A Livraria Lisboa Cultura, que agora abre portas no coração da Baixa Pombalina, lado a lado com os emblemáticos Tabacaria Mónaco e Café Nicola, tem como objetivo sublinhar “a importância que o livro tem na política cultural da cidade”. Desenvolvido em colaboração pela Direção Municipal de Cultura da Câmara Municipal de Lisboa e a Lisboa Cultura/EGEAC, este projeto municipal procurará ser uma “âncora para o conhecimento e descoberta da cidade e amplificação do perfil de Lisboa”.
Contando com um catálogo com mais de 1500 títulos de edição ou coedição municipal, a oferta aborda temáticas muito variadas, tendo sempre Lisboa como mote. Aos títulos com chancela municipal somam-se outros, de variados editores, sempre com foco na cidade.
Para além dos livros, mas sempre com eles como ponto de partida, a nova Livraria Lisboa Cultura vai disponibilizar regularmente um programa de conversas, apresentações e outras atividades que visem a promoção cultural da cidade. Para o dia de inauguração está planeada uma conversa a propósito do catálogo da livraria (a partir das 18 horas) e, antes, um passeio guiado intitulado Rossio Literário, onde serão sublinhadas as referências literárias daquela que é uma das praças mais nobres da cidade (pelas 16 horas).
A Livraria Lisboa Cultura está aberta ao público, de segunda a sábado, entre as 10 e as 19 horas.
Não é fácil soletrar o seu nome, mas não terá sido por essa dificuldade de o dizer, seja em que língua for, que Clitemnestra nunca tenha merecido uma tragédia em nome próprio, como as filhas Ifigénia e Electra, ou desencadeado (pelo menos diretamente) uma guerra tão famosa e determinante como a bela irmã, Helena. Embora sem o seu nome inscrito pelos grandes dramaturgos da Antiguidade nas capas dos livros, Clitemnestra é uma personagem central nas duas primeiras peças da Oresteia de Ésquilo, ou não fosse ela imortalizada na cultura ocidental (com tudo o que essa visão tem de patriarcal) como a mulher infiel que matou Agamémnon, o rei e comandante das tropas gregas que venceu a guerra de Troia.
Sendo Clitemnestra muito mais complexa, e até mais controversa do que isto, importa incidir nova luz sobre aquela que é das personagens femininas mais marcantes da tradição trágica ocidental. Afinal, a esposa que trai e mata o marido foi também uma mãe que assistiu impotente ao sacrifício por vontade divina da sua própria filha, Ifigénia, às mãos do pai.
Por isso, nas próximas noites, no palco mais antigo do país – o Teatro Romano de Lisboa -, as atrizes e cantoras Ana Marta Kaufmann, Patrícia Modesto e Sofia Leão, dirigidas por Claudio Hochman, dão corpo ao mito e vestem a máscara destas e de várias dezenas de personagens que o teatro clássico imortalizou. Tudo para contar a história de Clitemnestra sem retirar pinga de tragédia a esta vida atribulada e sofrida, mas infundindo-lhe uma irresistível dose de humor e música a cappella.

“O nosso desafio foi contar em pouco mais de uma hora a história de Clitemnestra, desde o nascimento até à morte às mãos de Orestes, seu próprio filho”, partilha o encenador. Para construir a dramaturgia do espetáculo, Hochman baseou-se, sobretudo, em Ifigénia [em Áulis] de Eurípedes, Agamémnon e Coéforas de Ésquilo, embora a personagem e as suas múltiplas e contraditórias visões estejam presentes em vários outros textos, destacando-se, a exemplo, a Odisseia, de Homero, ou a peça Electra, de Sófocles.
Contando com três atrizes cantoras, “não só muito diferentes fisicamente, mas com formações distintas – uma da área da ópera, outra do teatro musical e outra ainda da música contemporânea – que, em conjunto com Afonso Cardoso, encontraram as melodias certas para os textos do coro” essenciais ao desenrolar da ação, Clitemnestra é um verdadeiro desfile de grandes personagens da dramaturgia clássica. Com máscaras assinadas por Carlota Blanc, as intérpretes compõem largas dezenas de personagens que fazem parte do imaginário da cultura ocidental sem que o espectador jamais perca o fio à meada.
E sobre Clitemnestra, acredita Claudio Hochman que este espetáculo não pretende defini-la perante o público. “Aquilo que quero é apenas contar a história. Contudo, diria apenas que Clitemnestra é uma mulher que não chora, que quando tem de amar, ama e quando tem de matar, mata.”
Como já vem sendo habitual nos últimos anos, durante o mês de julho, o teatro regressa ao Teatro Romano, situado no bairro da Sé. Sempre com o intuito de divulgar o teatro clássico, Clitemnestra insere-se na programação do Museu de Lisboa – Teatro Romano, estando em cena de quarta a sábado às 21 horas até final do mês.
Da escuta e da investigação em bairros como a Ameixoeira, as Galinheiras, a Cruz Vermelha, Chelas e Rego nasceram percursos e performances onde moradores participam, com a sua história individual, na construção de uma memória coletiva. E, pelo caminho, revelam-se talentos.
Teatro do Vestido
Tozé Cunha, Joana Craveiro, Francisco Madureira, Tânia Guerreiro e Estêvão Antunes
O Teatro do Vestido, coletivo teatral fundado em 2001, sob direção artística de Joana Craveiro apresenta, no Bairro das Amendoeiras, uma visita que é guiada pelas memórias dos movimentos de moradores na freguesia de Marvila.
Sobre a criação do percurso poético Museu dos Moradores, Joana Craveiro afirma: “foi uma sorte ter, como guias no terreno, pessoas que, para além de nascerem e viverem em Marvila toda a vida, são também guardiãs de uma memória histórica, daquela que fica marcada no corpo e se transmite por via oral. Outra grande ajuda foi o acompanhamento que nos deu a historiadora Margarida Reis e Silva, conhecedora deste território, que nos conduziu numa visita imersiva.”
A história política que levou à fundação do bairro, a luta pelo direito à habitação, sobretudo no período de 1974 e 1975, foi o ponto de partida para este trabalho: “o movimento de moradores que reivindicaram casas ao invés das barracas em que viviam; a torrente de ocupações que acabou por configurar um dos momentos mais marcantes da luta pelo direito à habitação no início da revolução portuguesa, são a memória resgatada pelo percurso Museu dos Moradores inscrevendo-a no formato de ‘museu vivo’, que temos vindo a desenvolver no Teatro do Vestido nos últimos 15 anos.” Para o coletivo teatral esta é a única forma de se compreender o presente.
As visitas realizam-se no âmbito do programa O Meu Bairro a Pé nos dias 19 e 20 de julho.
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Kriativu
Nuno Varela
Nuno Varela cresceu em Chelas. O hip-hop foi a sua fonte de inspiração e a rampa de lançamento para a criatividade, para o empreendedorismo e para o sucesso. Viajou, conheceu outras realidades, sentiu-se grato, realizado e, como tal, quis partilhar e dar a outros a fórmula que o trouxe até aqui. Tirar jovens das ruas, pô-los a fazer coisas construtivas tem sido o intuito dos muitos projetos sociais em que está envolvido. Foi com este espírito que fundou a associação Rimas ao Minuto e o Kriativu, um espaço comunitário aberto a quem queira desenvolver o lado artístico.
A convite da Câmara Municipal de Lisboa, a associação aceitou pensar em diferentes percursos que dessem a conhecer a zona de Chelas, integrada na freguesia de Marvila. “A nossa associação está profundamente ligada à cultura urbana e ao movimento hip-hop. Gostaríamos que estas visitas refletissem essa ligação, destacando espaços com significado e impacto real para a comunidade.”
