Três metros e meio por dois – são grandes, as telas pintadas a óleo por Joana Villaverde, para a exposição My pleasure, patente no Pavilhão Branco das Galerias Municipais a partir de 31 de outubro e até 9 de fevereiro de 2025. Apenas uma obra, um pouco mais pequena, não é totalmente abstrata. Vigia representa a vista a partir do ateliê da artista plástica, instalado no Mosteiro de São Bento, em Avis, um espaço cedido pela Câmara Municipal e onde Joana fundou, em 2018, a sua Officina Mundi, lugar de portas sempre abertas. Foi ali que criou todas as peças que mostra agora em Lisboa e apenas por ali estar nasceu esta exposição, na qual apresenta, pela primeira vez, trabalhos sem qualquer expressão figurativa ou iconográfica. “É por ter este espaço e este tempo que fiz estas pinturas. Há um caminho que jamais podia ter feito se não estivesse em Avis, neste espaço e com este tempo. Artisticamente, cheguei a um lugar a que nem sabia que era possível chegar”, afirma. Por isso, chama a My pleasure “o retrato do privilégio de poder fazer em liberdade”.
Nas pinturas espelha a sensação de plenitude e infinitude que tem por poder trabalhar num ateliê assim, mas também uma vontade de partilha e de relação com o mundo à sua volta, através de pinceladas feitas de gestos largos e fortes. “Como são abstratas, fui livre de me mover diante daquelas telas, foi um movimento físico importantíssimo. Sou pequena e as telas muito grandes, portanto, tive mesmo de usar força física. Foi como se fosse uma dança ou um desporto”, conta. “Neste processo de fazer, vislumbro a infinitude. Para mim um mundo novo. (…) É a enorme ambição de encher o vazio de silêncio”, escreve na folha de sala.
Reflexos do quotidiano
Olhando pela janela do ateliê, começou por pintar céus e apontamentos de terra no fundo da tela. No entanto, a realidade do mundo impôs-se e Joana Villaverde, revoltada com os ataques em Gaza, acabou por cobrir uma tela de vermelho. “Quando acabei estava mesmo maldisposta. Acho que era aquilo que precisava de pintar, era o que tinha de fazer perante o massacre em curso na Palestina, um lugar que já visitei três vezes e ao qual me sinto muito ligada”. Chamou-lhe simplesmente Vermelho.
Estar em Avis, diz, traz-lhe, afinal, uma maior consciência do mundo à sua volta. Longe de se sentir isolada, constata que tem mais tempo para ouvir e prestar atenção ao que vai acontecendo. Também por essa razão criou a Officina Mundi e a abre a outros artistas e à população, organizando residências, exposições e encontros com frequência. “A partilha deste lugar revela-se essencial, porque é demasiado belo para só eu usufruir dele. Tenho a noção do importante que seria termos todos este direito. Não me pertence, é público e assim deve ser.” Para a artista plástica, tudo se resume numa ideia: “Estarmos juntos, abertos, de forma honesta e darmos o melhor que temos uns aos outros”.
Ao mesmo tempo e pensando naquilo que a levou a pintar Vermelho, Joana Villaverde escreve na folha da exposição: My pleasure acaba por ser “a contradição entre a liberdade e a asfixia, a minha liberdade e o colapso da humanidade”. São talvez reflexos do seu quotidiano, expressão que usa nesse texto, e obras que descreve como “céus verticais” com as cores que foi experimentando e misturando nas telas. Numa das outras pinturas, horizontal, confessa que se entregou a tonalidades que antes rejeitava: o roxo e o lilás. Deu-lhe o nome de A cena dos violinos, porque foi também um instrumento com que não simpatizou durante muitos anos… até se ter disposto a ouvir com mais atenção. “Estou mais apaziguada agora”, admite.
My pleasure tem curadoria de António Pinto Ribeiro. De entrada livre, pode ser visitada de terça a domingo, das 10 às 13 horas e das 14 às 18 horas. Joana Villaverde dá as boas-vindas: “Foi com prazer, faça o favor de entrar.”
25 anos de carreira é um número bastante respeitável. Como é que isso te faz sentir?
É muito raro olhar para trás, acho que não faz parte da minha personalidade. Portanto, quando penso que faço isto há 25 anos, isso é uma coisa meio abstrata, não sei exatamente o que isso quer dizer. De facto, são muitos anos a fazer uma coisa específica, mas mesmo assim acho que o meu pai foi mais tempo bancário do que eu músico, o que eu acho muito mais difícil [risos]. Tem sido uma viagem incrível de conhecer muitas pessoas e de fazer muitas loucuras, o que me leva a achar que ainda quero fazer isto, pelo menos, mais 25 anos…
Portanto, não és uma pessoa nostálgica?
Não, muito pouco. A maioria das pessoas da minha idade, ou ainda mais novas, ainda ouvem a mesma música que ouviam quando tinham 20 e tal anos. É muito raro eu ouvir uma canção que tenha 20 e tal anos. Diria que 90% da música que ouço hoje foi feita na semana passada. Portanto, não tenho mesmo dentro de mim aquela ideia de relembrar uma coisa antiga. Interessa-me muito mais o que vai acontecer. E por isso é que eu tenho sempre dez planos, dos quais não cumpro nem oito porque não tenho tempo, mas gosto muito de olhar para a frente e perceber o que ainda posso fazer que seja interessante. Vivo muito no momento do presente.
Still ’25 é o nome da digressão atual. Se voltasses a ter 25 anos, farias tudo igual?
Faria melhor, espero eu, porque demorei muito tempo até entender o que é que efetivamente queria fazer no mundo da música. Nos primeiros dois anos de concertos dos Silence 4, lembro-me que subia ao palco, dizia boa noite, tocava, dizia obrigado no meio das canções e no final dizia “boa noite e até à próxima”. Não tinha mais nada para dizer, não fazia ideia do que era suposto fazer, o que é que as pessoas esperavam. Também acho que tem a ver com o facto de nunca ter sonhado ser músico, não era isso que queria fazer, foi um acidente na minha vida. Ao longo dos anos comecei a gostar mais de estar em palco, percebi que era uma oportunidade que tinha de extravasar o meu pensamento e começou a surgir a ideia de montar, não necessariamente um personagem, mas um espetáculo de duas horas e meia fabulosas, de sonhos, de loucuras. Isso atraiu-me, fez com que eu começasse a trabalhar cada vez mais na forma da apresentação, depois nos vídeos, e isso demorou uns bons sete, oito anos para arrancar, para chegar até aí. Por isso, se voltasse atrás, começava logo assim.
O que vai acontecer no palco do Coliseu nos dias 16 e 17 de novembro?
