Entre 16 e 26 de outubro, o Doclisboa apresenta filmes, retrospetivas, conversas e debates que promovem uma reflexão sobre o mundo contemporâneo. Solveig Nordlund, Leonor Noivo, Pedro Pinho, Diogo Varela Silva e Pedro Florêncio são cinco realizadores com obras presentes nas várias secções do festival.
Pedro Florêncio
Pescadores de Bubaque exibido na secção da Terra à Lua
Começou a fazer documentário influenciado pelo professor José Manuel Costa, figura importante no lançamento do Doclisboa. “As aulas dele apaixonaram-me, senti que queria fazer documentário para sempre. Foi um momento refundador.” O realizador interessa-se por um tipo de cinema documental “em que se sente a relação intensa entre quem filma e o lugar filmado”. Cita Frederick Weissman ou Wang Bing como referências – cineastas que passam algum tempo em espaços definidos à procura do filme. Para Florêncio, esse contacto direto com os lugares é essencial, “tem a ver com descobrir nesse sítio as regras do filme, a matéria do filme”.
Nesta edição do Doc, festival que considera “uma escola de cinema, onde o documentário é encarado sempre como uma forma de resposta urgente ao que se passa no mundo”, exibe em estreia mundial Pescadores de Bubaque. O filme nasceu de uma viagem ao arquipélago dos Bijagós, onde conheceu dois rapazes que forneciam peixe aos hotéis. “Pedi-lhes para ir ver como é que eles pescavam e percebi que estava ali um filme por fazer.”
Diogo Varela Silva
Soco a Soco exibido na secção Heart Beat
Com uma filmografia maioritariamente composta por documentário, o realizador afirma que é neste género que encontra uma liberdade que, para ele, a ficção não oferece. “Gosto de contar histórias, e quando faço um documentário sobre uma pessoa ou uma realidade embrenho-me no tema, deixo-me ir. Vou descobrindo a história à medida que faço o filme. Embora haja um trabalho exaustivo de preparação, quando vamos para o terreno e estamos em contacto com a pessoa ou o assunto do filme somos surpreendidos por novos elementos.”
Lisboa é um cenário recorrente na sua obra. Soco a Soco, exibido em estreia mundial nesta edição do festival, regressa à cidade e traça o retrato de um lisboeta, Orlando Jesus, campeão de boxe nos anos de 1970 e também uma figura da noite: “uma personagem em vias de extinção” que espelha uma Lisboa que já não existe.
Varela Silva mantém uma ligação estreita com o Doclisboa: “é o ‘meu’ festival, é uma janela para o mundo. Permitiu-me descobrir vários realizadores que não conhecia, como Lech Kowalski, entre tantos outros. Tem uma preocupação programática que é essencial, com a presença de filmes que nos obrigam a pensar sobre o mundo atual, até com um cariz politizado, o que é fundamental.”
Leonor Noivo
Bulakna exibido na secção da Terra à Lua
A obra de Leonor Noiva cruza, recorrentemente, documentário e ficção. A vontade de juntar estas duas abordagens começou na sua formação: “Estudei na Escola Superior de Teatro e Cinema, onde a aprendizagem se centrava na questão ficcional. Posteriormente, completei o Curso de Documentário dos Ateliers Varan, na Gulbenkian, onde o foco era o cinema da verdade, documental. São duas escolas radicalmente diferentes. Ao longo da vida fui misturando estas duas formas de fazer cinema e, hoje, acabam por estar sempre interligadas no meu trabalho”.
Bulakna, o mais recente filme da realizadora, evoca o nome de uma antiga guerreira filipina que resistiu à invasão colonial, e também recorre a esta fórmula híbrida. O documentário, exibido em estreia nacional no Doclisboa, retrata a migração de mulheres filipinas recrutadas como empregadas domésticas em países estrangeiros.
Sobre o festival lisboeta, a cineasta afirma ser presença assídua: “ainda antes de ser Doclisboa, ia ao Amascultura, na [Centro Cultural da] Malaposta. Quando era estudante, tirava a semana para ir ao festival ver filmes. Sinto que o Doclisboa fomenta cada vez mais a discussão e contribui para uma reflexão sobre a sociedade. Esse engajamento, essa responsabilidade, são muito importantes”.
Pedro Pinho
O Riso e a Faca versão integral exibido na secção Da Terra à Lua
O documentário marcou o início da carreira do cineasta, que sempre sentiu uma urgência em captar a realidade à sua volta. Seguiram-se obras de ficção, género onde sente uma maior liberdade, mas no qual é necessário encontrar primeiro as condições de produção, e que “exige mais tempo, mais paciência”.
Apesar das diferenças entre os géneros, Pinho nota semelhanças no processo de filmagem: “é tudo muito parecido, aquilo que tento é construir na ficção condições para que a câmara se possa comportar como se estivesse a filmar um documentário. Gero uma situação narrativa ficcional, mas a equipa e os atores têm de reagir ao que acontece no momento da rodagem”.
O seu novo filme, O Riso e a Faca, estreou-se em maio no Festival de Cannes, onde a atriz Cleo Diára foi distinguida com o prémio de melhor atriz. A versão integral terá a sua estreia mundial no Doclisboa, um momento que enche o cineasta de orgulho: “o festival nasceu da associação Apordoc que é muito importante na consolidação do trabalho do documentário em Portugal, onde há muito tempo existe uma grande tradição de cinema documental e cinema de fronteira entre ficcional e documental.”
Solveig Nordlund
Memórias do Teatro da cornucópia exibido na secção Heart Beat
A cineasta sueca, naturalizada portuguesa pelo casamento com Alberto Seixas Santos, tem tido um papel marcante no cinema português. Em 1974 fundou o Grupo Zero, onde corealizou os seus primeiros filmes ao lado de nomes como João César Monteiro, Margarida Gil ou Jorge Silva Melo, muitos deles documentários de cariz político, que refletiam os tempos revolucionários que se viviam. Entre as várias colaborações ao longo da sua carreira, destacam-se Manoel de Oliveira, José Fonseca e Costa e João Botelho. Solveig Nordlund transitou com igual domínio pelo documentário e pela ficção, afirmando: “dependendo do material que tenho, sigo ou não o caminho do documentário. Há histórias que são histórias e pertencem à ficção. O que existe, o real, permite fazer um retrato desse objeto ou vivência”.
O Doclisboa tem sido sala para muitos dos seus filmes. Nesta edição estreia mundialmente o documentário Memórias do Teatro da Cornucópia no qual, guiados por imagens e testemunhos, ficamos a conhecer a companhia de teatro fundada por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo nos anos 1970. Um filme óbvio para Solveig: “conheço a Cornucópia desde sempre. Com o encerramento da companhia e sabendo que tinham material filmado, era natural que propusesse fazer este documentário.”