Todos os percursos, quer na curadoria artística, social ou gastronómica, contaram com ajuda dos moradores. Para Nuno, “é importante demonstrar tudo o que é feito neste território, daí serem três percursos em que participam artistas locais, grupos comunitários ligados à gastronomia e várias associações que fazem trabalho social na zona. Foi bastante fácil criar estes percursos porque há uma grande riqueza cultural e também social.”
Os percursos realizam-se no âmbito do programa O Meu Bairro a Pé nos dias 12 e 13 de julho; 21 e 28 de setembro e 11 e 12 de outubro
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Teatro Meia Volta e Depois à Esquerda Quando Eu Disser
Cláudia Gaiolas e Sara Duarte
Cláudia Gaiolas, Sara Duarte e Luís Godinho integram o Teatro Meia Volta e Depois à Esquerda Quando Eu Disser, uma associação cultural que tem como missão dinamizar atividades no âmbito das artes performativas. Vários meses antes da criação do espetáculo Entra-se para viver, visitaram todas as semanas o Centro de Dia do Centro Social da Musgueira. Foi neste local e com os utentes do centro que desenvolveram o projeto.
“Interessavam-nos as experiências de vida e o quotidiano do bairro. Estas pessoas frequentam o centro há 40 anos, a média de idades está entre os 85 e os 95 anos. Ouvimos as suas histórias sobre a vivência do bairro, o como e o porquê de terem vindo para aqui viver.” Por outro lado, “não nos queríamos focar só na memória, mas também construir uma ideia de futuro. Apesar da idade avançada há uma vontade de se continuar a viver, daí o título Entra-se para viver.”
O espetáculo tem a particularidade de ser construído através de melodias do cancioneiro tradicional português, adaptado com novas letras que refletem as memórias destas pessoas. “Procurámos uma ressignificação das vivências e uma contextualização do espaço que é hoje a Alta de Lisboa. O espetáculo tenta criar uma reflexão através destes utentes que construíram aqui as suas casas e mudaram para sempre a geografia da cidade.”
A performance foi apresentada no âmbito do programa O Meu Bairro a Pé entre maio e junho
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Lobby Teatro
Joana Brito Silva, Eupremio Scarpa e Mariana Fonseca
Mariana Fonseca e Joana Brito Silva fundaram, em 2021, a Lobby Teatro, uma companhia de teatro profissional que promove um trabalho de cariz comunitário e social.
Desafiadas pela Câmara Municipal de Lisboa a criarem vários percursos na zona da Ameixoeira e da Charneca, juntaram-se a Eupremio Scarpa, educador italiano que vive em Portugal desde 2001 e que tem desenvolvido trabalho nos bairros sociais. Para a criação de um percurso encenado nas Galinheiras e dois itinerários de memórias pela Ameixoeira, Joana Brito Silva afirma que “o Lobby foi mais responsável por uma curadoria artística e o Eupremio pelo desenho do percurso em si.”
Para Eupremio, que já morou no bairro, “foi muito interessante contactar antigos vizinhos para contarem as suas histórias. Por outro lado, já tinha trabalhado com a Quinta Alegre em projetos similares, nas Galinheiras. Foi esta a base para a criação de três percursos por Galinheiras, Charneca e Ameixoeira Antiga. O objetivo era dar a conhecer não só a história e os moradores do bairro, mas revelar também o lado artístico das pessoas que ali vivem.” Ao longo dos vários percursos os moradores dão a conhecer as suas carreiras artísticas e é criada uma narrativa onde, em determinado momento, é apresentada a sua arte.
Os percursos foram apresentados no âmbito do programa O Meu Bairro a Pé entre maio e novembro de 2024
Lugar Comum
Rafael Barreto
Ator, bailarino, coreógrafo e professor, Rafael Barreto cresceu naquele que é hoje o Bairro da Cruz Vermelha. É nesta zona do Lumiar que desenvolve trabalho comunitário no Centro de Artes e Formação (CAF) e também através da associação de artes performativas Lugar Comum, que fundou em 2017.
Quando recebeu o convite para criar um percurso encenado para o programa O Meu Bairro a Pé, da Câmara Municipal de Lisboa, foi buscar muita da informação que tinha recolhido junto da comunidade para uma trilogia de peças que realizou na época do realojamento dos moradores.
“Quando criei O segredo dos sacos e os seus caminhos! recuperei muitos dos textos e da pesquisa que tinha há alguns anos e fiz uma nova ligação, tão necessária, que diz respeito a um mundo feminino de mulheres cabo-verdianas, portuguesas, indianas, ciganas, que carregam famílias inteiras. Estas mulheres carregam sacos. Vêm do Lumiar a pé com sacos, todos os dias.” Foi esta a inspiração que juntou intérpretes profissionais e pessoas da comunidade para criar o percurso.
Para além do lado histórico do bairro quis também abordar a questão que mais o inquietava “a incapacidade de se viver em comunidade, em harmonia com a diferença. Empatia e tolerância: é sobre isto que é este trabalho. Mas é também sobre uma justiça artística, porque na peça as coisas resolvem-se e na vida real nem sempre é assim.”
O segredo dos sacos e os seus caminhos! foi apresentado no âmbito do programa O Meu Bairro a Pé entre julho e outubro de 2024
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Trimagisto
Carlos Marques
O Bairro do Rego é palco para um espetáculo-percurso intitulado Vendedor de Recordações. O projeto, em colaboração com o Avenidas – Um Teatro em Cada Bairro, é uma produção da cooperativa cultural Trimagisto que, sob a direção artística de Carlos Marques, tem desenvolvido trabalho com enfoque na memória coletiva e no património imaterial.
Vendedor de Recordações percorre ruas, lojas fechadas ou abandonadas, revelando o lado afetivo do comércio tradicional. “Interessou-me pensar no comércio como artéria viva da cidade, onde as pessoas acabam por se conhecer e saber umas das outras. Essa forma de contacto na comunidade, através desse comércio, quase desapareceu”, afirma o ator e encenador. Com este projeto ambiciona-se dar visibilidade ao bairro e às histórias da comunidade. Através da recolha de testemunhos de antigos lojistas, de utentes do Centro de Dia e de conversas com anónimos na rua, construiu-se um espetáculo que “é todo ficcionado a partir de memórias verdadeiras, mas que amplia as histórias reais, enfatizando determinados aspetos para captar atenção.”
Este lado da efabulação da memória para contar uma história é um dos aspetos que fascinam Carlos Marques. “Como criador é para mim muito empolgante perceber como uma pessoa comum, e os idosos são peritos nesta fórmula, consegue tão bem ficcionar/embelezar a sua história para que prenda a atenção.”
