad Al Rasheed, filmado na Jordânia, são “imperdíveis”.

Festa do Cinema Francês
3 outubro a 30 novembro
A Festa do Cinema Francês celebra 25 anos. Kátia Adler, diretora desta mostra anual, afirma que “a Festa tem cada vez mais público” e nesse sentido, este ano pela primeira vez, “há cinco filmes em competição, todos antestreias, com o objetivo de conseguir ainda uma maior participação do público.”
Do vasto programa destacam-se duas novas secções: Rir à grande e à francesa, que apresenta filmes de comédia, porque como diz a diretora da festa “estamos a precisar de rir e de ir ao cinema”; e Uma Língua, Múltiplos Olhares, que exibe obras que resultam de coproduções franco-belgas. Kátia Adler salienta ainda um filme que a marcou muito pela sua cinematografia: O Sucessor, de Xavier Legrand, um thriller que se revela surpreendente e que é “uma pérola”.
Em novembro, ainda no âmbito desta edição da Festa, a Cinemateca Portuguesa apresenta uma retrospetiva integral da obra do cineasta Chris Marker (1921-2012).

Tribeca Festival Lisboa
18 e 19 de outubro
“Queremos que o festival seja uma celebração do melhor da cultura pop e do cruzamento entre o talento nacional e internacional. Para isso, teremos grandes filmes internacionais trazidos para Lisboa pela equipa da Tribeca Enterprises, mas também produções nacionais, dando palco aos storytellers e aos criativos do nosso país”. É assim que Mónica Serrano descreve o propósito da primeira edição do Tribeca Festival Lisboa, marca que nasceu em Nova Iorque e que chega agora a Lisboa.
O programa inclui ainda séries, podcasts, atuações musicais e conversas ao vivo com estrelas internacionais e nacionais. Os norte-americanos Whoopi Goldberg, Robert De Niro e Griffin Dunne, a estrela internacional Daniela Ruah, e os portugueses Ricardo Araújo Pereira e César Mourão, são algumas das personalidades presentes no evento.
Dos filmes a exibir destacam-se obras premiadas como Anora (vencedor da Palma de Ouro em Cannes), Griffin in Summer, In the Summers e Bob Trevino Likes It, e filmes portugueses como Podia Ter Esperado Por agosto, Azul e O Afinador de Silêncios.

Doclisboa – Festival Internacional de Cinema
17 a 27 outubro
A 22.ª edição do Doclisboa, a primeira sob direção da produtora mexicana Paula Astorga, apresenta um programa que promove o diálogo entre presente, passado e futuro, permitindo uma série de reflexões sobre o cinema atual. Estar à frente do Doc “é uma grande emoção e foi uma surpresa gratificante dirigir um festival que está muito bem posicionado internacionalmente e que é muito aguardado pelos lisboetas”, salienta Astorga.
Da programação, o programador Luca D’Introno destaca duas retrospetivas: uma dedicada ao cineasta mexicano Paul Leduc (1942-2020), que abre com o filme Reed – Mexico Insurgente, uma joia única descoberta na Cinemateca Portuguesa; e, outra, com curadoria de Jean-Pierre Rehm “que reflete sobre o modernismo a pensar no futuro, olhando para o passado”.
De salientar ainda os filmes de abertura e encerramento: Sempre, o mais recente trabalho de Luciana Fina, e O Dia Que Te Conheci, do cineasta brasileiro André Novais Oliveira.

Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival
31 outubro a 7 novembro
O cinema feito por mulheres oriundas de países do Mediterrâneo está de regresso naquela que é a 11.ª edição do Olhares do Mediterrâneo. O tema deste ano, Revolução e Quotidianos, procura, nas palavras de Silvia Di Marco, “vincar que a revolução não é um evento fechado no tempo, mas que continua e se renova. Por um lado, porque as transformações são necessárias, por outro, porque nenhum progresso é garantido”. Demonstrar que, como diria Natália Correia, “a cultura é que transforma as mentalidades” é outra ideia que o festival promove.
Neste sentido, destaca-se a estreia mundial de A Mulher que Morreu de Pé, de Rosa Coutinho Cabral, precisamente sobre Natália Correia, mulher que é figura incontornável na luta pela liberdade. Destaque também para o país convidado, a Palestina, que é homenageado com uma retrospetiva, na Cinemateca Portuguesa, dedicada a realizadoras da diáspora palestiniana. Nota final para o filme de abertura, que serve de mote à retrospetiva: The Teacher, da britânica-palestiniana, Farah Nabulsi.