José Cardoso Pires
Lavagante
José Cardoso Pires (1925-1998) regressou, dez anos após a sua morte, com Lavagante, novela inédita que nos devolveu o seu estilo único e aparentemente simples (produto de um profundo labor sobre a própria escrita) e a sua capacidade soberana de descrição da sociedade portuguesa durante a ditadura de Salazar. A observação atenta das leis do reino animal – o lavagante alimenta o safio no fundo das águas com paciência e obstinação vendo-o engordar até ser incapaz de sair da toca; nesse momento, devora o prisioneiro que alimentou com estratégica perversidade – permitiu-lhe apreender melhor a natureza do comportamento humano do par amoroso central: Daniel, jovem médico oposicionista ao regime, e Cecília, bela estudante universitária apreciadora de jazz e de Henry Miller. A publicação desta pequena novela trouxe-nos à memória a calorosa saudação que um crítico dirigiu a O Jardim do Paraíso, romance póstumo de Hemingway – “esse viajante das mortes” que Cardoso Pires tanto admirava – editado nos EUA, em 1987: “Ler este livro … é como entrar num café e encontrar um velho amigo que julgávamos morto há muitos anos… É assim tão excitante, tão vivo, e tão surpreendente”. Reedição por ocasião da estreia da adaptação cinematográfica da obra por Mário Barroso, no centenário do nascimento de José Cardoso Pires. LAE Relógio D’Água
Albino Forjaz Sampaio
Volúpia
“Em França a a arte da cozinha é uma Arte, a nona arte. Todos lhe rendem culto, todos trabalham por enriquecê-la”. Nesta obra dedicada à gastronomia, Albino Forjaz Sampaio, escritor, polemista e olissipógrafo, reflete sobre a relação entre a literatura e a “arte de comer” evocando eminentes gastrónomos como Eça de Queirós, Ramalho Ortigão ou Fialho de Almeida, e empreende uma nutritiva viagem pelas “cozinhas de todo mundo”: portuguesa, brasileira, espanhola, francesa, alemã, húngara, africana (árabe e indígena), ou ainda pelos confins das cozinhas exóticas. Sobre a cozinha inglesa afirma, com apurado sentido crítico, mas com equidade: “A Inglaterra não foi nunca um país de requintes gastronómicos. Mas espelho do modo de ser inglês, tem uma cozinha sólida onde tudo é positivo e é dos países onde melhor se come, não molhos nem composições feitas para enganar a fome, mas carne, peixe, vegetais, comida suculenta e a valer”. Com uma escrita requintada, o autor conta um sem número de episódios, com que enriquece os seus relatos, tão suculentos como as iguarias que descreve, fazendo de Volúpia um magnífico exemplo de “literatura vitaminada e sadia”. Uma fusão entre sabor e palavra “com a mesma concordância plástica da mão com a luva, do assunto com a denominação.” LAE E-Primatur
Violaine Bérot
Como Animais
A obra inspira-se numa experiência vivida pela própria autora numa quinta nos Pirenéus. Aí criou animais e recebeu crianças de instituições psiquiátricas, cuja ligação se revelou algumas vezes extraordinária e incompreensível. Como animais é um conto da montanha sobre o direito a viver à margem da sociedade. Mariette vive com o filho, a quem chamam o Urso, a vários quilómetros de uma aldeia isolada nos Pirenéus. Quando um caminhante avista uma menina de cerca de seis anos numa gruta, a polícia leva a cabo uma investigação para descobrir quem é a criança. São interrogadas várias pessoas que, de diferentes formas, tiveram contacto com a família. “Tudo porque se teria descoberto uma criança selvagem. Mas não existem crianças selvagens! Uma criança é uma criança, e ponto final.” Entre ser filha de Mariette, ser filha do Urso, ter sido roubada, as opiniões dividem-se, mas são unânimes em reconhecer que a família nunca fez mal a ninguém, que nunca foi agressiva. Fica, então, a dúvida: “O que leva as pessoas a fazerem mal a quem não se meteu com ninguém? Porque é que se estraga sempre tudo o que funciona?” Violaine Bérot (n. 1967) estreou-se na ficção em 1994, com Jehanne, e é autora duma obra singular, dominada por mulheres determinadas e pelas violências exercidas contra elas. SS Antígona
Pedro Mexia
Cinquenta cinquenta
Quando completou meio século de vida, Pedro Mexia deu ao prelo este livro de poemas inéditos, que sugere a páginas várias poder tratar-se de um (quase) autorretrato, de uma (hipótese de) autobiografia: “Chamem-me já o raio do velho, / sou-o desde tão novo. / Eis-me então agora a dizer / fazer tentar tudo aquilo / que desaconselharia a um filho / que Darwin vetou”. Cinquenta cinquenta pela metade da vida, mais vazia que cheia (de ilusões, certamente), num balanço antecipado, se pudesse haver antecipação para quem escreve que já se sentia um velho desde novo. O acerto de contas é aqui com o próprio autor, numa fase em que superou pela idade “quase todos aqueles que admira”. O registo pessimista, a sensação de fracasso, o tom autodepreciativo são atributos da poesia de Mexia desde sempre, como também é o diálogo com nomes da música, cinema e literatura, citados ou tão-só nomeados, por vezes com chave humorística como se fosse recurso de aflitos: “Stendhal sofria / porque Mathilde Dembowski / o achava feio. / A síndroma de Stendhal / consiste em sofrermos / quando vemos o belo. / Eis, amigos, a literatura.” RG Tinta-da-China
João de Melo
A Nuvem no Olhar
O Meu Gémeo que Sou Eu narra a experiência de um homem que teve um irmão gémeo que morreu cedo, levado por uma doença misteriosa, e lhe deixou uma “condição de dupla pessoa”, a “noção de uma ausência omnipresente”. Este é um dos dez contos reunidos por João de Melo, no ano em que celebra meio século de atividade literária, com o propósito de criar uma autoantologia da sua ficção curta. Duas destas narrativas eram ainda inéditas em livro, as restantes foram selecionadas dos dois primeiros volumes de contos que publicou, todas elas reescritas com o objetivo de estabelecer a sua versão definitiva. Relações intrafamiliares, retratos mais ou menos caricaturais de políticos, representações do meio docente e da intelectualidade em geral ou o relato de uma viagem como revelação essencial são alguns dos temas desenvolvidos nestas histórias tão diferentes entre si. O Tríptico dos Barcos, o conto mais longo deste livro – podendo mesmo considerar-se uma novela curta – pode entender-se como uma reflexão sobre os destinos da “pátria” (“um país pequeno, com forma de urna e sem memória de nada”) através da perspetiva de três membros de uma família lisboeta acerca do “fim do nosso ciclo colonial africano e o evoluir do processo português posterior à descolonização”. LAE Dom Quixote
Francisco Keil do Amaral
Lisboa – Uma Cidade em Transformação