O percurso realiza-se nos dias 4, 5, 6, 11, 12 e 13 de julho
Pedro Homem de Mello
Poemas 1964-1979
Cobrindo os anos entre 1964 e 1979, este segundo volume de poemas de Pedro Homem de Mello vem encerrar a publicação da obra completa do autor. A sua poesia, única e inconfundível, é marcada, como salientou José Régio, pela “sinceridade profunda do seu interesse pelo folclore vivo e do seu amor pelo povo” (“Povo! Povo! Eu te pertenço / Deste-me alturas de incenso”, imortalizado por Amália Rodrigues). Centrada na contradição entre “corpo e alma”, explora o tema do desejo (frequentemente homoerótico), contrapondo a experiência da fugacidade do prazer à permanência do remorso e à noção de culpa e de pecado. “Um pagão com o hábito de ser católico”, lhe chamou David Mourão-Ferreira acrescentando, ao associar o seu universo poético à pintura de Leonardo: “Há em Pedro Homem de Mello, muito de certos artistas do Renascimento, pagãos por natureza, – presos no entanto à letra (que não ao espírito) da religião estabelecida”. A edição ficou a cargo de Luís Manuel Gaspar, com um posfácio incindindo sobre os dois volumes de Fernando Cabral Martins. Eis o tão aguardado regresso do poeta de Eu Hei-de Voltar um Dia, que escreveu: (…) E cumprindo uma promessa, / O Poeta que fui eu / Em cada verso regressa / Do país onde morreu?” LAE Assírio & Alvim
Ernest Hemingway
O Jardim do Paraíso
Ernest Hemingway (1899-1961) nasceu em Oak Park, a pouca distância do local onde Frank Loyd Wright começou a construir os seus projetos. Na realidade, a revolução que o escritor promoveu na prosa em tudo se assemelha à que o famoso arquiteto empreendera nas suas “casas da pradaria”: redução da forma ao essencial e despojamento de toda a ornamentação. O Jardim do Paraíso é um romance póstumo, publicado pela primeira vez em 1986. Hemingway terá trabalhado nele por mais de uma década, sem nunca o ter dado por terminado. David e Catherine Bourne, apesar de parecem irmão e irmã, são um jovem casal americano. Em lua-de-mel no sul de França, entregam-se a uma série de jogos eróticos que exploram essa semelhança, enquanto David, aspirante a escritor, se dedica a redigir o manuscrito de um “romance africano”. Conhecem então a bela Marita e entre os três estabelece-se um relacionamento complexo que se adensa à medida que a escrita do livro se aproxima penosamente da conclusão. Uma obra ímpar no universo do autor, que explora com ousadia e elegância os temas do triângulo amoroso, da fluidez de género e da fusão de homem e mulher numa mesma entidade. Foi um dos livros de referência para o artista português Julião Sarmento. LAE Livros do Brasil
Samanta Schweblin
O Bom Mal
Samanta Schweblin nasceu em Buenos Aires em 1978 e vive em Berlim desde 2012. Vencedora de prémios importantes, como o Juan Rulfo e Casa de las Américas, é autora dos volumes de contos Pássaros na Boca e Sete Casas Vazias, e do romance Distância de Segurança, que, assim como Kentukis, foi finalista do International Man Booker Prize. A revista Granta inclui-a na lista dos 22 melhores escritores de língua espanhola com menos de 35 anos. O título da presente coletânea de contos, O Bom Mal, é profundamente revelador do universo literário da autora que explora o território do ambíguo, da estranheza, da inquietação, do fantástico e até do terror. Como escreveu o crítico do Expresso, José Mário Silva, Samanta Schweblin “insiste em rasgar o tecido do quotidiano com as lâminas da estranheza e do desajuste”. Curiosamente, estes seis contos têm todos origem na vida real, inspirados em pessoas, animais, factos ou acontecimentos que Samanta conheceu ou testemunhou. Sobre a narrativa William à Janela, declara: “aconteceu verdadeiramente. Talvez seja o conto mais autobiográfico que escrevi, e talvez também por isso seja melhor não dizer mais nada.” LAE Elsinore
Julian Barnes
Mudar de Ideias
“Alguns de nós temos convicções fortes fracamente sustentadas, outros têm opiniões fracas fortemente sustentadas. Sempre presumi que os liberais como eu têm opiniões moderadas moderadamente sustentadas. Mas não tenho a certeza de que continue a ser esse o caso. Quando agora pedem a minha opinião sobre um assunto público qualquer, a tentação que me assalta é replicar: ‘Bom, na República Benigna de Barnes…’ Neste breve conjunto de ensaios e palestras cujos temas são Memórias, Palavras, Política, Livros, Idade e Tempo, nunca saímos em boa verdade dessa “República Benigna de Barnes”, onde o escritor, com recurso a histórias da sua vida e da de outros, vai dando conta daquilo em que as suas ideias se mantiveram inalteradas (sobretudo no uso rigoroso das palavras e nos valores sociais e civilizacionais a que a política devia corresponder), ou em que houve mudança de opinião (nomeadamente sob a influência da memória dinâmica e nunca estável, e na apreciação de determinados escritores). Terminamos a leitura deste livrinho ligeiro e divertido com uma ideia benigna sobre a pessoa do autor. São textos que geram empatia e proximidade, onde apenas uma pessoa discursa, mas em que a ilusão da conversa acontece. RG Quetzal
Paulo José Miranda
Máquinas de Ficção
Paulo José Miranda evoca a tradição de “textos acerca de textos” referindo como influência maior e mais antiga a de Pseudo-Dioníso que se fez passar por Dionísio o Aeropagita, um ateniense que se teria convertido ao cristianismo após escutar as palavras de São Paulo. Pseudo-Dioníso não só inventou um autor que teria vivido 400 anos antes dele, como se referiu a livros que teria escrito e que nunca apareceram. Livros que cita mais de uma vez. Para além disso, “parece usar as citações de livros que não escreveu para construir aqueles que escreveu”. A propósito, Paulo José Miranda conclui; “A pós-modernidade surgiu algures no Médio Oriente entre os séculos V e VI”. Ora, Máquinas de Ficção é, justamente uma invulgar recolha de textos sobre textos. Originalmente publicados no jornal Hoje Macau, convidam o leitor, de forma provocatória, a explorar resenhas de livros que nunca foram escritos — “mas que talvez devessem existir”. Cada texto é uma porta aberta para um universo literário alternativo, onde a crítica se torna criação. Mantendo o jogo com o leitor, Paulo José Miranda cita um excerto de um suposto ensaio de Hélder Macedo, autor que muito admira: “No universo não há lado de fora e lado de dentro, tudo é lado de dentro. E assim acontece no romance. (…) Tal como no universo, no romance tudo é intertextualidade.” LAE Caminho
Fernanda Cachão
O Estado Novo em 101 Objetos
A jornalista Fernanda Cachão lança uma obra, resultante de uma pesquisa de cerca de cinco anos, onde reúne uma seleção de 101 objetos que representam como se vivia antes do 25 de abril de 1974. Esta iconografia de objetos e documentos ilustra, muitas vezes melhor do que palavras, a ideologia que, com firmeza e com tato calculado, dominou Portugal durante 48 anos. Para as novas gerações será, porventura, com alguma surpresa que realizarão que em tempos era preciso licença para usar isqueiro, ter autorização do marido para sair do país e tantas outras condicionantes impostas ‘a bem da nação’. O livro pode ser lido abrindo as páginas ao acaso, ao sabor da curiosidade, para saber um aspeto do regime e o seu enquadramento, pessoal e público. Ficam-se a conhecer ou recordar aspetos curiosos e pessoais como as alcunhas de Salazar: ‘o Botas’, por ter sido fotografado numa cena bucólica, em Almourol, com António Ferro, mostrando as solas das botas esburacadas, uma prova da sua apregoada frugalidade (ainda que normalmente usasse botas de canos alto de boa pelica); ou ‘o Esteves’, por serem constantes as notícias que informavam ‘esteve ontem em visita o Sr. Presidente do Conselho…’. Em suma, trata-se de um compêndio ilustrado do que não convém esquecer. TCP Lua de Papel
Inês Lampreia
No tempo dos super-heróis