Vai ser uma espécie de súmula de uma coisa que andamos a fazer há algum tempo na estrada, uma abordagem mais multimédia de um espetáculo. Não é só uma pessoa a tocar canções ou a contar histórias. Engloba tudo isso e ainda algumas coisas inusitadas que já entram no campo da performance. Gosto muito da ideia de fazer um espetáculo que não pareça necessariamente um concerto de música pop. Quero fazer uma coisa que vai um bocadinho mais para um território das artes, que é, na realidade, o meu background. E isso foi uma das coisas com que lutei muito tempo. Porque é que eu queria fugir tanto do meu background, se era daí que vinha? Estive em Belas Artes e em Cinema, portanto é natural que, quando subo ao palco, queira trazer essas experiências também. Por isso é que o espetáculo acaba por ser uma surpresa para as pessoas, porque não é uma coisa muito normal. Às vezes não quer dizer que seja melhor, honestamente. Faço estas coisas porque estão mais próximas de quem sou, e acho que é isso que as pessoas querem ver: a personalidade de quem está em palco…
Até porque é tudo feito com muito rigor, desde as letras, à música, à parte visual, guarda-roupa, fotografia… controlar tudo isso deve ser muito cansativo…
É muito cansativo, concordo totalmente [risos]. Controlo tudo, mas não queria nada. É um traço da minha personalidade, há muito tempo que é assim; já tentei que não fosse, mas depois não corre tão bem. Se eu fizer o jantar em casa, é como se estivesse num restaurante. Cada coisa tem a sua tacinha, que tem uma cor… sujo muita louça, mas quando chegar à mesa quero que seja bonito, mesmo que me dê muito trabalho. Por exemplo, podia fazer um vídeo onde só apontasse a câmara e tocasse. Mas, não vejo interesse em fazê-lo. Para isso prefiro não fazer. Quando me lanço numa coisa, ela acaba sempre por ser um bocadinho mais difícil do que esperava. Posso pensar numa ideia relativamente fácil de concretizar, mas depois acabo por estar, às vezes, três semanas à volta de um pormenor que nem tem assim tanta importância. Penso que as pessoas entendem o que estou a fazer, mas depois esperam que faça sempre assim, o que não é bom [risos]. Às vezes, sinto que estou sempre a tentar tirar um coelho da cartola, o coelho está cada vez mais gordo, a minha cartola mais pequenina, e ele já não consegue sair tão facilmente. É o que sinto quando inicio tournées, ou tenho um disco novo. Mas isso é o que me faz ter ainda mais foco. Já fiz muitas coisas diferentes e tento sempre manter o nível de imaginação, de conceção. Não tem de ser necessariamente uma coisa muito complicada, mas tem de ser algo que eu acho que tenha a ver com esse projeto, com uma espécie de universo que criei e quero que continue assim.
Sendo um perfecionista, é-te difícil lidar com a falha?
Não, muito pelo contrário. Diria que em cada dez coisas, falho nove, mas acho que a grande vantagem – que talvez seja geracional – é que as gerações mais novas não conseguem lidar bem com isso e eu consigo. Até consigo lidar melhor com isso do que se algo correr muito bem. É uma coisa meio sueca. Quando corre muito bem, fico quase embaraçado. Mas quando corre mal, acho ser normal. Quando estou com a minha banda, seja a fazer uma fotografia ou um vídeo, tudo está a falhar quase sempre. De vez em quando, aquilo acerta e é essa parte que eu agarro. E por isso é que às vezes parece que está tão bem feito. E não é porque eu seja particularmente bom a fazer o que quer que seja, nem a tocar instrumentos, eu escolho é muito bem e não tenho problemas com a ideia de falhar. Inúmeras foram as vezes que passei dias no estúdio a gravar uma coisa que não coloquei na mistura final porque não me pareceu boa o suficiente.
Isso não é frustrante?
Não, porque acho que o que faz uma música boa não é o tempo que uma pessoa gastou nela. Já fiz canções que adoro em cinco minutos e outras que demoraram três meses. Não acho que uma seja melhor do que a outra por ter demorado mais tempo. As pessoas dão muita importância a essa ideia de subir a montanha e depois não beber água. Às vezes subo a montanha toda e só vejo a vista. Não bebo água nenhuma, não há nada. A expectativa é uma coisa terrível. Prefiro não ter expectativa nenhuma e depois o que acontecer pode ser que seja surpreendente. Não sou médico, não sou professor, portanto, não acho que seja assim tão importante. E isso é de uma liberdade gigantesca, porque assim faço as minhas maluquices e não tem problema nenhum, se correr mal, corre mal, pronto.
Já há material para o próximo disco?
Tenho muitas maquetes. Costumo fazer quatro vezes mais músicas do que aquelas que um disco tem. Isso é um truque que aprendi há muitos anos. Se eu tiver dez canções, são as dez canções que tenho no disco. Se eu tiver 40, as dez que estão no disco são as dez melhores. E esse ponto de comparação é muito positivo. Porque, para já, me põe logo num sítio muito crítico. Estou na fase de fazer canções, odiar umas e gostar mais ou menos de outras. Também acontece gostar muito de uma canção e no dia seguinte achá-la horrível, ou achá-la horrível e no dia seguinte achar mais ou menos. Há umas que vão e vêm assim a vida toda, e algumas nunca saem da prateleira por causa disso. Estou a tentar perceber qual é o caminho a seguir e como é que elas todas se juntam e que história é que contam.
É importante que cada disco tenha um conceito?
Gosto muito da ideia do conceito do disco e consigo identificá-lo em todos os que faço. Para chegar aí é preciso atirar muito barro à parede e a maior parte dele não cola. Mas é um processo um bocado caótico, não há uma receita. Acho que as músicas vêm do mesmo sítio que basicamente toda a arte vem, que é de nenhures. Vêm de um sítio meio secreto que tem a ver com um certo tipo de emoções. Depois tento traduzir isso para algo que outra pessoa consiga entender. A única coisa que faço com método é o tempo que uso no meu trabalho, como se estivesse num escritório. Isto foi um conselho que um professor me deu. Na faculdade tive uma disciplina de escrita de argumento, a que eu era péssimo, e um dos primeiros trabalhos era fazer uma curta-metragem. Na aula seguinte disse que não tinha tido ideia nenhuma e perguntei o que havia de fazer. Ele disse-me que eu tinha de arranjar um horário para escrever. E eu perguntei “o que é que acontece se eu não tiver ideia nenhuma na mesma?”, ao que ele respondeu “então ficas lá sentado”. Foi o melhor conselho que já ouvi porque ele tinha razão. Se eu estiver lá sentado, há uma grande probabilidade de, se acontecer alguma coisa, estar preparado. Se durante esse período eu estiver a fazer outra coisa, mesmo que a ideia chegue, não vou ter capacidade nenhuma para a agarrar. Portanto é um conselho que sigo à letra há muitos anos e que me tem ajudado a escrever muitos discos. Tudo o resto é um caos total, não faço ideia do que estou a fazer [risos]. Passo muito tempo em frente aos instrumentos, às vezes só a olhar para eles.
E deves ter muitos, não é?
Por acaso não tenho. Quando vou a casa de músicos amigos meus, a conclusão a que chego é que todos eles têm pelo menos cinco vezes mais instrumentos do que eu. Todos os músicos são loucos, adoram instrumentos. Cheguei a um ponto em que acho que já os tenho todos. Se tenho uma guitarra acústica, uma guitarra de nylon, uma elétrica, um baixo e dois sintetizadores, do que preciso mais? É que depois a casa parece um museu. Atualmente tenho a seguinte regra: se comprar um instrumento dou logo outro.
Em 2015 lançaste Futuro eu, um disco em português. É um processo criativo muito diferente do que estás habituado?
Na realidade, de vez em quando volto lá, mas não é assim tão fácil. Quando fiz esse disco não tinha prática nenhuma em escrever músicas em português, o que fez com que tivesse uma preparação muito melhor para esse disco do que para os outros, porque não tinha a mesma agilidade. Na altura passei três meses a escrever à máquina letras em português, textos, prosas e pequenas histórias, porque queria habituar-me à ideia de escrever na minha língua e saber como é que isso soava cantado, porque é completamente diferente. Passei meses a escrever, gostava do som da máquina, então escrevia, depois punha na parede, depois lia, depois tentava fazer pequenas músicas e odiava tudo. Portanto, levou um bocadinho de tempo até entender o meu lugar nessas canções. Mas, foi dos discos que mais gostei de fazer. Honestamente gostava de voltar a repetir essa experiência, mas tinha de ter um conjunto de canções que eu olhasse e pensasse que faz sentido. Gostava de fazer tudo em português, não queria misturar, no mesmo disco, músicas em português e inglês. Quero que sejam universos específicos. Talvez o próximo seja assim, ainda não sei.