Francisco Keil do Amaral, arquiteto e urbanista, escreveu em Lisboa, uma Cidade em Transformação, originalmente publicado em 1969, sobre os agentes da pressão imobiliária e a construção civil na capital: “têm erguido e afeiçoado Lisboa, à imagem dos seus interesses, apetites e incultura, acumulando fortunas e problemas, Fortunas para si próprios. (…) problemas para os outros – para a Cidade”. E aponta três deles: a construção de “prédios de rendimento, com habitações minúsculas e rendas maiúsculas”, o pejar de “terrenos com edificações maciças, compactas, arregimentadas” e a insistência em “fazer casas só para gente rica”. Palavras visionárias ou uma cidade que, cinco décadas depois, se mantém incapaz de resolver os seus problemas? Esta obra, de acordo com o autor, resultante de “escritos feitos ao longo de uma quinzena de anos”, produz uma reflexão inovadora, de relevância intemporal, sobre o desenvolvimento sustentável das cidades e a relação entre o espaço edificado e os seus habitantes. Francisco Keil do Amaral defende a necessidade de uma cidade estruturada, harmoniosa e sobretudo mais humanizada. A sua reedição possibilita o acesso a novos leitores de um texto notável, um dos mais importantes do pensamento português sobre o urbanismo de Lisboa do século XX. LAE Contexto
Eduardo Geada – O Olhar do Desejo
No último mês de maio, a Cinemateca Portuguesa levou a cabo a retrospetiva integral da obra para cinema e televisão de Eduardo Geada (n. 1945). O ciclo recebeu por título Eduardo Geada, O Olhar do Desejo, o mesmo que surge inscrito a negro na capa sobre um vermelho vivo, que nos atrai como pedindo que acariciemos a superfície do objeto antes de percorrermos livremente as suas cerca de 300 páginas. A organização do volume coube a Ricardo Vieira Lisboa, que justifica a polaridade do desejo neste contemporâneo do Novo Cinema Português, dizendo “… passar de crítico a cineasta é, no caso de Geada, passar do desejo do olhar ao olhar do desejo. Isto é, é passar o gozo de ver para o ver enquanto gozo”. O catálogo encontra-se dividido em três partes (Aprendizagem, Prática, Recapitulação) que correspondem aos capítulos do filme inaugural do realizador, Sofia e a Educação Sexual (1974), obra disruptiva sobre os preconceitos sexuais da sociedade portuguesa durante a ditadura. A uma pequena antologia de textos críticos de Eduardo Geada, seguem-se análises aos seus principais filmes e outros documentos interessantíssimos sobre o realizador e o seu tempo, e alguns ensaios que dão conta da robustez intelectual que caracteriza a sua relação com a história do cinema. RG Cinemateca Portuguesa
Virginia Woolf
As Mulheres e a Ficção
Recorrendo ao monólogo interior, à reorganização temporal dos factos para corresponderem à experiência interna do tempo no(s) protagonista(s) e à justaposição de múltiplos pontos de vista, Virginia Woolf introduziu um estilo de narrativa subjetiva que recusava o narrador omnisciente característico da literatura realista do século XIX. A escritora nasceu em Londres, em 1882, cidade onde encontramos as suas personagens principais: Mrs. Dalloway nas 24 de um dia em que sai para comprar flores; Orlando na sua existência secular de homem e mulher. Neste artigo, Woolf investiga as razões pelas quais as mulheres não escreveram de forma contínua antes do século XVIII. Objetivo dificultado pelo facto de a história de Inglaterra ser “a história da linhagem masculina” e de sobre as mulheres só sabermos “o nome, a data do casamento e o número de filhos”. Apresenta as leis e os costumes como principais responsáveis: só no início do século XIX, em Inglaterra, as mulheres passaram a ter “algum tempo livre” e “alguma educação”. Termina profetizando uma “época de ouro”, “em que as mulheres terão aquilo que há tanto tempo lhes é negado – tempo livre, dinheiro e [inevitavelmente] um quarto só seu”. LAE Relógio D’Água
Há como que um sentido de urgência em continuar a fazer e a ver os clássicos. Esta é a crença de António Pires que, em vésperas de estrear a sua visão de À espera de Godot, confessa estar cada vez mais convicto de que “o tempo funciona em textos como este de uma forma muito particular, transformando-os, tornando-os mais próximos de nós”. Para o encenador, que leva agora ao palco do Teatro do Bairro esta peça incontornável de Samuel Beckett, “há textos que, de um ponto de vista humanista, são capazes de promover reflexões essenciais na formação dos seres humanos. Ali no palco, espelham aquilo que somos, e quero acreditar serem capazes de evitar que cometamos tantos disparates”. Este é, seguramente, um deles.
“A primeira motivação para o fazer foi desconfiar que muitas das pessoas que ouço falarem no Godot, provavelmente, nunca terão visto a peça”, explica Pires. Depois, olhando para o texto à luz dos nossos dias, “foi reconhecer nela situações que parecem dar uma leitura para coisas que se estão a passar”. O encenador exemplifica com a personagem Lucky (aqui interpretada por Mário Sousa): “quando comecei a reler a peça e cheguei à cena em que o escravo Lucky surge, vi imediatamente estes [novos] escravos que aí andam de bicicleta com aquelas coisas às costas”.
Como alguém disse, À espera de Godot, texto de finais da década de 1940, logo a seguir à II Guerra Mundial, é “uma peça em que nada ocorre, duas vezes”, e isso é surpreendentemente divertido. Nela, dois pobres coitados, Vladimir/Didi (Adriano Luz) e Estragon/Gogo (João Barbosa), esperam à volta de uma árvore por alguém de nome Godot. Como longa se torna a espera, os dois vão discorrendo sobre quem são, sobre o absurdo da vida e até sobre o próprio tempo onde parecem estar enclausurados. A dado momento, chegam Pozzo (Francisco Vistas) e o seu escravo Lucky que, embora proporcionem cenas mirabolantes e perturbadoras, acabam por ajudar, como salienta Didi, o tempo a passar.
Ao entardecer, entra em cena um rapaz (Carolina Campanela) anunciando que Godot não poderá comparecer, mas que volta, com toda a certeza, no dia seguinte. E, assim, com algumas desconcertantes variações, tudo volta ao início, com Didi e Gogo debatendo-se com o tormento do tempo que passa sem que Godot apareça.
A espera, o vazio ou a falta de sentido na existência são temas sérios que estão associados a À espera de Godot – Pires salienta mesmo a hipótese de suicídio que os dois protagonistas admitem a dado momento. Contudo, a peça não deixa de ser “uma comédia” protagonizada por “dois palhaços”, sem que isso lhes retire humanidade. Antes pelo contrário, “é a leveza, uma certa ligeireza e o olhar do próprio palhaço que lhes confere o humano”.
Assim, crê o encenador, lembrando que, atualmente, há uma produção de À espera de Godot na Broadway (encenada por Jamie Lloyd, com Keanu Reeves e Alex Winter), “um texto universal e divertidíssimo” como este “deve ser visto sem complexos ou preconceitos”. “Não é preciso ser erudito para o compreender”, garante. Apesar da agonia do tempo, À espera de Godot “são jogos de palhaços, de palavras, de atores a dizerem coisas muito simples”.
A partir da tradução de José Maria Vieira Mendes, o espetáculo tem cenografia de Alexandre Oliveira, desenho de luz de Rui Seabra e som de Paulo Abelho. Estreia a 1 de outubro, mantendo-se em cena até 2 de novembro.