50 anos de carreira é um número imponente…
É um número muito imponente e é interessantíssimo porque, quando era mais novo e via alguém comemorar 50 anos de qualquer coisa, achava completamente patético. Pensava sempre “coitado, estás com os pés para a cova, nem sei porque é que estás a comemorar. Vai lá dar uma voltinha ao jardim, jogar damas com os outros velhotes”. Foi sempre essa perceção que tive dos 50 anos de carreira e das pessoas de 70. Fui jovem numa altura em que 70 anos era geralmente o final de vida da maior parte das pessoas. O que nunca imaginei foi que, quando chegasse a esta realidade, ela fosse tão fresca e tão útil, como se de repente vivêssemos 200 anos e isto fosse só um primeiro ato de qualquer coisa que ainda se está a desenvolver.
Celebra a data com dois espetáculos no Campo Pequeno. Em que consistem?
A estrutura é muito simples, até porque não vou fazer nada de experimentalismo. Vou fazer o repertório que tenho feito ao longo destes anos todos e que foi evoluindo. O que faço é pegar nessas coisas, às quais junto as músicas habituais que me acompanharam pela carreira fora. O que vamos ter fora do comum é uma orquestra alargada, uma big band de 20 elementos, que é uma coisa imponente, e um layout audiovisual. É também muito ambicioso no sentido em que é diferente. Vai ser uma espécie de comício político, e não é por acaso que resolvemos investir tanto no espetáculo, que é tecnologicamente muito caro e a orquestra muito grande. É mais um ato de amor do que propriamente um negócio.
Os seus 50 anos de carreira cruzam-se também com os 50 anos do 25 de Abril. É uma feliz coincidência…
Eu nasci por causa do 25 de Abril, porque eu era para ter de sair do país. Na altura, havia a hipótese de optar pela nacionalidade alemã, e eu fi-lo porque o meu pai era alemão. A PIDE, como represália, retirava-nos a autorização de residência, por isso tinha de sair do país. Já estava inscrito numa escola de imagem e cinema de Munique, onde iria entrar precisamente nos finais de 1974. A minha primeira grande preocupação a seguir ao 25 de Abril foi cancelar a inscrição e o apartamento que ia alugar. Sou verdadeiramente um produto daquele momento.
A sua vida teria sido com certeza muito diferente se tivesse ido para Munique…
Muito diferente. Dava um belo exercício imaginar o que seria a minha vida. Ia ser boa, com certeza, porque eu adoro televisão e cinema e aquela é das melhores escolas, de onde saíram realizadores como Paul Verhoeven. Não tenho nenhuma dúvida que ia sair de lá um grande profissional da área, não como artista, mas como técnico.
Há algum momento da sua carreira de que se orgulhe mais?
Os momentos que me ficam são os da adrenalina completamente orgástica, aqueles em que a gente percebe que tem um sucesso na mão. Lembro-me que o primeiro orgasmo desse género que senti foi no Porto (onde vou atuar também com este espetáculo). Tinha começado a fazer o Sr. Feliz e Sr. Contente, com o Nicolau Breyner, em 1975. Percebíamos que estava a correr muito bem, que era um êxito, mas a nossa vida era, sobretudo, teatro e televisão, portanto, não tínhamos ainda tido um julgamento popular do acontecimento. Nesse ano, fomos contratados para uma apresentação no Palácio de Cristal. A concentração de pessoas e o histerismo foi de tal maneira, que tiveram de chamar a polícia de choque para nos tirar lá de dentro. O que senti não tem explicação, porque eu punha-me muito em causa. Sentia que tinha jeito, sabia o que queria fazer, mas não me sentia um grande talento. Quando, de repente, percebi que o sonho era possível, foi inacreditável. Depois voltei a sentir isso em 1977, com o êxito do Saca-Rolhas, que esteve no top nacional uma quantidade de semanas, lutando com monstros da altura, como o Marco Paulo ou o José Cid. Depois tive outro momento, absolutamente glorioso, quase indescritível, que foi o impacto avassalador tido pelo Tal Canal, em 1983. Uma coisa completamente unânime que me deixou de boca aberta. Sucederam-se outras alegrias, mas aí já sabia como era tê-las, portanto, já não foi tão espantoso.
Há alguma coisa de que se arrependa ou que teria feito de outra forma?
Para lhe explicar os arrependimentos, teria de juntar a esta entrevista uma adenda comprada à parte, do tamanho de uma lista telefónica [risos]. Todos os dias fazemos coisas de que nos arrependemos. Umas completamente insignificantes, outras que são completamente decisivas e que trouxeram dificuldades e chatices gigantescas e que podiam perfeitamente ser evitadas. A mesma coisa com as pessoas. Há pessoas que entram na nossa vida para complicar, inquinar, destruir. E o contrário também, só que as boas pessoas ficavam todas, não é? Limitava-me só a centrifugar as más pessoas [mais risos].