Se pudesses escolher qualquer pessoa, com quem farias uma colaboração?
O Tom Waits. É um dos meus músicos favoritos, que ouço muito, adoro. Também gosto muito da PJ Harvey e da Roisin Murphy. Sou mesmo fã, adoro-a. Vou ver os concertos e grito muito. Ela tem um sentido de humor muito parecido com o meu, meio autodepreciativo, acho isso muito curioso. Em Portugal já trabalhei com muita gente com quem queria muito trabalhar, mas ainda falta gente de certeza… Talvez gostasse de participar em coisas com pessoas mais novas do que eu. No início da carreira, as pessoas têm uma vontade maior de fazer coisas um bocadinho mais fora da caixa e eu identifico-me mais com essa ideia do que com uma coisa um bocadinho mais confortável.
Até conseguiste convencer o Bruno Nogueira a entrar num vídeo…
Foi muito giro, porque quando o convidei para o concerto no Coliseu, disse-lhe que era para cantar e ele ficou um bocado nervoso. Eu disse-lhe que não podia ser só chalaças, que as pessoas iam adorar e adoraram, porque foi maravilhoso. O Bruno também sabe muito bem brincar com a persona dele. Quando fizemos o vídeo, uma das coisas mais impressionantes foi o quão bem ele fazia o playback. Fazia melhor do que eu [risos]. Havia pessoas que estavam completamente convencidas que era ele a cantar.
No próximo ano, os Silence 4 regressam aos palcos, com alguns concertos já esgotados. É apenas para matar saudades ou há alguma possibilidade de um regresso?
Os Silence 4 existiram num momento muito específico. Nem consigo imaginar o que seria agora juntarmo-nos todos outra vez, porque aquilo que nos levou a criar aquelas músicas tem a ver com uma fase em que nenhum de nós está. O que fizemos naquela altura foi uma coisa muito rara de acontecer, nem eu sabia o quão rara era enquanto acontecia. Foi um daqueles momentos onde se cria algo que vem de um sítio muito pessoal e muito emocional e nunca na vida se pensa se vai chegar a alguém ou não, e depois torna-se um verdadeiro caso de sucesso. E de repente aquelas canções já não nos pertencem, nada daquilo tem a ver connosco. As pessoas partilharam aquelas canções porque se lembravam da namorada ou de um encontro quando eram miúdos nos escoteiros ou num acampamento… e o número de histórias absurdamente bonitas que ouvi ao longo dos anos que têm a ver com os temas dos Silence 4 fazem com que eu ache que as canções ultrapassaram muito aquilo que levou à sua criação. Nem acho que a reunião seja muito acerca de nós. Acho que vamos lá tocar e as pessoas estão-se a borrifar para nós. O que mais querem é estar lá junto daquelas canções e relembrarem-se de um tempo, de uma coisa específica, de uma pessoa, de uma sensação. Acho que é isso que faz com que aquelas canções sejam tão absolutamente mágicas.
Como é que lidas com o impacto que as tuas músicas têm nos outros?
Honestamente, não acho que tenha muita responsabilidade nisso. No caso dos Silence 4, estávamos no sítio certo no momento certo e naqueles dois anos tivemos a sorte de as pessoas agarrarem aquelas canções como se fossem suas. Isso é algo que para mim ainda hoje parece absurdo. Há uma música no primeiro disco que se chama Angel’s Song, que escrevi por causa de um desamor qualquer. Na altura escreviam muitas cartas à banda, não havia emails nem redes sociais. Uma das cartas que me mandaram falava exatamente sobre essa música específica. Era de uma mãe cujo filho tinha tido um acidente de automóvel e tinha ficado em coma. A banda favorita dele eram os Silence 4. Então, os médicos, a certa altura, deixaram a mãe pôr a música a tocar ao pé dele baixinho, e ela punha sempre o nosso disco. O miúdo acordou do coma enquanto tocava essa canção. Então, a mãe atribuía o facto de ele ter acordado àquela canção. E eu lembro-me de pensar que aquela história era incrível. No fundo, as pessoas é que deram uma oportunidade para que tudo acontecesse dessa maneira nas suas vidas. Não acho que tenha sido eu, especificamente, ou a banda. E eu acho que isso talvez seja o mais bonito de tudo. Espero sinceramente que toquem estas músicas daqui a 30 anos e que ninguém saiba muito bem quem é que as fez. Isso é de longe a melhor coisa que pode acontecer a uma música, é o melhor elogio que se pode dar a alguém que fez uma canção: é o artista desaparecer e a música ficar para sempre. Isso é algo raríssimo de acontecer, mas quando acontece é absolutamente mágico. Era algo que tinha de ser, não acho que seja possível perseguir esse tipo de sucesso. Lançámos o disco em junho de 1998 e em dezembro estávamos no Pavilhão Multiusos [atual MEO Arena]. Isso não faz sentido nenhum, uma banda totalmente desconhecida de repente estar a tocar numa sala dessa dimensão. Isso faz perceber que era um fenómeno um bocado descontrolado. Confesso que só percebi o sucesso que tínhamos nesse concerto. Até aí, achava que havia uma data de miúdos malucos atrás de nós nos concertos, mas que eram sempre os mesmos. Quando se marcou o Pavilhão Multiusos eu disse que era melhor não porque era muito grande e que não ia aparecer ninguém. Foi aí que percebi que realmente a nossa música tinha chegado a muita gente.
Foi difícil para vocês, tão novos, gerir esse sucesso repentino?
Não é fácil gerir o sucesso e ninguém está habilitado para lidar com isso de forma repentina. Lembro-me de uma vez, no supermercado, só haver uma caixa aberta e quando chegou a minha vez as empregadas correram para a caixa para me atenderem. Tive momentos assim deste género, muito absurdos, de pensar, “mas porquê?”. Na minha cabeça, não fazia sentido aquele tipo de comportamento. De facto, passado dois ou três anos, deixamos de ser novidade e as pessoas já não ligavam tanto. Faço uma vida perfeitamente normal. Ando muito de metro e não sinto sequer as pessoas a olharem para mim. Acho que em Portugal as pessoas estão-se a borrifar para essa ideia da fama. A não ser os miúdos mais novos que gostam de outros miúdos famosos. Acho isso normal. Mas até acho ridículo que uma pessoa em Portugal – que é um país tão pequeno – se sinta importante. Sempre achei muita graça às pessoas que se acham muito importantes porque têm uma profissão que as torna conhecidas. Acho genuinamente piada porque não vejo onde está essa importância.
A rainha D. Maria II faz 27 anos e Eugénia Maurícia, camareira-mor de Sua Alteza Real, está decidida a fazer-lhe um bolo de agrião para comemorar. É um dia mesmo muito importante, até porque, por ocasião do seu aniversário, a rainha vai receber o maior de todos os presentes: vai ter um Teatro Nacional com o seu nome! Mas a tarefa não se afigurada nada fácil, especialmente porque a rapariga não se consegue lembrar da receita.