No próximo dia 8 de outubro, naquela que é a segunda temporada em Lisboa de Coelho Branco, Coelho Vermelho, cabe a Hugo van der Ding abrir o envelope que guarda um texto que nunca leu e dizê-lo para uma plateia cheia. “Podia ter ido espreitar os espetáculos ao You Tube e tenho três ou quatro amigos que já o fizeram, mas nunca quis perguntar como era. Acho que seria pior se soubesse”, afirma, sobre este projeto no Teatro Maria Matos que, até meados de dezembro, terá, noutros dias, como protagonistas Inês Castel-Branco, Rita Cabaço, Romeu Costa, Inês Lopes Gonçalves, Ana Brito e Cunha, Jorge Mourato, Beatriz Gosta e César Mourão. “Os bilhetes foram postos à venda e esgotaram muito depressa. Fiquei contente, mas estou um bocadinho nervoso. Tenho uma vaga ideia de que não se trata de uma comédia… o que me deixa mais descansado porque, se as pessoas não se rirem, não é responsabilidade minha! Estou muito ansioso, no bom e no mau sentido”, acrescenta o ator, que conhecemos também pelo seu trabalho como escritor e desenhador.
Já se sabe, Hugo van der Ding nunca tem apenas uma ocupação. Na verdade, confirma, está a fazer “milhares de coisas ao mesmo tempo”. No final de outubro ou início de novembro, chegará às livrarias o seu novo livro, editado pela Leya. “Ainda não é o meu primeiro romance, que estou prestes a acabar, mas peguei na ideia do [podcast] Vamos Todos Morrer, onde falei dos reis de Portugal, e juntei-os com as suas mulheres. À medida que ia escrevendo, larguei os textos originais e escrevi um livro do zero, são quase 70 pessoas, em mais de 400 páginas”, conta. “Tentei construí-lo como uma saga familiar. Se pensarmos bem, é uma família com um destino muito particular, todos parentes uns dos outros, todos descendentes do Afonso Henriques. Há ali histórias que a maior parte de nós nem sabe. Às vezes até me comovi um bocadinho. Não é um livro nada académico, juntei um pouco de humor, mas é sério e com muita investigação, num tom mais leve”, descreve. O título que lhe deu não podia ser melhor: Uma Família SurReal.
A par disto, o autor de Vamos Viajar na Maionese, o seu novo podcast com Tiago Ribeiro com quem fez Vamos Todos Morrer (os episódios saem ao domingo), está a preparar vários projetos teatrais. Além da adaptação de Tito Andrónico, de Shakespeare, que está a escrever para a companhia Estrutura, volta a trabalhar com o maestro Martim Sousa Tavares. Depois de, juntos, terem feito O Misantropo, a partir do texto de Molière, no Teatro Nacional D. Maria II, começarão a escrever uma peça, “à volta da história da inauguração” deste Teatro. Envolto ainda nalgum segredo está outro espetáculo: “Não sei se posso dizer muito, mas será uma ópera que vai ter direção musical do Martim, vai ser composta pelo Pedro Lima, e cujo libreto é meu”.
Hugo garante que tem também a decorrer outro ofício – “ando a trabalhar em ficar mais quieto e parar um pouco, sair da cidade e ir passar mais tempo no campo”. Para a próxima semana quis deixar sugestões especiais: “aquilo que andam a fazer alguns dos meus amigos muito queridos”. “Assim, não vendo gato por lebre, porque eles são todos awesome.”
Arte, de Yasmina Reza, com encenação de António Pires
Teatro Maria Matos
Até 30 de novembro
“Está incrível. É uma nova vida desta peça em Portugal, mas não vi da outra vez [com António Feio, José Pedro Gomes e Miguel Guilherme]. É difícil competir, porque o espetáculo foi um marco na altura, mas acho que estes atores estão muito bem.”
O nariz de Cleópatra, pois claro!, a partir de Augusto Abelaira, com encenação de Cristina Carvalhal
Teatro Variedades
Até 5 de outubro
“Fiz umas ilustrações para promover este espetáculo. É um exercício de imaginação sobre como seria o mundo se este ou aquele acontecimento tivesse sido diferente, como se disse do nariz de Cleópatra. Uma boa reflexão sobre o passado, o presente e o futuro.”
Mal Viver, de João Canijo
Filme disponível na Filmin
“Queria dar uma sugestão com a minha amiga Rita Blanco e ela está absolutamente brilhante neste filme.”
O Último Avô, de Afonso Reis Cabral
Dom Quixote
“É o romance mais recente dele, que vai ser lançado no dia 1 de outubro, na Casa do Jardim da Estrela, onde vou fazer leituras de alguns excertos. Já li os outros dois livros do Afonso e gosto muito da escrita dele. Sabe bem ver gente mais nova do que eu a escrever com tanta qualidade e a ir buscar temas, de certa forma, tão inesperados. O Pão de Açúcar é sobre a história da Gisberta, morta no Porto, com uma visão interessante e um olhar humano sobre que sociedade somos para um bando de miúdos ter feito aquela coisa.”
As Berlengas
de Benjamim
“Um disco um bocadinho experimental, muito fixe para se ouvir, por exemplo, em viagens de carro. Gosto muito.”
Há um herbário no deserto
de Mia Tomé
“Um disco que gravou nos Estados Unidos da América. A Mia tem passado umas temporadas no deserto do Arizona. É spoken word com música, é muito relaxante e ouço-o muito para escrever.”
Bandas sonoras de Noiserv
“Há sempre novidades a aparecer no canal de You Tube do Noiserv, mas ele tem também aquelas músicas incríveis para quem precisa de tirar a cabeça da atualidade e das notícias, que são as bandas sonoras que faz e que estão disponíveis para se ouvirem.”
Casa Capitão
“Abriu agora e tenho muita vontade de conhecer. É importante aparecerem sítios que sejam um safe space e que sirvam de resistência, de espaço cultural para quem vive na cidade, lugares onde se possam fazer coisas que não se fazem nos outros sítios, seguindo a vontade daquelas pessoas que vivem naquele território. É bom conhecermos zonas de Lisboa onde antes não andávamos tanto.”
Casa do Comum
“Não está numa boa fase em termos de sustentabilidade do projeto e é importante lá ir. Além de todas as outras coisas boas que tem e de ter um bar fixe, acaba por ser uma memória desses sítios onde nos sentíamos em casa e que têm desaparecido. Tem uma excelente livraria, ligada à Ler Devagar, que é outro sítio incrível e que se mantém, apesar das mudanças na LX Factory, e que faz um bom equilíbrio entre a resposta ao turismo e a resposta a quem vive na cidade.”
Gaza: Pensar, Resistir, Imaginar
Disponível no site do Teatro Nacional D. Maria II
“Foi uma conversa sobre o que está a acontecer em Gaza e acredito que é fundamental falar sobre o que se está a passar. O Nacional teve esta iniciativa e terá outras. Há uma frase que circula por aí como meme: ‘um dia quando isto acabar e tiverem morridos todos, vamos ser todos contra isto’. Até aqui todos nós pensámos: ‘como aconteceu o Holocausto?! Como foi possível?!’ e hoje, de repente, percebemos exatamente como foi, porque é exatamente o que está a acontecer agora. Ainda ontem o Presidente dos Estados Unidos da América disse ‘odeio os meus oponentes políticos’ e nós não estamos a fazer nada. Com o meu lado de historiador, é uma oportunidade para ver com os meus olhos como acontece, mas é terrível.”