É o segundo livro de Inês Lampreia, que tem publicado textos de crónica, ficção e prosa poética nos últimos anos. No tempo dos super-heróis reúne 12 contos e é a um deles que vai buscar o título. No posfácio, afirma o poeta e ensaísta João Rasteiro: “Mais do que uma escrita feminista, julgo estarmos perante uma escrita feminina, comprometida com a contenda por uma sociedade mais justa”. Tendo sobretudo mulheres como protagonistas, mas não reivindicando nenhuma causa, a autora deixa-as subentendidas nas várias histórias que nos conta, passadas desde os tempos das nossas avós e bisavós aos dias de hoje. Cada conto vale por si, no entanto, avançando na leitura, vamos percebendo que se ligam uns aos outros e que, todos juntos, criam um retrato de Portugal no último século. Inês Lampreia usa uma escrita tão descomplicada e “da terra” como as histórias que imaginou. Evoca vidas duras, seja na pobreza ou na solidão, seja na crueza dos campos alentejanos ou na alienação dos dias em Lisboa – cada uma no seu contexto, vidas impregnadas de infelicidade, algumas ainda com réstias de esperança, outras nem isso. Porque, se ali existe uma avó que se refugia nas nuvens ou uma mãe que voa atrás do canto dos rouxinóis, parece que hoje a poesia se foi. GL Urutau
Afonso Cruz
O vício dos livros II
“Há aqueles que não podem imaginar um mundo sem pássaros; Há aqueles que não podem imaginar um mundo sem água; Ao que me refere, sou incapaz de imaginar um mundo sem livros”. É com esta frase do argentino Jorge Luis Borges que Afonso Cruz inicia O vício dos livros II. Depois de, em abril de 2021, ter lançado O vício dos livros, o autor regressa com mais histórias, reflexões e curiosidades para aqueles que não podem viver sem a literatura. Sempre a pensar no leitor e na recorrente questão de como incentivar hábitos de leitura, este volume reúne cerca de 40 textos, alguns autobiográficos, sobre o processo de escrita e sobre a capacidade de a poesia dar vida a tudo aquilo que é objeto da sua arte, dando a conhecer histórias de autores como Eduíno de Jesus, Lídia Jorge, Marguerite Duras, Rainer Maria Rilke ou Raul Brandão, entre outros. A paixão pelos livros é transversal a todos os textos, como se pode também constatar nas pinturas alusivas ao ato de ler, de artistas como Diego Rivera, Matisse, Picasso ou Matisse, escolhidas para ilustrar a presente edição. Refere Afonso Cruz: “os livros só alcançam sucesso através do murmúrio”. Aceite, pois, o nosso murmúrio. SS Companhia das Letras
Louisa Yousfi
Em Nome do Bárbaro
“Mas o que será que perde o bárbaro que a civilização arrastou na sua corrida para o progresso humano, alimentando-o generosamente com as riquezas culturais de que tanto se orgulham os impérios (…)?” Esta é a questão-chave à qual o presente manifesto estético e político sobre a condição dos descendentes da imigração pós-colonial, procura responder. De autoria de Louisa Yousfi, jornalista, crítica literária e escritora, filha da imigração argelina em França e uma das vozes centrais do pensamento decolonial, aqui se expõem as armadilhas e a violência das políticas de integração e mostra como a assimilação pode equivaler à perda de identidade, língua, religião e cultura. Elogiado por figuras como Françoise Vergès e Annie Ernaux, este ensaio revela a estranheza da condição pós-colonial: “bárbaros” no coração do Império, que habitam os seus subúrbios, falam a sua língua, dominam perfeitamente os seus códigos, mas que têm sérias contas a ajustar com ele. É em nome deles que fala, dos que se atrevem a “fitar o nosso sol da Barbárie de frente”, como escreveu o autor argelino Mohammed Dib, citado em epígrafe. Uma espantosa viagem à alteridade radical, desmistificando, sem concessões, as narrativas do ocidente e as suas falhas morais. LAE Orfeu Negro
Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa
As Cartas do Boom
No romance Adão no Éden, Carlos Fuentes escreve: “(…) a mimese é inevitável na literatura e, no fim, escolher bem os mentores é uma demonstração de talento”. Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa são os quatro principais romancistas do chamado “Boom Latino Americano”. As cartas trocadas entre eles revelam as múltiplas e valiosas correspondências que se estabeleceram entre as suas obras no auge deste quarteto. Citando os editores do presente volume, as cartas documentam “um momento em que os criadores pareciam ter começado a escrever menos sozinhos para ‘tocar’ em conjunto, como parte integral de uma mesma literatura”. Mentores uns dos outros, de certa forma, como confessa o escritor mexicano: “(…) sei que cada um de nós está muito consciente do que os outros estão a fazer”. Este intercâmbio permite um acesso sem precedentes às suas relações pessoais e coletivas, e desvenda de forma privilegiada a literatura e a política latino-americanas no contexto histórico entre os anos de 1959 e 1975. Testemunha igualmente a relação sincera de amizade e respeito que os unia e que põe definitivamente em causa a máxima de Carlos Fuentes, expressa no citado romance: “Lê os escritores, mas não os conheças pessoalmente.” LAE Dom Quixote
Imagine-se “um novo concurso de televisão que pretende revolucionar o prime time português, com segmentos de teoria antirracista, cultura pop luso-africana e trivia colonial”. Uma ideia concebida e executada por um homem branco, privilegiado, que se considera bastante woke e que quer denunciar o racismo. “O espetáculo é um exercício de imaginação sobre como um programa destes tem tudo para correr mal”, diz Marco Mendonça, responsável pelo texto e direção de Reparations, Baby!, peça que estará no Teatro Variedades de 9 a 27 de julho.
Em cena, Ana Tang, Bernardo de Lacerda, Danilo da Matta, June João, Márcia Mendonça, Stela e Vera Cruz dão corpo a esta história sobre a facilidade com que se cai na “instrumentalização das pessoas negras, que são marginalizadas e silenciadas constantemente”. “Existe uma hipocrisia institucional, porque se confunde dar visibilidade com dar voz. Aparecer na televisão não é sinónimo de ser dono das suas narrativas. O entretenimento esvazia os debates importantes e perpetua-se um discurso redutor sobre as pessoas negras”, sublinha o encenador.
Reparations, Baby! quer lançar esse desafio: “Está na hora de mudar o panorama das pessoas no lugar de decisão e no lugar da escrita. Será que a sociedade está mesmo interessada em mudar? A verdade é que o racismo estrutural consegue sobreviver mesmo dentro de espaços que dizem combatê-lo”, aponta.
Antes do espetáculo chegar ao Variedades, Marco Mendonça faz-nos quatro sugestões culturais que ajudam a descobrir caminhos nesta reflexão.
O Ancoradouro do Tempo, de Sol de Carvalho
Em exibição
Estreou-se na semana passada, um dia depois da data em que se celebra a independência de Moçambique. Apesar de ainda não ter visto o filme de Sol de Carvalho, Marco Mendonça faz desta a sua primeira sugestão. “Nasci em Moçambique e é sempre bom saber que existem criações moçambicanas a chegar às salas de cinema portuguesas.” O filme é uma adaptação do livro A Varanda do Frangipani, de Mia Couto, que o ator e encenador confessa também não ter lido ainda. Uma intriga policial, rodada na Fortaleza da Ilha de Moçambique, que conta a história de um jovem inspetor da polícia que, chamado a investigar um crime, se depara com a declaração de culpa de todas as personagens.
Tramas Coloniais
Podcast
Um podcast brasileiro, disponível online, que, em sete episódios, fala sobre a história do colonialismo em África. “São encontros e conversas com intelectuais, sociólogos e outros, que produzem discurso e conhecimento sobre o passado colonial e as cicatrizes que deixou, tentando propor caminhos possíveis para a reparação dos danos causados”, explica Marco Mendonça que já há mais tempo tinha ouvido um episódio mas que agora, para a pesquisa de Reparations, Baby!, mergulhou a fundo nas reflexões que ali se fazem. “Recomendo bastante.”