Enquanto tenta descobrir os ingredientes necessários, Eugénia, personagem aqui interpretada por Joana Brito Silva, vai percorrendo a exposição e, fazendo uso do seu espólio, vai contando a história do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II), desde a ideia da sua construção até à atualidade.
“Neste percurso, passamos por vários espetáculos que foram encenados no D. Maria, falamos de várias pessoas que trabalharam no teatro, lembramos vários momentos políticos e da história do nosso país, e mostramos como é que o teatro nacional se foi moldando ou reagindo a esses mesmos eventos políticos. E, claro, como é que foi, também, influenciado por eles”, diz a atriz.
A Joana Brito Silva junta-se, adiante na visita, Mariana Fonseca, com quem divide a criação do espetáculo. A dupla é fundadora da Lobby Teatro, uma companhia que tem como propósito fundamental promover criações e textos originais de artistas emergentes, contribuindo para a renovação do tecido artístico, e que se destaca pelos seus projetos multidisciplinares e pelo trabalho que desenvolve no seio de comunidades que vivem situações vulneráveis, em locais com acesso diminuto à cultura.
Neste espetáculo, Mariana assume várias personagens, que vão aparecendo durante o percurso. “Interpreto a Dona Amélia Rey Colaço, que foi responsável pela Companhia do Teatro Nacional durante 45 anos; entro também como uma bruxa de Macbeth, a peça escocesa de Shakespeare; depois volto a entrar como uma capitã de Abril, e por último, sou a Dona Maria II, a menina dos anos”, adianta.
Na visita dirigida aos mais novos, além da história do teatro e da história do país, são abordadas uma série de questões importantes, como o racismo, a igualdade de género ou a importância da democracia e da liberdade. “A empatia deve ser cultivada desde pequeninos. Se os temas forem normalizados, eventualmente deixará de ser uma questão e isto é o cenário ideal”, acrescenta Mariana.
Precisamente por ser criado para crianças, O Bolo de Aniversário de Agrião revela-se um verdadeiro desafio para as atrizes. “A peça pede um diálogo quase constante e muitas vezes não se conquistam as crianças de forma imediata. Mas normalmente mantêm-se agarradas, até porque os adereços pedem isso. Há agriões a voar, panelas a arder, extintores para apagar o fumo… portanto achamos que o desafio está cumprido. Mas sim, é difícil”, admite Joana.
A exposição Quem és tu? — Um teatro nacional a olhar para o país reflete sobre a história do D. Maria II nos últimos 100 anos e a sua relação com Portugal. A partir de fotografias, trajes, maquetes, desenhos, filmes, objetos de cena e arquivo administrativo e criativo, é uma viagem que começa com a instauração da ditadura militar pelo golpe de 1926 e que explora as muitas realidades de quase um século de história, cada uma delas procurando o que existe de comum entre a memória coletiva e a identificação pessoal. A mostra pode ser visitada no Museu Nacional do Teatro e da Dança até ao próximo dia 29 de dezembro.
O Bolo de Aniversário de Agrião, a visita encenada a esta exposição, acontece nos dias 3 e 17 de novembro, e 1 e 15 de dezembro, às 10h30. A participação é gratuita, mediante inscrição prévia para se.mnteatroedanca@museusemonumentos.pt. Há também sessões para escolas agendadas de 27 a 29 de novembro, às 10h30 e às 14h30.
Sob a égide de dois dos mais notáveis pintores venezianos do século XVIII, Canaletto (1697-1768) e Francesco Guardi (1712-1793), o Museu Calouste Gulbenkian volta a colaborar com o Museo Thyssen-Bornemisza, mais de uma década depois da exposição dedicada ao pintor francês Henri Fantin-Latour. Em Veneza em Festa. De Canaletto a Guardi estão reunidas mais de meia centena de obras das duas instituições, destacando-se a pintura e a gravura, mas também os livros (Veneza foi o maior produtor de livros de luxo do mundo), os têxteis, uma escultura de Antonio Corradini (1688 – 1752) e um notável modelo do Bucentauro, a aparatosa embarcação cerimonial do doge que surge representada em inúmeras pinturas da época, como se pode testemunhar, muito em particular, num soberbo Canaletto aqui presente.
Tendo como principal foco as muito celebradas vedute, ou seja, as vistas panorâmicas daquele que, nas palavras da curadora Luísa Sampaio, é porventura “o mais maravilhoso conjunto arquitetónico do mundo”, a exposição dá particular enfoque às representações das feste, nomeadamente as celebrações relacionadas com a Ascensão, muito ligadas à união da cidade ao mar, e aos sempre muito curiosos capricci, “arquiteturas fantasistas imaginadas pelos artistas”.
Ao longo do percurso expositivo, é inolvidável redescobrir a capacidade singular da pintura de Guardi em fixar a atmosfera da Sereníssima (uma certa intimidade, ou até “um traço de melancolia”, como observa António Filipe Pimentel, diretor do Museu Gulbenkian), através de um conjunto precioso de obras adquiridas por Calouste Gulbenkian (19 no total, que fazem do museu lisboeta o possuidor da maior coleção de pinturas do artista). Destacam-se especialmente três delas, recentemente restauradas e reconhecidas como das prediletas do colecionador: A festa da Ascensão na Praça de São Marcos, Regata no Grande Canal e As Comportas de Dolo.
Em contraste com o olhar de Guardi, o último dos vedutiste, um mestre anterior havia afirmado a pintura de vistas na Veneza do século XVIII. Através do rigor geométrico e da forma, a pintura de Giovanni Antonio Canal, dito Canaletto, ali está para revelar Veneza em todo o seu esplendor. Do museu madrileno, detentor de um dos mais relevantes conjuntos de obras de artistas venezianos do século XVIII, chegam os imponentes A Praça de São Marcos em Veneza, O Grande Canal Visto de San Vio e O Bucentauro, ou quadros de menor dimensão, mas igualmente relevantes, como A Escola de São Marcos e Capricho com Colunata no Interior de um Palácio. Característica comum a todas estas pinturas, o olhar quase teatral que o artista lega às “cenas”, ou não tivesse Canaletto feito a sua formação com o pai, o cenógrafo Bernardo Canal.
Para além dos Canaletto, da coleção do Museo Thyssen-Bornemisza chegam ainda pinturas de outros mestres daquele período, como Michele Marieschi, Bellotto (a paisagem imaginada em Capricho com Rio e Ponte), Piazzetta (com dois retratos venezianos), Pietro Longhi (uma prodigiosa cena do quotidiano palaciano em As Cócegas) e um Tiepolo (A Morte de Sofonisba) de “pincelada rápida”, onde o artista cita deliberadamente As Bodas de Canaã de Veronese, como observa Luísa Sampaio. Afirmando a afinidade que Calouste Gulbenkian nutria pelas representações pictóricas de Veneza e o seu “gosto transversal” sobre o tema, a exposição inclui, a fechar, três pinturas do século XIX e início do século XX. De salientar ainda um conjunto de doze gravuras de Antonio Visentini segundo Canaletto, pertencente às coleções dos Musei Civici di Venezia, que ajudam a entender a popularidade (e o interesse comercial) que os vedute tiveram ao longo do século XVIII junto dos visitantes que os entendiam como postais ilustrados da outrora chamada “rainha do Adriático”.
Uma Veneza quase imersiva
Embora não seja, longe disso, uma exposição imersiva – até porque, como atenta Luísa Sampaio, nada como ter presentes “as obras de arte reais” – Veneza em Festa oferece ao visitante o verdadeiro “ambiente veneziano” através da reprodução dos sons da cidade, captados in loco, nomeadamente o dos sinos das torres e das igrejas da cidade e da água nos canais.