A princípio, O Senhor Paul, de Tankred Dorst, até parece uma comédia de costumes.
Deitado num sofá sovado, rodeado de livros poeirentos e almofadas puídas, com um vetusto piano vertical a servir de base para um fogão elétrico, apresenta-se o senhor Paul. Velho e pesado, dele se escuta, num breve monólogo, uma ode às virtudes da existência letárgica. É então que a irmã, Luise, o interrompe, anunciando que vai à opera com bilhete oferecido, a uma récita de Aida. Na panela fumegante sobre o bico do fogão, há esparguete acabado de cozer para o jantar do senhor Paul, assim informa a irmã.
Surge então Helm, o novo proprietário do imóvel onde vivem Paul e Luise. O jovem acaba de herdar aquela velha e desativada fábrica de sabão e tem novos planos para o espaço. Pacientemente, o recém proprietário procura de Paul uma resposta à carta que enviara, onde explicava o seu projeto de negócio e a necessidade de os irmãos abandonarem o imóvel. Contudo, Paul prefere responder, a partir do assento do seu sofá, com rebuscadas evasivas, como se desconhecesse ou não entendesse as intenções do proprietário.
Com a chegada da histriónica namorada de Helm, da menina Anita (com quem Paul tem uma relação de vincada promiscuidade) e de um investidor imobiliário, instala-se a confusão, algo inesperada, é certo, mas muito propícia à estratégia do inquilino.
A paciência de Helm começa a esgotar-se quando percebe que Paul tem na sua posse a carta e que a leu. Mas, nesse momento, talvez seja já demasiado tarde para escapar à astuta teia tecida pelo aparentemente passivo senhor Paul.
Será a partir deste momento que a aparente comédia de costumes começa a ganhar forma de “uma fábula”, como aponta o encenador Álvaro Correia. Por isso, “embora assim pareça no início, não se pode dizer que O Senhor Paul seja, de todo, uma peça realista”.
Um texto desafiante e uns toques de magia
Acabou por ser uma escolha natural para o Teatro Aberto abrir a atual temporada com O Senhor Paul para, assim, assinalar o centenário do nascimento de Tankred Dorst (1925-2017), um dos mais importantes dramaturgos alemães da segunda metade do século XX. “Era um desejo antigo do Teatro Aberto fazer esta peça, que nunca havia sido encenada em Portugal”, sublinha Álvaro Correia. O Senhor Paul é um regresso da companhia de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos ao autor de Fernando Krapp escreveu-me esta carta, peça que o Teatro Aberto produziu em 1997, com um elenco onde pontuavam, entre outros, Alexandra Lencastre, Rogério Samora e João Perry.
“Fazer este espetáculo tinha vários atrativos, como a ideia da imobilidade que vai conduzir ao caos ou as múltiplas camadas que acabam por torná-la tão ambígua”, conta o encenador dando como exemplo a relação de duplicidade que se vai estabelecendo entre o velho Paul e Helm. “Depois, havia um conjunto de desafios cénicos muito complicados de concretizar. Tão complicados que só os resolvemos com a ajuda de um jovem mágico”, confessa.
Sobre a peça, muito se disse e escreveu na altura da estreia. O Senhor Paul subiu ao palco em 1994, coescrita por Dorst com a sua colaboradora e companheira Ursula Ehler, “e muitos viram ali uma reação à reunificação da Alemanha”, com o avanço do capitalismo sobre a débil economia do leste. Hoje, esta perspetiva do homem que está sob a ameaça de despejo e procura resistir, poderia ser “uma história sobre a especulação imobiliária dos nossos dias” e, acrscentamos, no nosso bairro, na nossa cidade.
Porém, Dorst tinha uma explicação diferente, embora percebesse que a vissem como a história de “alguém [que] herdou uma fábrica e quer abrir uma lavandaria – o senhor Paul tem de sair, mas o senhor Paul fica”, naquele contexto das duas “Alemanhas”, logo após a queda do muro de Berlim. Segundo Correia, o autor remetia a figura do senhor Paul para os anos 50 do século passado, época do milagre económico do pós-guerra.
“Aquele personagem baseava-se num vizinho de Dorst que, quando a porta de sua casa se abria, ele via imóvel, recostado no sofá, rodeado de livros. Essa figura, conta [o autor] numa entrevista, repugnava-o, porque a sua mãe dizia que ele poderia ficar assim um dia. Mas, simultaneamente, essa figura, imóvel, culta, atraia-o”, conta o encenador. “Ao mesmo tempo”, acrescenta, “Dorst inspirou-se na lenda de São Cristóvão, o homem forte e grande que transportava às costas pessoas de uma margem para a outra de um rio, e num pequeno conto dos Irmãos Grimm acerca de uma criança perpetuamente imóvel sobre uma pedra e que ninguém é capaz de remover.”
Para lá das múltiplas leituras, O Senhor Paul é um texto desconcertante e surpreendente que, em boa hora, o Teatro Aberto revela entre nós. Para além de Miguel Loureiro no papel de Paul, e de José Pimentão no do herdeiro Helm, o espetáculo conta com uma notável galeria de secundários abrilhantada pelos atores Maria José Paschoal, Lia Carvalho, Iris Cañamero e Carlos Malvarez. Em cena na Sala Azul, até 9 de novembro.
Desde muito jovem que Inês Pires Tavares sentiu uma forte ligação às artes. Estreou-se na representação no palco do Teatro Armando Cortez, em 2015, num espetáculo encenado por Wanda Stuart, mas o seu primeiro amor foi a música, tendo estudado canto e violoncelo no Conservatório de Lisboa. Em 2020, iniciou a sua carreira televisiva na novela Amar Demais, da TVI, e desde aí nunca mais parou. Tem sido presença assídua nos canais portugueses, mas também no teatro. No ano passado, participou na peça de grande sucesso Querido Evan Hansen, no Teatro Maria Matos, e agora podemos vê-la no Teatro Trindade com Julieta e Romeu.
Na reescrita contemporânea do clássico de Shakespeare, seguimos a história de dois jovens que se apaixonam num grupo de teatro. O tema não podia ser mais atual: Romeu é filho de migrantes; Julieta, filha de um político xenófobo. A peça estreou a 11 de setembro e tem tido “um feedback muito positivo”. Inês não revela muito sobre o espetáculo, mas adianta que “abre vários caminhos” e que o espectador “pode tirar várias conclusões”. “Eu própria ainda estou a tentar descobrir e acho que vai ser assim até ao fim”, diz-nos.
Inês irá vestir a pele de Julieta até dia 28 de outubro. Depois disso, a atriz, que tem tido um ano cheio, segue para umas merecidas férias. Sobre projetos futuros, afirma, com um sorriso, que “o que vier virá”.