Das personagens todas que criou, houve alguma que tenha pensado que não ia funcionar e que, depois, tivesse sido um êxito estrondoso?
Houve uma que achei que ia ser uma coisa muito localizada, até porque tratava só de um único assunto, que era o José Esteves. Comecei a fazer na rádio, a pedido de um jornalista do Porto chamado António Tavares Teles. Isto começou talvez em 1980 ou 81, e eu tinha o sotaque do Porto muito presente porque o meu agente artístico era de lá e eu passava tanto tempo naquela cidade que ganhei o sotaque. Portanto, o boneco era muito verdadeiro, mas estava longe de imaginar que fosse um sucesso que se manteve até hoje, sobretudo através daquela cantiga Vamos lá Cambada. Depois houve outras coisas que tive a certeza que seriam êxitos totais e que desapareceram nos primeiros tempos. Mas, dessas já nem me lembro.
Há muitas personagens suas que ficaram para a história e cujas expressões as pessoas ainda hoje utilizam. Isso surpreende-o?
É verdade, é muito raro acontecer. Há mundialmente alguns casos, como os Monty Python ou o Benny Hill, mas contam-se pelos dedos… Não é nada comum. Isso é verdadeiramente um fenómeno. E isso é uma das coisas que me espantam mais do que me orgulham, devo dizer. Acho verdadeiramente notável quando oiço um miúdo de seis anos a dizer “eu é mais bolos”. Recentemente fiz um repost com 34 anos, do Felisberto Lalande, que não diz os ‘l’s’, e tenho milhões de putos a dizer que faziam aquilo já na escola. Isso é verdadeiramente notável!
Há ou não há limites para o humor?
Há. Não são é universais pois cada situação tem o seu limite. Para fazer um espetáculo ao lado do Santuário de Fátima no dia 15 de agosto (Dia da Nossa Senhora da Assunção), talvez seja interessante burilar as coisas muito agressivas que às duas da manhã numa Queima das Fitas são essenciais. Portanto, com certeza que há limites para o humor. E se formos jantar a casa de alguém e a decoração tiver elementos ridículos, não é a altura própria para fazer humor.
A destruição do cenário do concurso Roda da Sorte (1994) seria impensável nos dias de hoje. Tem saudades dessa liberdade?
Era impensável, mas há uma coisa de que nunca se fala, mas que é importante frisar. As peças que destruí eram de armazéns de velharias, ou seja, não destruí nada novo. Não quis ofender as pessoas destruindo coisas que elas gostariam de ter em casa e não podiam. Foi também uma aprendizagem, porque um dia, no [concurso] 1, 2, 3, resolvi fazer uma guerra de ovos com o público. O grande choque das pessoas foi ser numa altura onde parte das famílias não tinha dinheiro para comprar ovos. Portanto, não é obrigatório ter essas sensibilidades, mas pode perfeitamente meter-se essa equação no meio e não faz mal a ninguém…
Mas tem saudades de poder fazer essas loucuras sem se preocupar com o que as pessoas vão pensar?
Sinto-me tão livre hoje também, sabe? Uma pessoa quando tem 30 anos tem um tipo de energia e de convicção que depois não tem aos 40, e depois não tem aos 50. E, neste momento, este artista de 70 anos sente-se tão confortável e ao mesmo tempo tão livre. Estou há sete anos a fazer um programa na RTP que não tem qualquer interferência. Faço que quero, não preciso de mandar os textos para apreciação… Há maior privilégio que este? Vou até onde acho que devo e quero, portanto, sou um privilegiado nesse aspeto.
Em janeiro deste ano, recebeu a Medalha de Honra da Câmara Municipal de Lisboa. Que importância atribui a esse tipo de distinção?