Como complemento, a exposição estreia no Museu Calouste Gulbenkian um novo recurso de mediação digital assistido por inteligência artificial. Através do chatbot Venez.I.A., os visitantes podem aceder através de smartphone a todo um conjunto de informações detalhadas a propósito das obras em exposição e curiosidades sobre a história de uma cidade milenar.
Ao longo dos próximos meses, destaca-se uma programação paralela que inclui visitas guiadas, oficinas e workshops, bem como dois concertos de música de câmara. O primeiro acontece já a 2 de novembro, com o Ensemble Alorna a interpretar peças dos venezianos Vivaldi, Albinioni, Galuppi e Plati.
Patente até 13 de janeiro, este maravilhoso “passeio pela pequena Veneza” agora instalada na Gulbenkian seguirá, ainda nos primeiros meses do próximo ano, para o Museo Thyssen-Bornemisza em Madrid.
“Danças e histórias entre a vida e a morte, a morte e a vida”, anunciam os atuais diretores artísticos do Alkantara Festival, Carla Nobre Sousa e David Cabecinha, no texto de abertura do programa deste ano. O histórico festival de artes performativas de Lisboa, fundado há mais de 30 anos por Mónica Lapa enquanto Danças na Cidade, e desde 2005 com a atual denominação, percorre uma dezena de palcos, dos institucionais CCB, Culturgest, Gulbenkian e São Luiz aos alternativos Casa Independente e Espaço Alkantara, passando pela Biblioteca Palácio Galveias, Casa da América Latina, Teatro do Bairro Alto e um antigo escritório em Marvila, agora nomeado Winter Garden.
Chegam da América do Sul, da Europa, de África ou do Médio Oriente, e são mais de uma dezena de manifestações artísticas onde “as vidas carregam o peso da violência, do luto, da injustiça”, mas também “a possibilidade de versões mais otimistas do futuro”. Enquanto programadores, Carla e David acreditam que, “quando as propostas dialogam entre si no conjunto do festival, apesar de tantas histórias de cansaço e desilusão, há uma possibilidade para a esperança”.
Assinadas por artistas originários da Amazónia colombiana, como Waira Nina, do inóspito e maravilhoso noroeste argentino, como Tiziano Cruz, ou de África, como Mamela Nyamza e os seus 10 intérpretes de diferentes origens étnicas, o festival compreende mais de uma dezena de espetáculos de excelência, dois programas com curadorias convidadas, conversas, filmes e “outros encontros”, onde se destaca um concerto dedicado à música de Gal Costa por Àkila a.k.a Puta da Silva, a 30 de novembro, na Casa Independente, no Intendente.
Alguns destaques
O festival começa quinze dias antes, na Culturgest, com A Noiva e o Boa Noite Cinderela, da artista brasileira radicada em Amesterdão Carolina Bianchi. Quando, em 2023, o espetáculo estreou, no Festival de Avignon, enquanto “capítulo primeiro” da Trilogia Cadela Força (que terá sequência em 2025 e conclusão no ano seguinte), o debate sobre violência de género e abuso sexual de mulheres ganhou forte protagonismo em eventos paralelos ao certame. Em causa, um objeto artístico perturbador, desconcertante e inovador que, partindo da história de Pippa Bacca – violada e assassinada durante a Bride on Tour, uma performance em que a artista e feminista italiana viajava, vestida de noiva, entre Milão e Jerusalém – começa por percorrer a história da arte, no formato de uma palestra onde se abordam representações e histórias verídicas de mulheres brutalmente violadas e assassinadas.
Se, na primeira parte do espetáculo, se instala o desconforto pela crueza das narrativas, na segunda, Bianchi desafia diretamente o público a descer ao inferno da violência sexual e do feminicídio, tomando uma mistura de “boa noite Cinderela”, também conhecida como “droga da violação”, e deixando o seu corpo vulnerável à mercê de oito performers.
Se Carolina Bianchi e a sua companhia Cara de Cavalo prometem marcar esta edição do Alkantara Festival, é com o martirizado Médio Oriente em pano de fundo que chegam dois pequenos tesouros a descobrir: O corpo está aqui, fora de campo, de Alia Hamdan (Espaço Alkantara, 19 e 20), e Querida Laila, de Basel Zaraa (Biblioteca Palácio Galveias, de 22 a 30).
À hora em que escrevemos estas linhas as bombas continuam a cair sobre o Líbano. Quando Alia Hamdan apresentar esta performance em Lisboa, não o sabemos, mas tememos que as bombas continuem a cair na sua cidade natal, Beirute, e noutras do seu país. O corpo está aqui, fora de campo não é sobre os ataques israelitas à capital libanesa, mas será impossível não pensar neles quando, à nossa frente, estiver uma mulher de pé, próxima do seu duplo, enquanto uma voz narra a estranha experiência de um tempo em coma. O estado profundo de inconsciência em que mergulhou começou a 4 de agosto de 2020, quando uma fortíssima explosão na zona portuária “afetou a cidade como um todo, num único instante”. Segundo a autora, “esta performance é uma tentativa de retratar uma temporalidade congelada, gerada por aquele acontecimento”, refletindo sobre a ausência de responsáveis e de consequências políticas decorrentes desse acontecimento que varreu largas zonas da cidade, matou mais de duas centenas de pessoas e feriu milhares.
Quanto a Basel Zaraa, nasceu e foi criado num campo de refugiados palestinianos na Síria. Os seus avós foram expulsos da Palestina em 1948 e, desde então, a família de Zaraa nunca recebeu cidadania de qualquer outro país. Em 2010, este músico e artista de rua conseguiu chegar ao Reino Unido onde se fixou e foi pai de uma menina, a Laila. Certo dia, a filha perguntou-lhe onde cresceu e porque é que não podiam ir lá. Basel decidiu então construir uma maqueta da sua casa de infância em Yarmouk, perto de Damasco, naquele que chegou a ser o maior campo de refugiados palestinianos, hoje praticamente destruído. Querida Laila desafia-nos a pensar como “a guerra e o exílio definem espaços públicos e domésticos”, colocando cada um de nós no lugar da filha de Basel, sentados em frente à maqueta da casa, com os auscultadores de um velho walkman, descobrindo “objetos, fotos, sons e cheiros da história” de resistência e migração forçada da família da pequena Laila.
Outro dos destaques desta edição é Nigamon/Tunai (dias 16 e 17, no Teatro do Bairro Alto), espetáculo nascido da colaboração artística entre comunidades indígenas do Canadá e da Colômbia. As palavras que dão título a este “manifesto poético” significam, ambas, “canção” em anishinaabemowin e inga, respetivamente. A primeira, uma língua indígena do Canadá, de onde é natural a encenadora, escritora e atriz Émilie Monnet. A segunda, a língua de um povo homónimo que habita a Amazónia colombiana, terra natal de Waira Ninga, artista interdisciplinar que coassina, com a amiga canadense uma “peça performativa” onde os territórios de ambas – o norte e o sul – se entrelaçam num “valioso intercâmbio alimentado pelos conhecimentos vivos, as cosmogonias e as lutas que as unem”. Entre essas lutas, o facto de, no território do povo Inga, as empresas petrolíferas e mineradoras estarem a destruir ecossistemas inteiros para saquear recursos. Nomeadamente, o cobre, minério fundamental para a cultura Anishinaabe no Canadá, onde essas mesmas empresas depredadoras prosperam.