Coro em Rememória de um Voo, de Julianknxx
CAM – Centro de Arte Moderna da Fundação C. Gulbenkian
Até 30 junho
A exposição termina já nesta segunda-feira, dia 30, e Marco Mendonça sabe que esta é uma sugestão de última hora. “Pode ser que ainda haja pessoas que a consigam ver…” Incluindo o ator, que tem andado ocupado com a estreia do espetáculo e ainda não conseguiu ir. “Dizem-me muito bem e acredito que valha muito a pena.” A mostra resulta das colaborações criativas que Julianknxx desenvolveu em nove cidades europeias, onde recolheu “histórias não contadas da diáspora africana”. Associada à exposição, está a instalação sonora Síncopes, da investigadora e socióloga Cristina Roldão, da produtora, designer de som, compositora e cantora XEXA, e da encenadora e atriz Zia Soares – um trabalho inspirado em “mulheres negras que atravessaram a cidade de Lisboa no início do século XX”, que Marco quer muito ver.
Uma História Africana da África – Desde o início da humanidade até à independência, de Zeinab Badawi
Editorial Presença
É o livro que Marco Mendonça está a ler neste momento e recomenda-o. “Estou a gostar muito, a achar fascinante”, diz. “Dá uma perspetiva geral da história do continente, que quero depois aprofundar. Para mim, está a ser uma aprendizagem muito rica. Parece-me um livro importante, pensando na questão da reparação histórica”, afirma, sublinhando, desde logo, a provocação do título. “Recusa uma visão eurocêntrica do que foi a História de África nos séculos passados.”
Este ano, a zona ganhou novo fôlego com a chegada dos novíssimos MACAM, Pavilhão Julião Sarmento e o recém-inaugurado Espaço C, que se juntam ao já emblemático conjunto formado pelo MAC/CCB, MAAT e a Galeria do Torreão Nascente. De fácil acesso a partir do centro de Lisboa, sempre com o Tejo como pano de fundo, este eixo estimulante convida à descoberta de um dos núcleos culturais mais dinâmicos da cidade.
MAC/CCB – Museu de Arte Contemporânea
Inaugurado a 27 de outubro de 2023, o MAC/CCB, que sucede ao antigo Museu Coleção Berardo, quer promover o diálogo entre a arte moderna e contemporânea, a arquitetura e as artes performativas. O museu, considerado um dos principais polos culturais de Lisboa, alberga importantes coleções de arte contemporânea, como a Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE), a Coleção Teixeira de Freitas, a Coleção Holma/Ellipse e a Coleção Berardo.
Com duas exposições permanentes – Uma deriva atlântica. As artes do século XX a partir da Coleção Berardo e Objeto, Corpo e Espaço. A revisão dos géneros artísticos a partir da década de 1960 –, que reúnem obras de nomes como Modigliani, Amadeo de Souza-Cardoso, Marcel Duchamp, Lourdes Castro, Piet Mondrian, Pablo Picasso, Andy Warhol, Helena Almeida, Wifredo Lam, René Magritte, Max Ernst ou Salvador Dalí, o MAC/CCB apresenta, neste momento, três exposições temporárias: Experiências do Mundo, que fala, sobretudo, da arte como experiência na sua capacidade crítica, reveladora e poética de pensar o mundo; Chantal Akerman. Travelling, que traça o percurso singular da cineasta, escritora e artista belga, e Cartazes sem Censura | 25 de Abril e a Revolução do «Verão Quente», com peças que são testemunhos visuais de um período de transformação política e social, resgatados dos muros e paredes onde foram originalmente afixados e preservados numa pasta de desenhos durante cinco décadas.
MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia
Abriu em 2016 e rapidamente se tornou uma das instituições culturais mais inovadoras de Lisboa e paragem obrigatória para quem deseja explorar as interseções entre arte, arquitetura e tecnologia. Integrando dois edifícios distintos: a histórica Central Tejo e o moderno edifício projetado pela arquiteta britânica Amanda Levete, conhecido como MAAT Gallery – caracterizado por uma fachada ondulada revestida de cerâmica branca, projetada para refletir a luz do Tejo e criar uma interação harmoniosa com a paisagem urbana -, o museu dedica-se à promoção do discurso crítico e da prática criativa.
Além de exposições temporárias e permanentes, a programação inclui ainda uma agenda diversificada de eventos, como conversas, conferências, performances e workshops, que incentivam o pensamento crítico e o diálogo internacional. A Fábrica da Eletricidade, a mostra permanente, apresenta maquinaria original através da qual se conta a história desta antiga fábrica, bem como a evolução da eletricidade até às energias renováveis. De momento, o MAAT conta com quatro exposições temporárias: Jeff Wall – Time Stands Still. Fotografias, 1980–2023; 15.ª edição do Prémio Novos Artistas Fundação EDP; Miriam Cahn – O que nos olha; e Lápis de pintar dias cinzentos: Obras da Coleção de Arte Fundação EDP.
Galeria do Torreão Nascente da Cordoaria Nacional
Parte integrante do conjunto das Galerias Municipais de Lisboa, que reúne cinco espaços em diferentes zonas da cidade, o Torreão Nascente situa-se na histórica Cordoaria Nacional, à beira-rio, e afirma-se como um espaço de valor histórico e patrimonial, enquadrado numa das primeiras áreas industrializadas de Lisboa. Este espaço expositivo destaca-se pela arquitetura pombalina tardia e pela programação arrojada, que reflete a diversidade e a riqueza da arte contemporânea.
Desde 2003, a Galeria do Torreão Nascente tem sido palco de exposições de artistas consagrados e emergentes, nacionais e internacionais. A programação abrange diversas linguagens artísticas, incluindo pintura, escultura, fotografia, vídeo e instalação. Uma livraria instalada no local disponibiliza o conjunto de edições relacionadas com os projetos expositivos das Galerias Municipais de Lisboa.
MACAM – Museu de Arte Contemporâneo Armando Martins
Nascido da vontade do empresário Armando Martins de mostrar a sua coleção pessoal de arte, o MACAM junta, no mesmo espaço, um museu e um hotel de cinco estrelas, um conceito inovador e o primeiro do género, tanto em Portugal como na Europa. Instalado no histórico Palácio Condes da Ribeira Grande, que remonta ao início do século XVIII, na Rua da Junqueira, o MACAM é uma das adições mais inovadoras à cena cultural de Lisboa.
Descrito como A Casa das Coleções Privadas, o museu acolhe, além da coleção do seu fundador – uma das mais relevantes do país, iniciada em 1974 e que inclui mais de 600 obras de arte moderna e contemporânea, nacionais e internacionais, desde o final do século XIX até à atualidade -, coleções de outros colecionadores privados. A par de exposições permanentes e temporárias, o MACAM oferece também um programa cultural diversificado. Destaque para a capela restaurada, transformada em bar e palco de artes performativas, e para as obras site-specific de artistas como José Pedro Croft, Carlos Aires e Angela Bulloch.
Pavilhão Julião Sarmento
Inaugurou no mês passado aquele que é um centro de arte dedicado à coleção privada do artista e colecionador português Julião Sarmento (1948–2021), iniciada em 1967 e composta por mais de mil obras, incluindo pinturas, esculturas, vídeos, instalações e objetos. De referir que apenas cinco por cento das peças foram adquiridas; as restantes resultam de trocas ou ofertas de outros artistas e colecionadores. Localizado na Avenida da Índia, em Belém, o edifício municipal, antigo armazém de alimentos presumivelmente construído no final do século XIX, foi adaptado para servir como centro de arte contemporânea, tendo o projeto arquitetónico sido concebido pelo arquiteto João Luís Carrilho da Graça, a pedido do próprio artista.