Esta, por várias razões, é muito mais importante que os outros prémios todos. Há uns anos estava num conhecido restaurante de Lisboa e o Luís Campos Ferreira veio ter comigo e disse “está ali uma pessoa, o eurodeputado Carlos Moedas, que adorava conhecer-te”. Tinha ali um fã confesso do meu trabalho que se tornaria Presidente da Câmara de Lisboa. Quando esse fã me atribuiu a Medalha de Honra da cidade, foi muito mais do que um Presidente de Câmara a fazer um ato de justiça oficializado no momento. Era uma pessoa que estava a ter genuíno prazer em criar aquela situação e, portanto, ganhou tudo muito mais valor, até porque o voto tinha sido deliciosamente unânime. Mandei fazer uma caixinha muito bonita e lá está na parede, juntamente com a Grã Cruz da Ordem do Infante, a propósito dos 40 anos do Tal Canal, e outra maravilhosa que é a Medalha de Mérito do Governo, também espoletada por um fã que era ministro da Cultura, o Pedro Adão e Silva. São três momentos que culminaram com outra coisa extraordinária, que foi uma homenagem pela vida e carreira da Sociedade Portuguesa de Autores, o que também é muito interessante, porque uma das coisas de que me orgulho é de ser autor do meu material. Há uma parte que é escrita em colaboração com as Produções Fictícias – que nasceram por causa de mim – mas 80% do trabalho é meu.
É o maior humorista português. O que é que o faz rir a si?
Tenho sempre uma terrível dificuldade em responder a essa pergunta. Ainda voltando ao passado, há, dos grandes humoristas americanos e ingleses, dos anos 1950, 60, 70, 80, uma arte e uma riqueza que ainda hoje me espantam. Nomes como Lucille Ball, que fazia a Lucy Show, como o Benny Hill, ou os Monty Python, que para mim continuam a ser os maiores. Dos portugueses, não há uma única vez que eu não veja o António Silva e o Vasco Santana no seu auge, ou a deliciosa Maria Matos, que eu não fique babado e espantado. Com os contemporâneos não me rio por razões muito estranhas: estou muito mais preocupado em analisar o trabalho deles. Muitas vezes há piadas extraordinárias e coisas muito bem feitas e a minha reação é pensar, “olha que bem construído que isto foi”. Parece que não tenho capacidade para usufruir desse momento, estou sempre com o olhar técnico. Exceção feita a certos momentos do Ricardo Araújo Pereira a gozar com a atualidade, que me dão a mesma vontade de rir que ele me dava quando foi meu autor. Íamos juntos para a rádio, ele lia-me os textos e já na altura eu chorava a rir com ele. Ele é uma criatura especial.
Há quase cem anos, a 8 de julho de 1926, uma nova sala inaugurava no Parque Mayer tornando-se, com o Teatro Maria Vitória, o segundo edifício de espetáculos do recinto localizado nas traseiras do Palácio Lima Mayer (atual Consulado de Espanha em Lisboa). O Variedades, projetado pelo arquiteto José Urbano de Castro, abria portas com a revista Pó de Arroz, estrelada pelo muito “popular” Carlos Leal, pela “gentil divette” Annita Salambô e pelo então jovem ator e argumentista Vasco Santana.
O edifício atual está muito longe daquilo que seria na altura, uma vez que entre 1934 e 1940 foi sujeito a um conjunto de obras de melhoria e ampliação, sendo que as mais determinantes passaram pela substituição da cobertura em madeira por uma metálica e a criação de um grande balcão e geral. Até 1966, altura em que sofre um incêndio que destruiu a caixa de palco, o Variedades foi sendo ampliado e até modernizado, afirmando-se, a par dos outros teatros do Parque Mayer (o Maria Matos, o Capitólio e o ABC), um dos principais palcos da comédia e da revista à portuguesa.

Embora no início da década de 1990 tenha havido uma nova intervenção arquitetónica, sobretudo ao nível do palco, de modo a adaptá-lo às necessidades da televisão (Filipe La Féria ali gravou o programa Grande Noite para a RTP), o declínio do Parque Mayer e a perda de popularidade do teatro de revista ditou o encerramento do Variedades e a sua desativação.
Já neste século, a vontade de devolver à cidade o Parque Mayer (onde em ato de resistência já só o Teatro Maria Vitória se mantinha em funcionamento) tornou-se um desígnio de edilidades e lisboetas. Apesar de tantas conturbações, a maior parte delas dignas de inspirar quadros bem ácidos de teatro de revista, a Câmara Municipal de Lisboa conseguiu recuperar o Capitólio e, agora, o Variedades, voltando a colocar a outrora chamada “Broadway lisboeta” no mapa da oferta cultural da cidade.
Um teatro para todos os tipos de público
A reabilitação do Teatro Variedades tem a assinatura do arquiteto Manuel Aires Mateus e dota o espaço de “novas estruturas funcionais adequadas às necessidades dos recintos de espetáculos modernos “, como se pode ler na página oficial da Lisboa Cultura, empresa municipal que gere o “novo” teatro. Espaços como os do auditório, do palco e do foyer, foram mantidos, “limpando a construção de todos os elementos apósitos e em estado de conservação irrecuperável.”