Incontornável, mais a mais quando o tema da imigração continua a marcar a agenda mediática, a mais recente criação de Keli Freitas Volta para a tua terra (21 a 23, no São Luiz Teatro Municipal). Nesta peça biográfica, a artista brasileira partilha o processo de autodescoberta desencadeado quando partiu em busca do rasto da sua bisavó Virgínia, portuguesa, natural de Torres Vedras. Estando há sete anos em Portugal, Keli assume a sua condição de imigrante para questionar o que é isso de ser cidadã de um país, como se exercem direitos de cidadania, como se define se uma terra é deste ou daquele. Ladeada em palco por Ana Gigi, amiga que conheceu já em Portugal e que também tem na sua genealogia uma história de migração, o espetáculo oferece uma reflexão sobre essa condição, desafiando conceitos estabelecidos de pertença e de identidade.
Dois programas convidados
Cartas do Fogo, pela plataforma Terra Batida, e Transmissão, pela BRABA.plataforma, são duas curadorias convidadas pelo Alkantara Festival para esta edição de 2024.
Na Casa da América Latina, a 29 e 30 de novembro, a Terra Batida, dirigida por Ritó Natálio, propõe “um diálogo com o pensamento indígena contemporâneo”, através de uma sessão onde pontuam Cartas do Fogo, leitura-performance de Ellen Pirá Wassu, poeta indígena do povo Wassu Cocal, e Ritó Natálio, escritor e performer, e a performance da artista indígena travesti amazónica Uýra Sodoma, O interesse da Amazónia não é na porra da árvore.
A BRABA.plataforma, dirigida por Gaya de Medeiros, apresenta a sua terceira mostra, intitulada Transmissão, com três criações que “olham para as memórias através de perspetivas bem distintas, mas [que] desenham no presente narrativas que deslocam a nossa perceção sobre a identidade e a história dessas pessoas que vemos em cena”: Breves Notas sobre a Digestão, de dai ida, Ovos Crus, de Artemis Chrysostomidou, e o já referido concerto de Àkila a.k.a Puta Da Silva, Da Maior Importância.
Até 1 de dezembro, há ainda para ver Wayqeycuna, de Tiziano Cruz, “um olhar cru sobre o mercado de arte e o privilégio de classe” (CCB, 16 e 17); Hatched Ensemble, de Mamela Nyamza, uma desconstrução da dança clássica, que conjuga o ballet, as danças africanas e a contemporânea (Teatro São Luiz, 16 e 17); o jantar-performance com utopias no menu de Sonya Lindfors e Maryan Abdulkarim, Deveríamos estar a sonhar (CAM Gulbenkian, 23 e 24); o aclamado A Vida Secreta dos Velhos, de Mohamed El Khatib, onde um elenco com mais de 80 anos assume como é viver o desejo sexual na velhice (Culturgest, 23 e 24); 52 Blue, performance de Francisco Thiago Cavalcanti inspirada no comportamento das baleias (TBA, 23 a 26); e Mike, uma performance duracional sobre um dia de trabalho num escritório pela consagrada performer Dana Michel (29, 30 de novembro e 1 de dezembro, em Marvila). Menção ainda para a exibição dos filmes Side Trip, do coletivo japonês Chim↑Pom from Smappa!Group, filmado em Marvila há um ano (CAM Gulbenkian, 27 e 30), e Blackface, o documentário, de Heverton Harieno sobre o espetáculo homónimo de Marco Mendonça (Espaço Alkantara, 1 de dezembro). Fora de portas, na Casa da Dança, em Almada, a bailarina e coreógrafa Vânia Doutel Vaz abre portas ao processo de criação de Violetas, espetáculo a ser apresentado na edição de 2025 do festival (30 de novembro).
Em suma, fazendo jus ao significado do seu nome, o Alkantara anda há mais de três décadas a “construir pontes entre artistas e públicos, entre geografias, culturas e expressões artísticas”, e este ano não será diferente. Sobretudo porque, olhando ao estado do mundo, elas nunca terão sido tão indispensáveis e urgentes.
“Como se atrevem?”. A pergunta gritada no palco, logo no início do espetáculo, lança o mote. “Roubaram os meus sonhos com as vossas palavras vazias. Aqui e agora é onde traçamos a linha.” Urgência Climática, a nova peça da companhia Hotel Europa, junta em cena cinco jovens ativistas pelo clima, com as suas histórias, as suas motivações e reivindicações. “Estamos perplexos com o que está a acontecer no mundo e interessava-nos o ponto de vista das pessoas que deixam a vida quotidiana para se colocarem em situações de risco”, explica André Amálio, que partilha a criação com Tereza Havlíčková.
O que os leva a agir e a enfrentar as consequências nem sempre agradáveis foi o que quiseram saber. Para isso, seguindo o caminho do teatro documental que desenvolvem na Hotel Europa, fizeram trabalho de campo durante um ano e meio. Conduziram entrevistas com especialistas em várias cidades do país, ilhas incluídas, e também em Itália e na Chéquia; falaram com pessoas noutros lugares do mundo e conheceram as suas lutas; descobriram ativistas “em escolas, na indústria da moda, em movimentos sociais, organizações políticas”.
Tudo isso está em Urgência Climática, que se vai construindo através das histórias das cinco pessoas em palco. Andreia Galvão foi a primeira a entrar no projeto, ainda antes das audições para artistas-ativistas ou interessados pelo assunto, que trouxeram as atrizes Yolanda Santos e Matilde Graça, o bailarino João Oliveira e o músico Vicente Silvestre. Com eles chegaram também as causas das organizações Greve Climática Estudantil, Climáximo, Red Rebels, Extinction Rebellion, Unidos em Defesa de Covas do Barroso, ANIMAL, Planet Save e FALA, a que se têm entregue nos últimos anos.
“Já não temos paciência”
Na primeira pessoa, contam-nos as suas histórias, mostram-nos as suas estratégias, revelam como fazem os treinos para as ações que levam a cabo, defendem as suas causas. Yolanda fala da culpa que sentem – “porque achamos que nunca fazemos o suficiente” –, Andreia narra, de forma quase inocente, a vez em que foi presa e a obrigaram a despir totalmente e a agachar-se só porque pediu para ir à casa de banho, Matilde descreve como um condutor enfurecido arrastou a sua irmã gémea pelos cabelos para a tirar do meio da estrada durante um dos protestos de desobediência civil.
“É importante haver sítios onde podemos falar sem mediação. O palco é um espaço para mostramos e depois o público pode formar a sua opinião. Muitas vezes, somos pintados como terroristas, quando estamos só a lutar pelas causas em que acreditamos e que deviam ser de todos”, diz Andreia. Yolanda reforça a ideia: “Acredito que ver histórias reais humaniza os ativistas, traz-nos humanidade e credibilidade. Porque podia ser qualquer pessoa sentada na plateia a estar aqui. Além disso, quem vem ao teatro chega mais disponível para nos ouvir do que quando está em casa a ver televisão ou no carro parado no meio do trânsito.” Dar palco a estas vozes era fundamental, acredita André Amálio. “Os problemas do clima não são culpa dos ativistas, os maus da fita não são eles e, muitas vezes, olha-se mais para os constrangimentos que causam do que para o problema que estão a combater. Devíamos estar todos a lutar pelo mesmo: a sobrevivência do planeta em que vivemos”.