Sob a direção artística de Isabel Carlos, o Pavilhão Julião Sarmento propõe uma programação interdisciplinar que vai além das exposições tradicionais, incorporando cinema, literatura, música, moda e outras formas de expressão artística. O objetivo é criar um centro de arte vivo, orientado para a experimentação, a produção e o cruzamento de conhecimentos artísticos, refletindo o espírito transversal que caracterizou a vida e a obra de Sarmento. O Pavilhão abriu com a exposição Take 1, em homenagem à diversidade de expressões artísticas que sempre o atraíram, sendo o cinema uma das principais.
Espaço C – Coleção Arte Contemporânea Lisboa Cultura
Recém-inaugurado, este novo espaço vai receber diferentes exposições com base na Coleção de Arte Contemporânea da Câmara Municipal de Lisboa (CML), que já conta com mais de 200 peças e cerca de 130 artistas representados. WHO WHERE / QUEM ONDE, a primeira destas exposições temporárias em torno e a partir da coleção, apresenta cerca de 50 peças de 30 artistas, como Ângela Ferreira, António Bolota, Diogo Evangelista, Eduardo Batarda, Fernanda Fragateiro, Francisco Tropa, Gabriel Abrantes, Jorge Queiroz, Jorge Molder, Luísa Cunha, Paulo Brighenti, Rui Chafes, Rui Toscano e Vasco Araújo. Mostrando tanto as aquisições de obras de arte realizadas pelo município para a sua coleção em 2024, como as adquiridas em anos anteriores, a exposição revela a amplitude e diversidade conceptual e formal desta coleção de arte contemporânea.
O Espaço C e as obras que o irão habitar, de diferentes modos e formulações ao longo dos próximos tempos, reafirma a vontade da CML de continuar a constituir e desenvolver a sua coleção, com a perspetiva de, no futuro, integrar outros autores e ampliar a representatividade dos que a compõem. Além do apoio ao tecido artístico contemporâneo, a coleção da CML constitui-se também como um incentivo ao colecionismo. Tornar esta coleção acessível vai permitir a criação de uma memória intergeracional; contribuir para transmitir a experiência vivida por uma geração para a outra, relembrar o nosso presente, as lutas, as resistências, as liberdades, as éticas, que devem fazer parte de todos os futuros, e sobreviver.
O escritor George Orwell disse que aos 50 anos todos temos a cara que merecemos. Em que idade um bailarino tem o corpo que merece?
Não existe uma verdade universal. Depende do próprio bailarino, da pessoa em si e do seu corpo. Depende sobretudo daquilo que ele faz: se está numa companhia de repertório e precisa de fazer clássico e contemporâneo; ou se está numa companhia de autor, onde o coreógrafo trabalha com o que o bailarino possa dar. Tenho bailarinos com 45, 46 anos que estão no auge da sua carreira. É diferente trabalhares sobre as tuas capacidades ou sobre as capacidades dos outros. O bailarino pode estar junto de um coreógrafo que trabalha sobre a própria linguagem do bailarino, sobre a técnica que possui e sobre o seu estado adulto, a sua maturidade e universo criativo; ou então esse coreógrafo está só a trabalhar sobre o seu próprio universo criativo, e quer corpos (intérpretes também) ágeis, com energia, jovens, para fazer as suas peças. São realidades completamente distintas.
Foi impelida para este espetáculo, O Salvado, em resposta ao conjunto de efemérides – 70 anos de idade, 50 anos na dança como profissional e 30 anos da sua companhia – ou é apenas uma coincidência?
Não é uma coincidência, mas, digamos, um pretexto. Se olharmos para o meu percurso, os meus solos distanciam-se uns dos outros cerca de dez anos. Fiz o meu último solo em 2013 [A Sagração da Primavera], já passou muito tempo. É uma necessidade que vai crescendo; algo que sinto que preciso de fazer: ter de me confrontar comigo mesma. E, ao mesmo tempo, o receio deste corpo, porque me divido na intérprete e na coreógrafa. Que linguagem esta mulher de 70 anos tem no seu corpo que possa, de alguma forma, dialogar com a sua cabeça?
O que se pretende salvar e do quê nesta coreografia, na qual da direção à interpretação é a única protagonista?
Em fevereiro de 2024 fui pela primeira vez para o estúdio um bocadinho a zero. Não queria fazer uma retrospetiva de todo o meu trabalho. Não queria falar das memórias, mas do que é esta mulher e muitas mulheres que têm 70 anos, muitas delas postas de parte. Entrevistei mulheres da minha idade para perceber aonde situar o meu corpo e a minha cabeça. Fiz seis residências artísticas ao longo do ano de 2024 que foram muito importantes (uma delas em Inglaterra). Aos poucos, fui descobrindo pequenos gestos, pequenos textos, pequenas músicas, coisas na altura que me estavam a tocar, não a preocupar. A partir da quinta residência soube que queria fazer um espetáculo sobre essas residências. Sobre aquela viagem solitária comigo própria. Percebi que tinha de fazer uma “topografia” do tempo: um papel de 10 metros onde está tudo o que fui fazendo ao longo dessas residências. Tanto imagens como texto (que é todo meu e escrevi-o em várias línguas). O espetáculo é aquilo que se salvou daquelas residências.
No podcast A Beleza das Pequenas Coisas, gravado o ano passado, sugere que nesta nova criação pode surgir nua em palco. A nudez não é um elemento comum no seu trabalho que, no entanto, tem sempre muito corpo, erotismo e paixão. Porquê, eventualmente, a nudez desta vez?
Isso teve a ver com um período da minha vida, há cerca de um ano, onde de repente senti que estava mais à vontade com a minha nudez. É preciso não esquecer que um bailarino aos 4 anos já tem um espelho à frente. Na minha companhia os estúdios não têm espelhos, mas vivi toda a minha vida com espelhos e a necessidade da correção do corpo que nunca está bem. O corpo de um bailarino é sempre um corpo em correção. Não fujo à regra dos bailarinos que não gostam dos seus corpos. E com o envelhecimento ainda muito mais. O envelhecimento pode dar-se de um dia para o outro, mas a maior parte das vezes é algo que vai acontecendo. Sempre que via mais uma ruga ou uma prega, um pneu ou mais qualquer outra coisa [risos], achava que iria habituar-me a isso, e finalmente pensei que era uma mais-valia. Esse tempo a passar no meu corpo e o modo como posso o partilhar com as outras pessoas.
As referências do cinema, da música e da literatura, que em alguns momentos inspiraram a criação dos seus trabalhos, foram-se mantendo com o tempo, ou sempre houve outras que se lhes acrescentaram?
Sou influenciada por muita coisa, e há a inspiração que vem de um olhar. Sobretudo quando me proponho criar algo, de repente, esse meu instinto fica muito mais aguçado, como num predador, e qualquer coisa me pode inspirar. Tanto pode ser uma senhora a passar na rua como o filme de um grande realizador. Não faço distinção; deixo entrar. Vejo também muitas séries como a maioria das pessoas. Há pouco tempo vi Hannibal [Bryan Fuller, 2013-2015] com Mads Mikkelsen e tudo aquilo é tão maravilhoso, como quadros o tempo inteiro. Tem imagens espetaculares. Sei que estava a ver a série e pensei que precisava de ter uns cornos pequeninos no espetáculo. Tudo por causa dos cornos enormes do veado em Hannibal. Como se vê, não sou só influenciada por grandes realizadores…
Diz no documentário sobre si, realizado por Cristina Ferreira Gomes: “o que me põe feliz é ver que aquilo que me fere, depois está ali escarrapachado no palco”. Conseguiria fazer uma peça sobre a alegria ou a felicidade?