Enquanto equipamento cultural, “o Teatro Variedades vai funcionar numa lógica de acolhimento, sendo o objetivo ter, sobretudo, espetáculos a fazer carreira até seis semanas, contrariando um pouco aquilo que se vem passando noutras instituições da cidade”, anuncia Joaquim René, diretor do Variedades, e também do “vizinho” Capitólio. “Queremos que companhias que estrearam os seus espetáculos numa sala, mas que tiveram poucos dias de apresentação, possam fazer aqui uma temporada mais extensa”, numa lógica semelhante à adotada, ainda no tempo da direção de Tiago Rodrigues, pelo Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II) com o Teatro Maria Matos, atualmente gerido pela Força de Produção.
E, por falar em TNDM II, o ano de 2025 do Variedades vai ser marcado por cinco produções do teatro atualmente dirigido por Pedro Penim. “Devido ao atraso nas obras do edifício do Rossio, o Nacional vai estar aqui, já em fevereiro, com A Farsa de Inês Pereira. Nos meses seguintes, passará por cá um Hamlet, coproduzido com o Teatro São João do Porto; o novo projeto do Marco Mendonça; e outros dois espetáculos que ainda não podemos anunciar”. Em jeito de curiosidade, René lembra que a relação entre o TNDM II e o Variedades não é nova: “quando o Nacional ardeu [1964], a Companhia [Rey Colaço-Robles Monteiro] chegou a estar aqui.”

Para além do acolhimento do TNDM II, o ano que vem trará o festival FIMFA e uma produção do Musical Theatre Lisbon, os Lisbon Players e a Companhia de Ópera do Castelo. Já em janeiro, Três é a conta que Deus fez, um espetáculo que junta em palco três históricos do Parque Mayer: Florbela Queiroz, Natalina José e António Calvário. “Será um ano muito representativo da programação heterogénea que se pretende para o Variedades, de modo a trazer públicos diversos, ao mesmo tempo que se procura honrar a memória do Parque Mayer trazendo-o, simultaneamente, para a contemporaneidade.”
O Elétrico a abrir e Rita Ribeiro e Jon Fosse a fechar 2024
Quando a 5 de outubro, o renovado Variedades abrir de novo as suas portas, caberá ao Teatro do Eléctrico e Ricardo Neves-Neves as honras de apresentar os dois espetáculos inaugurais, que cumprirão temporada em simultâneo. “Inaugurar um teatro é uma sensação boa, mas também faz muito medo. Somos nós que vamos testar tudo”, aponta o dramaturgo e encenador a meras duas semanas de estrear Entraria nesta sala e The Swimming Pool Party, dois espetáculos que partem de textos escritos há uns anos mas nunca encenados por Neves-Neves.

“Quando [a Lisboa Cultura] nos convidou tinha em vista uma comédia ou um musical. Com a ajuda da Sissi Martins e do Ruben Madureira, ainda procurei uma peça musical que se adequasse não só à dimensão do orçamento como do palco, mas não encontrei. Foi quando me lembrei destas duas que escrevi há uns anos e nunca encenei”, conta Neves-Neves, sublinhando a vontade de apresentar “duas comédias com música ao vivo”, sendo que uma, Entraria nesta sala, evoca a memória do teatro português e de quatro das suas maiores personalidades: António Silva, Beatriz Costa, Maria Matos e Vasco Santana.
Depois de um mês com o Teatro do Eléctrico – e, atenção, com uma exposição no foyer do teatro que reúne uma coleção de fotografias do Parque Mayer do crítico e cineasta Lauro António –, em novembro há o regresso de Rita Ribeiro aos palcos e dos Artistas Unidos ao centro da cidade, depois do encerramento do Teatro da Politécnica.
Logo a dia 6, estreia Rita, um espetáculo encenado por João Ascenso, com texto de Sandra José, onde Rita Ribeiro, a solo, revisita a sua vida e carreira de cinco décadas no teatro e no cinema. Mesmo no final do mês, os Artistas Unidos regressam a Jon Fosse, o autor norueguês galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 2023, com Vento Forte, espetáculo que entrará por dezembro e fecha o primeiro trimestre da nova vida do Teatro Variedades.
Benjamim decidiu criar a sua própria “marca” quando ficou sem editora para lançar a sua música. “Percebi que tinha de reativar o velho sonho de criar um selo discográfico, para poder lançar a minha música e gerir o meu catálogo. Também percebi que todos os meus amigos, bem como a maior parte das pessoas que fazem música hoje em dia, estão órfãs de estruturas que se dediquem a trabalhar e editar música. Vivemos todos isolados por detrás dos nossos perfis de internet e eu quis criar uma comunidade vibrante, humana”, explica o músico e produtor.