Para onde vão os guarda-chuvas
de Afonso Cruz
Companhia das Letras
A primeira sugestão da atriz é o livro Para onde vão os guarda-chuvas, de Afonso Cruz. O romance passa-se num Oriente efabulado e acompanha a história de várias personagens fascinantes, como a de um homem que quer ser invisível, de uma mulher que quer casar com um homem de olhos azuis, ou de um poeta mudo. “Li este livro há pouco tempo. Nunca tinha lido nada deste escritor, mas fiquei rendida com esta obra.” Para além da história, Inês destaca “o estilo do autor, que tem uma forma muito particular de escrever”.
Dias Perfeitos (2023)
Filme de Wim Wenders
Disponível na plataforma Filmin
Dias Perfeitos, de Wim Wenders, “é das coisas mais simples e mais bonitas que vi nos últimos tempos. A beleza da simplicidade neste filme é qualquer coisa de extraordinário. Está muito bem filmado, o ator principal quase não fala durante todo o filme e consegue cativar-nos desde o primeiro segundo”. A história gira à volta do pacato Hirayama, empregado de limpeza de casas de banho públicas, cujos tempos livres são dedicados a simples prazeres da vida como a leitura, a música ou a fotografia.
Cut the World (2012)
Disco de Antony and the Johnsons (atualmente Anonhi)
Por último, a atriz recomenda o seu álbum preferido – Cut the world, de Antony and the Johnsons (a artista transgénero mudou, entretanto, para o nome Anohni). “Ela tem uma voz muito particular, tem um lado sombrio e meio melancólico. Quando oiço este disco viajo automaticamente para outro sítio, faz-me sentir coisas muito especiais. Há uma magia que não consigo pôr em palavras”. Inês não hesita em recomendar toda a discografia de Anonhi: “aconselho muito este e outros discos dela, porque é incrível”, remata.
A Festa de Abertura da Casa Capitão, que se estende por três dias, a partir desta sexta-feira, 19, e até ao próximo domingo, já deixa adivinhar o que aí vem. Neste fim de semana, a programação inclui concertos, clubbing, performances, oficinas para crianças, projeção de filmes, workshops, apresentação de livros e comida. É assim que se quer este “mini centro cultural”, como o define Gonçalo Riscado, um dos dois diretores (juntamente com o seu irmão João) do mais recente projeto da CTL – Cultural Trend Lisbon, que encerrou recentemente o Musicbox, no Cais do Sodré.
Há muito que vêm pensando como poderiam transformar o número 119 da Rua do Grilo, depois de, há mais de cinco anos, terem assinado um contrato de concessão com a Câmara Municipal de Lisboa para a sua exploração – o edifício faz parte daquele que é hoje conhecido como o Beato Innovation District, o complexo que resultou da reconversão das antigas fábricas da Manutenção Militar, fundadas em 1897.
Com a pandemia, tudo ficou adiado, mas durante os dois verões em que apenas eram permitidos eventos ao ar livre ou para muito poucas pessoas, foi ali que criaram um pop-up, aproveitando o terraço para organizar concertos e várias outras atividades (mais de 600, contando com as que se conseguiram realizar dentro de portas). Depois, foram em busca das condições que lhes permitissem avançar com as complexas obras de requalificação daquele espaço que servia de residência ao antigo comandante da Manutenção Militar.
Do Sótão ao Terraço
Nesta sexta-feira abrem-se, finalmente, as portas deste projeto que Gonçalo Riscado assume ser “de risco” pela sua ambição e dimensão. Com uma organização por “pisos” – Rés do Chão, 1.º Andar, Sótão, Pátio e Terraço – todos eles se querem totalmente flexíveis e capazes de albergar diferentes atividades. Se no Rés do Chão está a sala multiusos que perpetua a herança do Musicbox e que tem capacidade para cerca de 400 espectadores, mas que pode ser adaptada para um público bem menor, a blackbox do Sótão consegue receber noites de clubbing, tal como performances, workshops e concertos mais intimistas. Lá fora, o Pátio funciona como palco natural para variadas intervenções artísticas e o Terraço transformou-se num pequeno auditório ao ar livre.
O 1.º Andar mostra-se o lugar privilegiado de duas das “marcas” da Casa Capitão: a Mesa e o Quiosque. Na zona de refeições – “não lhe chamamos restaurante porque a comida também é uma intervenção cultural”, defende Gonçalo – estarão à vendas as sandes feitas com os papo-secos cozidos ali mesmo, numa ementa pensada pelo chefe Bernardo Agrela, que organizará jantares especiais (com bilhetes, como se de um espetáculo se tratasse) e encontros com outros chefes ou outros criadores. Promete-se, ainda, pôr a trabalhar a grelha da casa e fazer churrasco ao sábado, assim como ter feijoada ao domingo, numa parceria com o coletivo Gira.
Já o Quiosque consiste na programação à volta dos livros. “É como se fosse o nosso pequeno Festival Silêncio [um dos projetos da CTL]: a palavra como unidade de criação, como ponto de partida para programar qualquer coisa e para debater qualquer coisa”, explica o gestor cultural. Mesa de Cabeceira será o programa fixo do Quiosque em que convidam alguém a escolher livros, para ali estarem à venda, e, em torno deles, organizarem atividades (a estreia faz-se com Joana Guerra Tadeu). Pelo Quiosque vão passar também, em outubro, várias iniciativas do MIL – Lisbon International Music Network, o festival organizado pela CTL que se dedica “à descoberta, promoção, valorização e internacionalização da música popular atual e a uma reflexão sobre políticas e práticas culturais”.
Por fim, na Casa Capitão, acontece o Baile, a marca que descreve “a casa depois da meia-noite, para dançar” e que pode acontecer em qualquer parte do edifício.

A cultura como ação
A ideia é que exista programação regular e que as portas estejam abertas de dia e de noite, sobretudo ao fim de semana. Ao sábado e domingo, diz Gonçalo Riscado, o horário pode estender-se das dez horas às seis da manhã. “Queremos que as pessoas vão chegando, se vão cruzando com umas com as outras e também com coisas de que não estavam à espera. Estes lugares de encontro de diferentes artes e de diferentes públicos sempre nos interessaram muito e acho que é através deles que se desenvolve comunidade e pensamento crítico.” Por isso, define a Casa Capitão como um “um sítio de estar, de comunidade, de pensamento crítico, de debate, de encontro e de oportunidades”. E reforça: “Ao contrário do que se diz, acredito que pode existir um espaço para toda a gente – toda a gente que tem como ponto de ligação a arte e a cultura. Todos nós somos agentes de cultura e todos devíamos ter a possibilidade de exercer os nossos direitos culturais. É neste pensamento que surge a Casa Capitão.”
Talvez por essa razão não seja de estranhar o nome que escolheram para batizar o projeto. “Viemos ocupar um edifício militar e se há algo feliz e que nos remete para liberdade e revolução são os Capitães de Abril. Este será, assim, um lugar de memória e de defesa da importância de agir sobre essa memória, queremos materializar isso na programação e na intervenção.”