Com cartazes feitos de cartão, o público é desafiado a juntar-se à causa. “Pelo clima, justiça e emprego”, “O planeta tem urgência, já não temos paciência” ou “Lutar pela nossa casa” são algumas das palavras de ordem passadas para os espectadores. “Espero que as pessoas percebam que o clima e a sua defesa também estão nas nossas mãos. O poder é nosso e somos nós que temos de o conquistar. A mudança só acontece se tomarmos parte nela”, defende André Amálio.
“O que é que precisamos de fazer mais?”, perguntam. Se todas as ações de desobediência civil não têm funcionado, talvez uma peça de teatro contribua para melhorar o mundo.
“Não é estranho? Só conseguimos ver o exterior, mas quase tudo acontece no interior.” A frase aparece escrita por cima da cabeça de um rapaz, como se fosse um pensamento. Vestido de amarelo e de cor de rosa, panamá na cabeça, meias e chinelos, ele olha para nós e sorri muito. Tem um sorriso estranho, talvez um pouco tétrico, e a sua imagem está sempre a piscar. É um dos vários personagens de O Centro do Mundo, o novo espetáculo de Ana Borralho e João Galante, que se passa praticamente todo dentro de uns óculos de realidade virtual e que se estreia no Teatro do Bairro Alto esta terça-feira, 22, e ali fica até ao dia 25 de outubro.
Depois de entrarem numa instalação de luz e som, de se sentarem numa cadeira giratória e de porem os óculos, os 28 espectadores hão de ver aproximar-se um conjunto de figuras que podiam ter saído do TikTok e dos vídeos que pululam, por estes dias, na Internet. Olham-nos de longe mas sobretudo de perto, falam connosco e rodeiam-nos de tal forma que nos sentimos transportados para uma realidade paralela de pessoas tão perdidas quanto irreais.
Ana Borralho e João Galante continuam a levar para o palco o seu olhar sobre as novas tecnologias, aquilo que consideram ser, como diz o título, O Centro do Mundo. Depois dos espetáculos Romance Familiar ou a realidade aumentada (2019) e Chatroom (2023), primeiras incursões neste universo, inventam agora um espetáculo cujo processo de criação implicou um mergulho profundo na Internet e nos vídeos que aí existem, assim como todo um rol de siglas, conceitos e tendências.
Enquanto Marco Mendonça interpreta o tal rapaz de sorriso misterioso, Maria Antunes faz de NPC, um non-playable character ou personagem não-jogável, figura de movimentos robóticos que existe nos jogos eletrónicos e que, em muitos vídeos, é imitada por humanos. “Fiquei muito, com muito medo de que algo muito mau estivesse prestes a acontecer, e por isso tive de pôr vídeos calmantes de aquários”, revela em voz off.
“O que encontrámos e o que criámos aqui pode ser uma espécie de limbo, onde aqueles seres são alguma coisa entre o fantasma e o zombie, que têm uma existência no mundo através das redes sociais, são seres fabricados, não reais”, aponta Ana Borralho. João Galante acrescenta: “Isto parece um apocalipse de zombies, um conto fantástico muito real. É a nossa versão da Alice no País das Maravilhas”, ri-se.
Por ali, fala-se quase sempre em sussurro, como os melhores criadores de vídeos ASMR (Resposta Sensorial Autónoma do Meridiano), aqueles onde se produzem sons que são suposto relaxar quem os ouve, através de vozes suaves, movimentos lentos com as mãos, barulhos feitos com a boca ou batendo delicadamente em objetos. Ana Freitas, Gustavo Sumpta, Inês Cóias e Joana Bernardo são os atores que dão corpo aos restantes personagens de O Centro do Mundo e que vão vagueando à nossa volta: uma mulher sexy que tem uma mão a tremer, “demasiado especial e inteligente”; um homem perdido, coberto de tatuagens, qual anjo negro; uma rapariga que acredita que vai ser tudo e deita lágrimas que impressionam; uma menina que luta para entender quem é e que nos olha fixamente com os seus grandes olhos azuis, como se tivesse chorado sangue.
“As pessoas partilham a sua vida pessoal nas redes e no TikTok fazem-nos através de vídeos e isso pode ser muito tocante. Por outro lado, é tudo produzido para esses vídeos, ninguém sabe o que é real e o que é ficção. E até que ponto somos avatares de nós próprios?”, interroga-se João Galante.
Ainda vamos a tempo?
Para criar este universo, a dupla inspirou-se também nas fotografias cruas que o norte-americano Bruce Gilden tem captado pelas ruas de Nova Iorque e outras cidades. “Queríamos uma estética um pouco pop trash, como se fosse uma pintura hiper-realista. É como se isto fosse um aumentar da realidade”, descreve Ana Borralho, falando da opção pelas cores fortes nos figurinos, dos lábios muito pintados de vermelho, dos olhos rodeados de tons intensos. Ingredientes que sublinham ainda mais este “mundo fantástico, mas aterrador e cheio de desespero”.
Afinal, o que diz tudo isto sobre nós? “É o sítio onde estamos”, constata João Galante, “por muito que isto nos possa divertir, há um lado de um coletivo bastante perdido e desesperado. Toda esta tecnologia pode-nos ajudar a centrar, mas é também onde nos perdemos e nos tornamos zombies. Coletivamente, vamos alimentando esta máquina do capitalismo, pensando que estamos a viver. Somos reais, mas passamos tanto tempo nisto que nos perdemos e já não nos encontramos.”
O mundo real está em risco de se perder no virtual?, voltam a questionar os artistas com este espetáculo. Haverá ainda uma linha definida a separar a realidade virtual e a experiência humana? “Está tudo bem, está tudo bem, podes sempre ligar-me, eu posso consertar isso”, garante esta NPC de tailleur azul e cabelo rosa, numa letra que já quase não se consegue ler. Depois, ainda vamos a tempo de tirar os óculos e de olhar para os outros espectadores sentados na sala.
No início, há apenas silêncio. Os intérpretes vão entrando e olhando para os espectadores na plateia. De volta, recebem os olhares do público. É dessa relação que se faz Ruído, o espetáculo de Sofia Dias e Vítor Roriz, que está na Culturgest entre esta quinta-feira, 10, e sábado, 12 de outubro. Não será por acaso que não há som nestes primeiros minutos – mesmo que o título nos remeta exatamente para o oposto. “Gosto da ideia de provocar esse choque inicial, acredito que dá mais espaço a quem está a ver para aceitar, para estar no presente”, nota Vítor. “Sim, a partir desse presente, entramos na ficção e damos lugar a um imaginário em conjunto. Este espetáculo acaba por ser também uma ode ao lugar do Teatro, onde cabem muitas ficções e onde cabem muitos gestos e movimentos, onde há mistério, e onde não sabemos o que vamos encontrar, mas onde vamos à mesma porque precisamos de ir e de estar, porque precisamos de nos desdobrar”, acrescenta Sofia.
As primeiras palavras são ditas em inglês: “What do you see?” A tradução chega numas legendas escritas em pequenos papéis e colocadas à mão, uma a uma, num retroprojetor. “O que vês?”, “Um corpo?”… Os bailarinos vão descrevendo os seus gestos e dando várias possibilidades de leitura. “Quantas palavras cabem num gesto?”, interroga-se Sofia, lembrando que um movimento não tem de ter um significado apenas e que o público menos habituado à dança se sente constrangido com a obrigação de explicar o que vê. “Como quebramos isso, como convidar e dar as boas-vindas à multiplicidade da perceção de um movimento?”, continua. Em cena, os bailarinos despojam-se de virtuosismos, de movimentos complicados e de camadas e assumem a presença dos seus corpos e das suas fragilidades frente a um público. “É bom estar num lugar e não saber”, há-de ouvir-se mais à frente durante o espetáculo. Antes disso, já a atenção se virou para a plateia, já a “massa abstrata e difusa” se revelou em caras, sonhos, expressões, gestos, vontades, e se convocaram os espectadores a – metaforicamente – subir ao palco. “É uma sensação de pertença, de que também eles podiam estar aqui em cena, um convite à imaginação, a pensarmos como vivemos o presente e como o vamos preencher. Isso acontece em todos os nossos espetáculos, mas aqui é um assunto”, afirma Vítor. “Aqueles corpos convocam a humanidade, é um apelo à empatia”, resume Sofia.