Sim. Por exemplo este solo tem esse bem-estar, essa alegria. O que de todo não me interessa é fazer algo de kitsch sobre o amor, a felicidade, e só. Isso pode ser a “cama” como no Deer Hunter [O Caçador, 1978, de Michael Cimino], em que nos dão a “cama” daquele casamento para a eternidade, maravilhoso; e em seguida a cena da roleta-russa que nos deixa imediatamente atónitos. É a mesma coisa num espetáculo. Podes fazer uma “cama” onde pareça que tudo corre bem, para surpreender depois o público que não está preparado para levar um “soco no estômago”. Esses contrastes são coisas que me interessam: nos meus espetáculos e naqueles que vejo feitos por outras pessoas. Pelo sentido de humor, pela delicadeza, pela ternura que depois se desvanecem numa violência enorme.
Alguma vez passou pela sensação que pode ser descrita como bloqueio do coreógrafo? Como se desbloqueia?
O bloqueio, que não chamaria de “bloqueio do coreógrafo”, é uma situação diária. Estamos sempre colocados perante aquilo que fizemos e se o que foi feito está bem. Se vale a pena. Acabei de coreografar o solo e já estou com dúvidas se era isto o que queria fazer. São as dúvidas de qualquer artista, não apenas do coreógrafo. São questões que fazem parte da vida: será isto que quero fazer, e desta forma? Não digo que seja um questionamento diário, porque teria um peso demasiado grande, mas é recorrente.
É importante para si que o espectador consiga discernir um fio narrativo na sequência de acontecimentos em palco?
Nenhum! [riso] Não me preocupa se aquilo que as pessoas entendem ou acompanham corresponde ao que está na minha cabeça. Procuro, aliás, uma possibilidade de abertura ao que cada pessoa traz do seu passado, das suas vivências ou experiências. Isso permite que veja a mesma coisa de modo completamente diferente da pessoa ao lado. Quanto mais aberta for a peça, mais pessoas podem percebê-la – com linhas narrativas ou não; com pequenas histórias ou sem histórias. A arte do espetáculo é mesmo essa: pôr cada pessoa do público a criar o seu próprio espetáculo.
Quando José Sasportes comparou o seu trabalho com o de Pina Bausch suscitou-lhe algum tipo de angústia da influência? A morte em 2009 da coreógrafa alemã foi mais uma prova de que ninguém dura para sempre, mas a obra dela continuará a ser dançada. Que relação mantém hoje com o legado do Tanztheater Wuppertal?
Não conhecia a Pina Bausch quando o Sasportes disse isso. Era muito novinha na altura e fui até ver o que era o expressionismo alemão. Depois, quando a conheci passei por sensações muito diferentes: “que bom!” Ou… “não vou coreografar mais! Está tudo ali, é isto que queria fazer.” Mas, ao termo-nos conhecido, percebemos o quanto tínhamos em comum (para além do aniversário, já que a Pina nasceu dois ou três dias antes de mim), como vivências da infância e adolescência. Aquela senhora era um génio. Não posso equiparar-me com ela. E, certamente que não sou a única pessoa no planeta a ter sido influenciada por ela. Do Pedro e Inês [2003], peça que me é muito cara, e que fiz para a Companhia Nacional de Bailado, disseram ser um plágio do Vollmond [Pina Bausch, 2006], feito três anos depois. Afinal, talvez tenha sido ela que me plagiou a mim [risos].
Que sensação lhe dão os prémios e condecorações? Recorda algum que tenha sido mais especial para si?
Alguns têm mais peso porque saem um bocadinho da nossa casa. De Portugal. Caso do prémio de Osaca [1º Prémio do Concurso de Dança de Osaka-Japão (1988)], que não estava nada à espera (nem sequer fui lá), e do prémio da TimeOut [Prémio da melhor coreografia da revista londrina Time-Out (1993)]. Esse último teve uma dimensão muito grande, a Lady Di acabou por me convidar para a reabertura do Teatro Savoy, sendo ela também madrinha do English National Ballet (ENB), e fiz essa peça [The seven silences of Salome] para o ENB. As administrações da Gulbenkian e do Banco de Portugal estiveram em Londres para a reposição. Ao mesmo tempo, todos os prémios são bonitos. Gosto de sentir que pensam e requalificam o meu trabalho; que sentem ter qualidade para o mencionar como algo maior.
São mais de 50 nomes de diferentes nacionalidades, numa ampla diversidade de estilos e influências. Na ArtBeat Fair reúnem-se artistas de várias expressões das artes visuais, para celebrar o diálogo entre culturas. Nesta exposição de entrada livre, que decorre no Torreão Poente da Cordoaria Nacional, de 27 a 29 de junho, os visitantes são conduzidos numa “viagem visual e sensorial”, onde podem conjugar a apreciação das obras expostas com a audição de performances musicais ao vivo.
A ideia partiu de três artistas – a portuguesa Liliana Oliveira, o italiano Roberto Grosso e o francês Luc Bernay – que se conheceram num evento de arte em Lisboa e que decidiram “criar um projeto diferente do que já existia, que fosse mais de encontro às necessidades dos artistas”, conta Luís Mesquita, diretor da ArtBeat Fair. “Queríamos apresentar arte, claro, mas numa lógica de apresentar artistas emergentes, ajudá-los a promoverem-se e a lançarem-se no mercado”, sublinha.
Na feira, onde cada artista tem o seu stand individual, o principal objetivo é “eles conhecerem-se, falarem entre si e, ao mesmo tempo, darem a conhecer-se aos visitantes”, explica Luís Mesquita. Até porque este intercâmbio cultural pretende ampliar a partilha de ideias, técnicas e visões criativas, inspirando novas formas de expressão e experimentação artística, diz. “Esta presença física dos artistas permite-lhes perceberem a sensibilidade das pessoas à arte que apresentam”, nota. A ArtBeat Fair, “um espaço inclusivo e único para celebrar a arte”, define, torna-se, assim, uma oportunidade para os artistas mostrarem o seu trabalho e venderem as suas obras sem custos de intermediação, dinamizando também a cena artística.
Na ArtBeat – o nome vem da junção de arte e música – deseja-se que “as pessoas vivam uma experiência onde apreciem arte enquanto ouvem música”. Por isso, são apresentadas performances ao vivo que integram dança, música e artes visuais, criando momentos sensoriais que, espera-se, cativem o público. “Haverá jam sessions, música clássica e eletrónica, violinistas, saxofonistas e sessões de didgeridoo e de kora, por exemplo”, avança Luís Mesquita.
Esta primeira edição conta com a participação de 52 artistas de 15 nacionalidades. Entre profissionais do setor, colecionadores e público em geral, esperam-se mais de cinco mil visitantes. Um projeto que “não acaba aqui”, promete-se. “Queremos ir para outras cidades e, eventualmente, até para fora do País”, revela o diretor da ArtBeat Fair.
No original, chama-se Something, Someday. Por cá, o livro para a infância, escrito pela poeta e ativista Amanda Gorman, ganhou o nome de Pouco a pouco. A edição da Orfeu Negro chegou recentemente às livrarias com tradução da também poeta Alice Neto de Sousa. São dela as palavras em português que nos prendem, página após página, nesta história sobre como os gestos mais simples podem originar mudança e como, começando em cada um de nós, conseguimos, todos juntos, chegar mais longe. Um texto que, pelo seu ritmo, nos apeteceria ouvir dizer e que facilmente imaginamos na voz de Alice.