Quem entra, não vem ao engano, já que o assumem de forma clara, logo na apresentação que fazem no site da Casa Capitão: “Acreditamos na cultura como ação, força crítica e coletiva. Um lugar de liberdade e desobediência, onde se cruzam vozes, experiências e visões do mundo diversas e em diálogo. Assumimos uma posição clara contra todas as formas de opressão. Na nossa casa não há lugar para discursos xenófobos, racistas, sexistas, LGBTfóbicos ou discriminatórios. Acolhemos quem cria e quem participa. Valorizamos a liberdade artística, o pensamento crítico, a escuta atenta e o fazer em comum. Programamos cultura com consciência, compromisso e sentido de futuro.” Para Gonçalo, é importante dizê-lo, sem rodeios nem meias palavras. “Temos de ter manifestos porque, ao contrário do que achávamos, há muitas coisas que dávamos por garantidas e não o estão. Penso que vivemos, de novo, uma época de luta. E ela tem de partir destas afirmações que, depois, devem ser consubstanciadas na prática, na forma como programamos e nos comportamos”.
Se dúvidas houvesse, bastaria consultar o programa já anunciado para estes três dias e para os próximos meses. Cabe a Capicua, já nesta sexta-feira, dar a cara pelo arranque desta casa que se quer de combate e de toda a gente.
Vem aí a terceira edição do Festival Cuca Monga, a 26 e 27 de setembro, e nos Jardins do Museu de Lisboa – Palácio Pimenta há de celebrar-se “a música portuguesa e a amizade entre artistas”. Gaspar Varela sobe ao palco no primeiro dia com a sua guitarra portuguesa e os Expresso Transatlântico, a banda que criou com o irmão Sebastião Varela e o amigo de ambos, Rafael Matos. “Tentamos em cada concerto trazer alguma coisa diferente, nem que seja a nível de energia. Tocar em Lisboa é ótimo, porque estamos em casa, ainda por cima num festival de malta amiga, que reúne muitos músicos portugueses. Isso para nós é especial”, afirma. Acabados de chegar do Japão, onde atuaram no Pavilhão de Portugal na Expo de Osaka, e também noutras cidades, têm quase pronto o segundo álbum, que há de sair em inícios de 2026. Por aí já se ouve Flor Trovão, single de avanço desse próximo disco que hão de depois apresentar em Lisboa, no Capitólio, a 14 de março do próximo ano, no dia em que a banda comemora quatro anos.
Manel Cruz / Cru
17 setembro, 21h
Teatro Tivoli BBVA
“Não sei que tipo de espetáculo vai apresentar, mas o Manel Cruz é um artista e guitarrista incrível, que me inspira muito. Consegue criar um universo que me agrada, é uma coisa boa de se ouvir e que nos põe a pensar – e acredito que é para isso que a arte serve, para instalar a dúvida. Por isso, recomendo sempre qualquer concerto do Manel Cruz, seja com Ornatos Violeta, seja com Pluto, seja a solo. É sempre muito bom.”
Com a alma na mão, caminha, de Sepideh Farsi
A partir de 18 setembro
Cinema Ideal
Depois de ter sido um dos momentos mais emocionantes no Festival de Cannes, em maio, o documentário estreia-se esta semana em Lisboa e, para Gaspar Varela, é uma escolha obrigatória. Durante cerca de seis meses, a realizadora iraniana Sepideh Farsi espreitou o que se passava na Palestina através do olhar da fotógrafa Fatma Hassona, que permanecia em Gaza. As imagens que registaram – e as suas conversas à distância – deram origem a este filme. No entanto, em abril, logo depois de ficar a saber que o documentário tinha sido selecionado para Cannes, Fatma foi assassinada num ataque israelita. “É um tema muito importante e deixa-me feliz que a arte reflita sobre estes assuntos. Israel está a cometer um genocídio e é fundamental que se possam fazer filmes, músicas, pinturas, o que for, sobre isso. Ainda bem que o Cinema Ideal passa o filme. Todos deveriam ir vê-lo.”
Entre os vossos dentes, obras de Paula Rego e Adriana Varejão
Até 22 setembro
CAM – Centro de Arte Moderna da Gulbenkian
Na última semana para ver esta exposição, Gaspar garante que não deixará passar a oportunidade. “São duas artistas fascinantes e que, tanto em Portugal como no Brasil, elevaram muito o papel das mulheres nas artes. O trabalho delas, muito especialmente o da Paula Rego, é uma coisa fora de série e adorei a ideia da junção das duas”, afirma. “É cada vez mais preciso reforçar esse poder feminino e acho muito importante continuarmos a lembrar-nos destas duas artistas por todo o trabalho maravilhoso que fizeram.”
Anónimos de Abril
De José Fialho Gouveia, Rogério Charraz e Joana Alegre
Livros Zigurate
Primeiro, foi o projeto musical, com letras de José Fialho Gouveia, músicas de Rogério Charraz e voz de Joana Alegre, sobre “mulheres e homens que tiveram a coragem e a ousadia de enfrentar e fragilizar o regime que durante 48 anos oprimiu os portugueses” e, mais recentemente, chegou o livro que aprofunda essas histórias. “Gostei muito de o ler, achei bastante interessante, com relatos muito bonitos”, elogia o guitarrista, que confessa preferir títulos de não ficção. Com QR codes para se poder também ouvir as canções, esta edição tem textos de José Fialho Gouveia, Aurora Rodrigues e Miguel Carvalho, e ainda ilustrações de Marta Nunes.
Suspiro…
Álbum de Maria Reis
Saiu no ano passado e Gaspar Varela não hesita em recomendar este disco de Maria Reis, cantora, compositora e guitarrista, que se tem afirmado como nome fundamental da nova música portuguesa. “Gosto muito da maneira da Maria escrever e adoro a forma como usa a voz e interpreta as suas músicas. Já gostava de Pega Monstro, a anterior banda dela, e acho que este álbum é muito bonito”, diz sobre Suspiro…
No teatro contemporâneo, contam-se pelos dedos das mãos as peças de teatro que aliam a popularidade ao aplauso da crítica. Menos ainda, aquelas que, embora escritas não há muitos anos, se podem considerar “clássicos”. Arte, peça de afirmação da autora francesa Yasmina Reza, faz parte desse limitadíssimo lote de textos teatrais que conquistaram plateias, prémios e a crítica, e que, passados pouco mais de 30 anos desde a estreia, continuam a repetir semelhante aclamação.
Para o comprovar, sobretudo a toda uma geração que não teve oportunidade de ver este texto em palco – em Portugal, Arte foi encenado por António Feio por duas ocasiões, em 1998 e 2003, e, posteriormente, em 2016, por Adriano Luz e Carla de Sá -, a Força de Produção aposta em levar a cena, nesta nova temporada, o clássico de Yasmina Reza. Com uma nova tradução (de Ana Sampaio), António Pires dirige Cristóvão Campos, Nuno Lopes e Rui Melo, num espetáculo que o encenador define como “uma comédia sobre a empatia nos nossos dias”.