O nome – Discos Submarinos – foi inspirado no seu próprio estúdio, uma cave de 14 metros quadrados, e “brinca um bocado com esta ideia de sermos permanentemente artistas emergentes, mesmo quando já temos uma década de carreira, ou de sermos velhos demais para ser promessa. O nosso lema é ‘Discos Submarinos a emergir.’”

Até à data, o catálogo inclui editados cinco álbuns e um EP: o primeiro EP de Velhote do Carmo, Páginas Amarelas (2022); o primeiro álbum de originais de Margarida Campelo, Supermarket Joy (2023); o terceiro registo de estúdio de Beatriz Pessoa, Prazer Prazer; Bolero (2024), de Tape Junk & Pedro Branco; Vigia (2024), de Tipo, e o sexto álbum de originais de Benjamim, As Berlengas (2024). Apesar de ser uma estrutura pequena, a editora pretende, no futuro, ter “muito mais música, muitos mais discos”, com foco “no talento, dedicação, amizade e risco”, garante Benjamim.
Para celebrar estes dois anos, a 21 de setembro, os artistas que fazem parte do catálogo reúnem-se num dia de concertos no Teatro Taborda, num evento chamado Festival Discos Submarinos. Benjamim, Beatriz Pessoa, Margarida Campelo, Tipo, Tape Junk & Pedro Branco, Velhote do Carmo e Rita Cortezão (uma das mais recentes aquisições da editora, com um álbum a sair no próximo ano) dividem-se por dois palcos: o Jardim do Café da Garagem, com uma das melhores vistas sobre a cidade de Lisboa, e a Sala Principal do Teatro Taborda.

A partir das cinco da tarde, haverá “música, energia e amor, num dos mais bonitos espaços culturais da cidade, prontos para fechar o verão em grande estilo”. O objetivo deste festival, segundo o produtor, é “mostrar às pessoas que ouvem a nossa música aquilo que andámos a fazer nestes últimos dois anos, bem como aquilo em que andamos a trabalhar para o futuro, como é o caso da Rita Cortezão ou as canções novas de Velhote do Carmo”.
Algures entre o final da escola de cinema e a primeira curta-metragem que realizou (Entretanto, 1999), fez uma viagem a Macau de que resultou o projeto Macau Farm, levado a cabo por outra pessoa. Essa viagem está na origem do seu interesse pelo continente asiático, explorado agora abundantemente em Grand Tour?
Quando saí da escola de cinema não tinha grandes perspetivas sobre o que havia de fazer à vida, porque tinha tirado o curso de produção e era péssimo a organizar tarefas de produção em cinema, inclusive servir cafés. Ninguém me queria para trabalhar. Naquele momento, um colega da escola de cinema tinha um projeto para filmar em Macau e chamou-me para ser uma espécie de assistente de realização. Passei em Macau entre um e dois meses, e foi o primeiro contacto que tive com a Ásia. Lá, descobri que como em todos os lugares, não haver uma Macau, mas muitas Macaus diferentes, com circuitos distintos. Se elevarmos isto ao território asiático (e não filmei por toda a Ásia; filmei sete países), as diferenças são gigantescas. Dou sempre o exemplo da maneira como filmámos no Japão e como filmámos nas Filipinas. Nas Filipinas, o produtor local perguntou-me se conhecia o conceito de “shoot and run”, porque não se obtinham autorizações nenhumas, e é assim que muitos realizadores fazem filmes nas Filipinas, o que tem a ver com a cultura do país. No Japão, lembro-me da vez em que ia filmar num templo e cheguei ao parque de estacionamento, estava a nevar, vi qualquer coisa que me interessava e pedi para colocarem ali a câmara para filmar. O chefe de produção que nos acompanhava disse que não podia filmar o parque de estacionamento, porque não tinha sido isso o combinado. Por aqui se podem ver as diferenças culturais que existem na Ásia.
Em que circunstâncias descobriu o livro de viagens de Somerset Maugham The Gentleman in the Parlour, e o que resta dele no seu filme?