Para esta semana, a poeta – atualmente em criação artística – faz várias sugestões culturais, que vão da stand-up comedy à música, passando sempre pela poesia, claro.
Noite de stand-up comedy
26 junho, 21h30
Brooklyn Comedy Club
Todas as últimas quintas-feiras do mês, há uma noite de stand-up comedy no Brooklyn Comedy Club, na Praça da Alegria. “Assisti à sessão do mês de maio e é ideal para um serão de antecipação do fim-de-semana, com o anfitrião Carlos Pereira e um leque de convidados mistério”, sugere Alice Neto de Sousa.
Poemacto
27 junho, 19h30
Camones – Artes Bar
Fica na Graça, este bar com música ao vivo, que mensalmente celebra a poesia contemporânea. “Um espaço de poesia intimista, dirigido por Solange Pacífico, onde há lugar para poesia, música e o momento de microfone aberto – o meu favorito – para ouvir e conhecer novos artistas e ocasionalmente partilhar poemas engavetados.”
Livraria Poesia Incompleta
Rua de São Ciro, 26
Terça a domingo, 11h às 19h49
Alice Neto de Sousa sugere, para esta semana (e para as outras também), uma visita à Poesia Incompleta. “Uma livraria dedicada à poesia, onde encontram todos ou quase todos os livros que procuram, com o Changuito à porta para vos receber”, diz, referindo-se ao livreiro que começou este projeto em 2008 e que, dez anos depois, o trouxe para a Lapa.
Siddhartha, de Hermann Hesse
D. Quixote e Bis
“Li pela primeira vez no final do ano de 2023 numa altura de mudança e transição, guardo a calma e a leveza e um lugar para voltar quando precisar de fôlego”, revela a poeta sobre este livro originalmente publicado em 1922 e que tem duas edições disponíveis em português, uma delas de bolso.
I’m thinking of ending thing / Tudo Acaba Agora, de Charlie Kaufman
Em streaming, na Netflix
Sobre esta longa-metragem, estreada há quatro anos, afirma Alice Neto de Sousa: “Tirando o filme inteiro, que até hoje estou a tentar compreender, recomendo para já a cena do poema Bonedog, dito pela atriz Jessie Buckley dentro do carro, entre para-brisas, a neve e o silêncio, cada palavra um reflexo inequívoco da chegada da solidão.”
Lisbon Poetry Orchestra
É um coletivo formado por músicos e poetas e Alice Neto de Sousa aconselha-nos a ouvi-lo. “Um dos primeiros concertos de poesia e música que ouvi, guardo as interpretações dos poemas Havemos de ir a Viana, de Filipa Leal, Epitáfio de Domingo, de Cláudia R. Sampaio, e Poema Pouco Original do Medo, de Alexandre O’Neill, ainda bem presentes.”
Não existe amor em SP, de Criolo
Outra sugestão musical, o trabalho do cantor, rapper, compositor e ator brasileiro: “Comecei um poema, em construção, inspirada na música Não existe amor em SP, do artista Criolo, uma letra-poema intemporal para ouvir em loop, com linhas de um entendimento profundo e um olhar atento sobre a experiência humana e a sociedade.”
A toalha está posta e, à volta da mesa comprida que enche o palco, contam-se 23 cadeiras. No vídeo, projetado na enorme tela ao fundo, há também uma mesa comprida e 23 cadeiras. Hão de ser trazidos pratos, copos, talheres, guardanapos, tudo o que é preciso para um almoço de família. Em cena, estão Raquel André e Tonan Quito, no vídeo vemo-la a ela, a ele e aos seus pais, mães, filha/enteada, irmãos, amigos e parceiros neste projeto… Em Começar Tudo Outra Vez, que se estreia na Culturgest a 25 de junho e aí fica até ao dia 28, o teatro ensaia a vida e esta reinventa-se através dele.
É a primeira vez que os atores e encenadores trabalham em conjunto e, para este espetáculo, quiseram trazer as práticas artísticas tanto de uma como de outro. “A minha linguagem tem muito mais a ver com documentar o real, levar pessoas reais para a ficção; e o Tonan trabalha a partir da ficção para pensar a realidade. O vídeo foi onde juntámos esses dois mundos. A nossa família alargada faz, num palco, cenas das peças já encenadas pelo Tonan”, explica Raquel André. Na boca dos familiares, ouviremos deixas de O Ginjal e de As Três Irmãs, de Tchekhov, de Ricardo III, de Shakespeare ou de Entrelinhas, criada por Tónan Quito e Tiago Rodrigues. Experimentam-se relações de parentesco e todas as pessoas em torno da mesa têm um papel – no teatro, como na vida, mesmo que nem sempre coincidam.
No almoço de família, serve-se cozido, mas no palco da Culturgest servem-se memórias e inquietações sobre o futuro. “O que acontece quando alguém nasce?”, como foram os nascimentos dos seus pais? E os seus? “E se eu decidir não engravidar?”, pergunta Raquel, “e se eu sentir um vazio depois?”. Todas as interrogações são possíveis ali, todos os cenários podem ser imaginados. Raquel e Tonan hão de começar e recomeçar, uma e outra vez e mais uma e outra vez. “Olhamos para o teatro como uma possibilidade de ensaiarmos a vida. No teatro – e na arte em geral – podemos testar perspetivas ou ver perspetivas que, na vida, ainda não estamos a ver. Umas que estão mais invisíveis, outras que nunca existiram”, diz a atriz e encenadora. “O título do espetáculo remete para esse recomeço e vem até do próprio fazer do teatro. Sempre que fazes do início já não repetes da mesma forma, há uma possibilidade de mudança. Assim como quando nasce uma criança, tudo muda. Aparece uma nova organização e novos papéis, toda uma aldeia. E sempre uma possibilidade de se fazer melhor, uma reinvenção, de certa forma. O teatro como essa grande metáfora para o mundo”, reforça Tonan.
“O parto é poder”
Em Começar Tudo Outra Vez, ficção e realidade entrelaçam-se, para nos interrogarem sobre o que haveria de diferente se, ao invés de pormos em palco as mortes que abundam nas dramaturgias, falássemos dos nascimentos. “São mais importantes os fins do que os inícios”, há de acusar Raquel em cena. “Na história do teatro e do cinema não existem nascimentos. Vemos imensas personagens a morrer, mas não sabemos como nasceram. O nascimento está associado ao corpo feminino e as peças sempre estiveram dominadas por perspetivas masculinas, seja na forma como se escreve, seja na forma como se encena”, aponta a atriz.
Por isso, vale a pena “começar tudo outra vez” e ensaiar as tais possibilidades. À volta da mesa, tem-se a liberdade para imaginar o nascimento de Édipo, por exemplo, ou o de um possível filho de Romeu e Julieta, se não tivesse existido um fim trágico para estas personagens. “Sempre que nasce uma criança, há uma nova esperança. E no mundo, sobretudo no estado em que está agora com tudo aquilo a que estamos a testemunhar, que responsabilidade é que todos nós temos, enquanto aldeia dessa criança, em educá-la numa perspetiva política, para que isto não falhe? Há uma utopia nesse recomeçar”, sublinha Raquel.
Como se afirma em palco, “o parto é poder”; como se constata na apresentação deste espetáculo, “educar uma criança é um ato político”. Que cada bebé que nasça tenha em seu redor uma bolha de amor e que consiga os direitos devidos a qualquer ser humano neste mundo. Saibamos recomeçar, uma e outra vez, saibamos defender a utopia.
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