Se em 1998, quando a peça estreou em Portugal, o enfoque parecia centrar-se nas questões do gosto e das controvérsias à volta da arte contemporânea, sendo o quadro em branco, como observa Pires, “uma espécie de provocação”, hoje, “parece-nos que este texto é [primordialmente] sobre a forma como nos relacionamos, sobre a falta de empatia que, devido ao individualismo e ao isolamento propiciado pelas redes sociais, vamos tendo na relação com o outro”. Em suma, Arte trata de três homens, amigos há 20 anos, que “já não se ouvem uns aos outros” e que parecem estar prestes a descobrir que, muito provavelmente, a amizade acabou.
O gatilho da discórdia
Quando Marco (Nuno Lopes), à boca de cena, anuncia à plateia que o seu velho amigo Sérgio (Rui Melo) adquiriu, pelo valor obsceno de 120 mil euros, uma tela de um metro e 20 por um metro e 60, totalmente branca, assinada por um artista de renome, prenunciam-se momentos de tensão.
Diante do quadro, Marco ri jocosamente de Sérgio, mas tudo escala para o conflito, por ora ainda velado, quando o amigo classifica a obra como “uma grande merda”. Ofendido, Sérgio procura aprovação num terceiro, Ivo (Cristóvão Campos), amigo de ambos, mas tão vulnerável nas suas opiniões como falhado na vida pessoal e profissional.
Quando, de novo em casa de Sérgio, se reúnem, o valor da obra de arte vai digladiar-se com o da amizade, num confronto revelador de inúmeros incómodos e ressentimentos entre os três homens. Fica a questão: será que, depois de tudo o que é dito, a amizade sobreviverá?
Toda a conflitualidade em crescendo, que culmina num gesto radical e surpreendente, é tratada com uma minucia notável dos tempos da comédia. António Pires não deixa por isso de confessar “o enorme prazer e o divertimento” de trabalhar um texto que é “uma lição de comédia”. E, quando se tem “três atores de grande talento, daqueles que têm opinião, basta deixá-los tomar conta da cena”.
Com estreia marcada para dia 10, a genial comédia de Yasmina Reza prepara-se assim para continuar a conquistar gerações de espectadores de teatro, provando que os clássicos, pela sua intemporalidade, não têm idade.
Mariana Duarte Silva apresenta-se sempre como “mãe de três rapazes” e já foi considerada uma das mais importantes mulheres empreendedoras em Lisboa. Em 2014, depois de anos a trabalhar na promoção e produção musical, trouxe de Londres o Village Underground e transformou autocarros sem uso num espaço de eventos culturais. Foi aí que, mais tarde, fundou a Skoola, seguindo “uma vontade muito grande de fazer um projeto educativo de base musical”.
Skoola – a magia de fazer com todos
Há microfones, djembés, teclados, uma bateria, guitarras, maracas e outros instrumentos na sala. Também há sorrisos e gargalhadas, brincadeiras e muita concentração. Nesta aula da Skoola, cada um escolheu o que queria tocar e as melodias vão-se fazendo em conjunto. A academia de música urbana que nasceu dentro do Village Underground Lisboa, em 2021, funciona agora num antigo ginásio recuperado da Escola Básica Integrada Manuel da Maia, em Campo de Ourique. Quando a fundou, Mariana Duarte Silva sabia exatamente como queria que fosse este lugar de aprendizagem e crescimento, por oposição ao tradicional ensino da música. “É uma metodologia de educação não formal, por serem os jovens que escolhem o que querem aprender. Os facilitadores vão dando ferramentas para cada um ir construindo o seu processo criativo e isso torna-os mais autónomos na criação e no pensamento. Uma forma mais aberta, criativa e inclusiva, porque não deixa ninguém de fora”, explica.
À Skoola chegam miúdos com mais ou menos talento musical e com mais ou menos necessidades, sejam financeiras, sociais ou de saúde mental, por exemplo. A escola tem bolsas para quem não pode pagar (em parte financiadas pelas propinas dos que podem) e muitas estratégias para a integração. “A música é realmente uma ferramenta que consegue fazer a diferença e operar a mudança”, acredita Mariana. Pensada como um projeto de impacto social, a Skoola tem vindo a abrir-se aos jovens mais privilegiados. “Só assim faz sentido. Essa é a magia: misturar e fazer com todos. Uns aprendem com os outros e todos aprendemos em conjunto.”
Os locais de Campo de Ourique
Livraria Ler
Rua Almeida e Sousa, 24 / T.213 888 371
“Tem um atendimento muito personalizado e simpático. É sempre lá que vou quando quero um livro para mim, para os meus filhos ou para oferecer a alguém.”
Ateliê de Felipa Almeida e Sousa
Rua Almeida e Sousa, 27 R/C DTO
“Artista e curadora, a Felipa foca-se na origem dos objetos em cerâmica portugueses. Tem um trabalho muito bonito, faz visitas ao ateliê e organiza exposições com outros artistas.” Neste mês, haverá uma mostra com peças de 27 artistas de diferentes gerações e origens que recuperam e reinterpretam o tradicional moringue, a bilha de barro com dois gargalos e uma asa, usada antigamente no campo para manter a água fresca.
Exposição Moringue vazio não carrega só vento, 18 a 20 de setembro
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Casa Príncipe
Rua Coelho da Rocha, 31A
A editora Príncipe Discos, com a associação Filho Único, também se mudou recentemente para Campo de Ourique, e Mariana aplaude esta chegada. “Fiquei muito contente por terem vindo para Campo de Ourique. O novo espaço, que já fui conhecer, é escritório e estúdio e têm uma loja onde vendem discos e merchandising. Acredito que a Casa Príncipe vá trazer mais dinamização e mais músicos, e que vá marcar o bairro.”
Biblioteca/ Espaço Cultural Cinema Europa
Rua Francisco Metrass, 28 / T.218 009 927
“Se preciso de me concentrar ou de escrever é para aqui que vou, com o telefone no silêncio. Gosto muito de escrever no meio de livros e de jornais. Recentemente, conheci o auditório, que também me pareceu um ótimo espaço”, diz Mariana Duarte Silva sobre esta biblioteca nascida no edifício que funcionou como sala de cinema até ao início dos anos 80 do século passado e que ainda mantém, como imagem de marca, o alto-relevo do escultor Euclides Vaz.
Cemitério dos Prazeres
Praça São João Bosco, 568
“Gosto muito de ir ali passear. Para mim, não é nada mórbido. Tem uma vista muito bonita para Monsanto e, quando preciso de calma, dou umas voltas por lá.”
Barbeiro Diamante
Rua Saraiva de Carvalho, 128 / T.213 902 605
“Para mim, é cultura. Este barbeiro centenário resiste em Campo de Ourique e foi lá que os meus filhos fizeram os primeiros cortes de cabelo. O corte à Diamante é um clássico do bairro.”
Pátio dos artistas
Rua Coelho da Rocha, 69
“Sempre tive muita curiosidade e só recentemente lá entrei. É uma pérola no meio de Campo de Ourique.”
A Padaria do Povo
Rua Luís Derouet, 20A / T.213 620 464
“Organizei lá várias festas e é ótimo para se ir beber um copo ao fim do dia.”
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