O livro está editado em português pela Tinta da China e tem por título Um Gentleman na Ásia. Relatos de viagens e de viajantes interessam-me enquanto género literário. Comprei o livro para lazer, numa altura em que estava prestes a casar-me com a Maureen. O livro é constituído por descrições de locais, de rituais, em alguns dos países onde estive, e inclui relatos do que o Somerset Maugham viu, mas também de encontros. O autor encontra alguém e descreve o que aconteceu ou uma história que lhe contaram. Às tantas há duas páginas em que diz que conheceu um britânico que estava em Mandalai, na Birmânia, que lhe contou a história do seu casamento, que é basicamente o ponto de partida deste filme. Ele tinha uma noiva inglesa em Londres com quem, por uma série de contratempos, nunca tinha casado. Então, ela apanha um barco e chega à Birmânia e ele entra em pânico e foge. E ela vai enviando telegramas para os locais por onde ele passa fugindo. Basicamente trata-se de uma anedota de duas páginas sobre homens e mulheres, e duvido mesmo da existência real desse indivíduo.

Quando anunciaram em Cannes a distinção que lhe coube de melhor realizador, chegou a pensar que poderia obter ainda o Grand Prix ou a Palma de Ouro, ou ficou inteiramente preenchido com a alegria do momento?
Fiquei mesmo muito contente com o prémio. É um prémio incrível ser reconhecido como melhor realizador no maior festival do mundo. Para além disso, sabia que não poderia receber mais nenhum prémio, porque segundo os regulamentos alguns prémios não são acumuláveis.
Quando se está num festival a promover um filme, que espaço há para ver outros filmes?
Depende do período em que fico no festival. Eu e a Filipa Reis, produtora deste filme e do próximo, decidimos ir o tempo todo e dedicar a primeira parte do festival a fazer encontros relativos ao filme seguinte [Selvajaria, adaptação do livro Os Sertões, do autor brasileiro Euclides da Cunha], o que me deixou algum espaço para ver filmes. Mas, a partir da véspera da estreia do Grand Tour não consegui ver absolutamente mais nada, porque estive a lidar com as entrevistas e tudo o que diz respeito à receção ao filme.
Edward, o diplomata protagonista em Grand Tour, escuta de um monge japonês a seguinte frase: “Abandone-se ao mundo Mr. Abbot, verá que será por ele recompensado.” A frase traduz de algum modo a sua prática do cinema?
O cinema faz-se com o imaginário e faz-se com o mundo. Uma coisa não exclui a outra. Por isso tanto me aborrecem os filmes da Marvel ou do Senhor dos Anéis, porque criam uma bolha onde não existe realidade, uma bolha de fantasia, como também me aborreço quando o cinema rejeita de forma férrea e dogmática qualquer janela para o mundo da imaginação. No caso do Grand Tour isso é levado a um extremo: existe nele um constante vai vem entre o real e o imaginário, sendo que o real por vezes parece mais fantasioso que a ficção.
Procurou jogar com o conceito de found footage no sentido de criar a sensação de que as imagens documentais pudessem pertencer ao tempo histórico do filme (os anos 1910) e ao que as personagens observaram em viagem?
Na larga maioria das imagens filmadas na Ásia , estamos no mesmo sítio em que se passa a ação do filme. Mas, num outro tempo, o de agora. Quando se utilizam imagens de arquivo elas servem para dar um contexto extraficcional daquele tempo. São imagens do passado. Aqui era inverter essa lógica e trabalhar com imagens do presente. A ficção passa-se num tempo e o que vemos são imagens do futuro. O filme é, simultaneamente, feito de descontinuidade e continuidade. Depende muito de cada espectador valorizar mais a continuidade ou a descontinuidade. Há pessoas que integram completamente na ficção as imagens que fizemos na Ásia, e outras que sentem a natureza diferente das imagens de estúdio e das imagens captadas no mundo real. A escolha do preto-e-branco em 16mm, que dá esse lado com mais grão, era uma forma de lidar com materiais tão distintos e criar uma maior homogeneidade. Os choques seriam muito mais violentos utilizando a cor.
Grand Tour conta a história de um homem em fuga da mulher com quem deveria casar. De que é que foge na rodagem de um filme? Da segurança e da rotina do previsível, do pré-estabelecido?
Num certo sentido estou a fugir do meu quotidiano. Começo a perceber, filme após filme, que fazer um filme é partir para outro sítio. A ideia do realizador que faz um filme em casa, como o Alain Cavalier, pode dar grandes resultados, mas não me parece que seja para mim. Preciso de partir à aventura. Não tenho problemas em filmar num território pequeno – no Diários de Otsoga estávamos fechados numa quinta, mas isso também era partir para outro sítio. No caso de Grand Tour isso é bastante assumido e radical. Não fui para tão longe e para tantos locais num só filme, sendo que paradoxalmente também estive confinado num estúdio. O estúdio é um sítio onde se recria o mundo, um mundo que não existe, mas eu precisava de fazer a viagem e de estar presente naqueles lugares.

Os cineastas de que se sente mais próximo coincidem com os filmes de que mais gosta? Pode dar-nos exemplos desta convergência ou divergência?
Se gosto dos filmes é porque me sinto próximo do olhar do realizador. Para mim não há distinção. Aquilo que vejo num filme tem uma relação com o olhar de alguém, com o seu pensamento artístico, cinematográfico…
A última questão está reservada para o que quiser lembrar do crítico e programador Augusto M. Seabra recentemente desaparecido.
O Augusto foi uma figura central da crítica e da cinefilia em Portugal. Teve o grande mérito de se interessar por um cinema contemporâneo, numa altura em que as coisas não eram tão divulgadas por cá. Foi sempre um interlocutor contemporâneo desse cinema. O exemplo máximo será o cinema asiático dos anos 1980. Era alguém muito curioso. Chegámos a trabalhar juntos no [semanário] Já onde nos conhecemos um pouco melhor. Tinha um temperamento bem específico e havia períodos em que eu, e muita gente que conheço, ficávamos distantes. Os períodos de reaproximação eram um clássico nas relações do Augusto Seabra. Penso que se perdeu um dos melhores pensadores de cinema que viveram em Portugal.
O desafio de encenar Telhados de Vidro (Skylight, no original) partiu de Diogo Infante que, enquanto diretor artístico do Teatro da Trindade INATEL, “enviou vários textos” a Marco Medeiros no sentido de ambos avançarem com um novo projeto criativo, depois de colaborações bem sucedidas em Ricardo III e O diário de Anne Frank.
“Entre eles estava a peça de David Hare, na qual, quando a li, não me revi”, confessa o encenador. Contudo, numa segunda leitura, Medeiros percebeu haver ali “muita coisa” que lhe interessava, “muita matéria que importa debater na sociedade”, ou não fosse a peça “sobre a essência humana”, e não só sobre a relação amorosa tumultuosa entre um homem e uma mulher.
Embora escrita em 1995, ainda na ressaca da longa vigência de Margaret Thatcher enquanto primeira ministra britânica, Telhados de Vidro mantém-se uma peça extremamente atual, mesmo quando assume um traço mais politizado. Porque, para além de não corresponder às convenções do drama romântico ao qual o grande público está habituado, o texto de Hare transforma o reencontro entre os dois amantes numa batalha ideológica entre o pragmatismo e a frieza liberal do empresário bem-sucedido e a sensibilidade social de uma professora destacada numa escola dos arrabaldes da grande cidade.
Uma reflexão sobre a culpa
“Ao fugir a códigos, barreiras e regras estabelecidas”, a peça de Hare vai revelando camadas que subtilmente se vão destapando. E é nesta complexidade do relacionamento entre dois amantes que o autor acaba por propor uma grande reflexão sobre a expiação da culpa.
Telhados de Vidro passa-se ao longo de uma noite, no apartamento suburbano e mal aquecido de Clara (Benedita Pereira). Ali, a professora começa por receber a visita inesperada de Eduardo (Tomás Taborda), o filho adolescente de Tomás (Diogo Infante), um importante empresário da restauração para quem Clara trabalhou no passado e, ir-se-á revelar um pouco mais tarde, com quem manteve uma intensa relação amorosa.
A visita do jovem mostra, porém, uma forte cumplicidade entre ambos, uma vez que Clara foi, durante anos, aperfilhada pela família, uma cuidadora de Eduardo enquanto criança e uma amiga de Alice, a mulher de Tomás. Desvenda-se, portanto, a rutura com Tomás causada pelo sentimento insustentável de culpa que se abate, a dado momento, sobre Clara.
Depois de Eduardo a deixar e ter anunciado que a mãe falecera há mais de um ano com uma doença oncológica, a professora é de novo surpreendida, desta vez pela visita de Tomás. O reencontro do qual tanto fugiu está prestes a acontecer e a mostrar como nunca é fácil lidar com as pontas mal resolvidas do passado.
Entre o confronto e a inevitabilidade do amor e do desejo, este reencontro coloca-os perante o modo como cada um lidou com a culpa. O aparentemente intocável Tomás submerso na mais profunda das infelicidades e Clara entregue a uma vida quase sacrificial, onde se trocou o conforto do privilégio por uma existência quase ascetista.
Com tradução de Ana Sampaio e a participação em cena do pianista Jorge A. Silva, Telhados de Vidro estreia a 12 de setembro, e permanece em cena até 17 de novembro na Sala Carmen Dolores do Teatro da Trindade.
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