O extra poder da dança
O que há de ruidoso neste espetáculo, então? O título, explicam, surgiu já a meio do processo de criação, que foi acompanhado por cientistas do Center for the Unknown da Fundação Champalimaud, onde a dupla está em residência artística desde 2023 e até ao final deste ano. “O espetáculo não partiu desses encontros, mas fomos tendo muitas conversas, eles assistiram a ensaios e muitas das ideias que acabámos por desenvolver vieram dessas partilhas”, conta Vítor. “Ao vermos as reações deles voltámos a lembrar-nos de que a dança é uma coisa extraordinária, na qual podemos pôr tanta coisa num movimento só, e que os bailarinos têm tantas competências a que já nem prestamos atenção: a forma como ocupam o espaço, a sincronização, a escuta do outro, a improvisação… É quase um extra poder, há algo de muito especial na dança mesmo e, no palco, estamos num lado mais poético e mais livre do que na investigação científica”, diz Sofia.
O diálogo com a neurociência fez com que percebessem que o ruído é essencial à existência e à aprendizagem. “Precisamos do ruído para acedermos ao sinal. Anular o ruído é anular a nossa capacidade de compreensão”, sublinha Sofia. Tudo depende, então, do lugar para onde viramos a nossa atenção, porque há muito de periférico que é, afinal, essencial. O chiar das cadeiras da plateia, o barulho da porta a abrir e fechar, os sapatos na alcatifa do chão da sala, a presença do outro ali mesmo ao nosso lado – não haverá, enfim, tanta beleza no ruído?
Lisboa voltar a ser abalada por um grande terramoto é algo plausível. Há apenas uma questão: quando? De que forma esta ‘inevitabilidade’ se transformou num filme?
Sou de Lisboa e desde miúda que ouço esta história. A nossa maior referência em Lisboa, em termos deste tipo de eventos, é o grande Terramoto [de 1755]. Foi sempre uma coisa que me inquietou a todos os níveis, não só para o cinema, mas também para o planeamento de uma cidade. Isto fez com que, desde há muitos anos, quisesse realizar um filme baseado nesta premissa: “E se acontecer outra vez?”. Não é tanto fazer um filme catástrofe, porque isso não me interessa, nem é o tipo de cinema que me importa explorar, mas fazer uma coisa baseada na possibilidade de voltar a acontecer. E a verdade é que, falando com uma série de cientistas, a certeza é de que vai acontecer outra vez, só não sabemos quando. Esse é o tagline da campanha do filme: “se voltar a acontecer”. Decidi então explorar esta ideia neste filme.
Mas, houve uma informação real que a impulsionou…
O que aconteceu foi que, na altura em que voltei a pegar na ideia, surgiu a notícia de que um grupo de cientistas ia efetivamente trabalhar com o Governo na instalação de novos cabos submarinos com uma série de sensores que permitem o estudo do fundo do mar em tempo real. Resolvi trabalhar com esse grupo de cientistas para desenvolver a ideia.
Este não é um filme catástrofe, mas sim, um filme presságio?
(Risos) Sim, pode ser. Talvez não no nosso tempo de vida, não sabemos.
Porquê o título O Melhor dos Mundos?
O Melhor dos Mundos vem de uma frase da Teodiceia de Leibniz, aliás, é a citação com que o filme começa, em que o filósofo diz que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Isto acaba por ter uma ligação, ainda mais interessante, ao Voltaire que pega nessa ideia e a desconstrói no conto filosófico Cândido, criando a personagem de Cândido, o otimista, que, por mais tragédias que aconteçam, acredita que vivemos no melhor dos mundos, porque na realidade é o único que existe. Ou seja, para nós, terráqueos, não existe outra possibilidade senão a de viver neste mundo. E, nesse sentido, este é sempre o melhor dos mundos. O livro foi escrito no rescaldo do Terramoto de 1755. Depois disso, tudo foi posto em causa. Era a época do iluminismo, e Voltaire acabou por satirizar a teoria de Leibniz na sua famosa narrativa.
Atualmente ainda não conseguimos prever sismos e estes acontecem, independentemente, das nossas ações. No entanto, temos muita informação sobre o impacto humano nas alterações climáticas, mas continuamos a viver de forma muita egoísta. O filme também procura refletir sobre esta ambivalência?
Nós como espécie não estamos preparados para fazer uma grande mudança, seria preciso uma mudança radical. Ninguém está preparado, são coisas que demoram séculos. Assim como demorámos séculos, ou milénios, para chegar onde chegámos, também vamos demorar milénios a voltar a outra coisa. O filme não trata só deste caso concreto do terramoto, mas também serve para refletir sobre outro tipo de questões, nomeadamente, como é que as pessoas lidam com situações extremas. Por outro lado, também são abordadas questões mais profundas da humanidade que refletem a divisão entre os que querem realmente fazer alguma coisa e os outros, os que estão sempre a protelar.
A questão do aleatório, do acaso, é algo presente neste filme, mas também já o era na sua primeira longa-metragem, Linhas Tortas. Esta é uma questão sobre a qual gosta de refletir?
Sim, é uma das grandes questões que me interessam e que gosto de explorar. O acaso, a dúvida, o não estar nas nossas mãos o que pode acontecer. Isto acontece quer a uma escala maior como é o caso de um terramoto, mas também a um nível mais pessoal, nos encontros e desencontros do dia-a-dia.
Parece haver um paralelismo entre a história do terramoto, o processo de investigação científica, as incertezas, as dúvidas e a relação amorosa dos protagonistas. Concorda?
Sim, o processo de estudo científico do terramoto acaba por espelhar esse lado amoroso. Reflete a relação de encontro e desencontro dos protagonistas.
A dúvida sobre como melhor agir, o que é ético fazer e a possibilidade das previsões não se cumprirem, levam a uma discussão no seio do grupo de trabalho dos cientistas. Vivemos em constante alarmismo, numa sociedade que não permite falhas. Quis também abordar esta questão?
Sim, no filme há a questão concreta do terramoto, da possibilidade de este acontecer, mas na verdade estamos a falar de todas as questões que se levantam com a informação científica que temos. Como aconteceu, por exemplo, na pandemia. Se calhar o alerta que foi dado a partir da China foi tardio. Quando estava a acontecer, pode ter havido uma reunião parecida com a que acontece no filme, onde se questionou: avisamos ou não avisamos? Se calhar avisaram tarde demais. E quando avisaram, a pandemia já estava fora de controle. Mas isto pode acontecer noutras situações. Quando as pessoas têm uma informação tão grande nas mãos, o que é que fazem? Mesmo em situações de intimidade, no seio familiar ou entre amigos, pode surgir essa dúvida. Tais questões éticas surgem quando se está perante uma situação muito grave e isso pode acontecer quer na intimidade, quer a nível global.
Como foi feito o casting? Já tinha em mente os atores que interpretariam os cientistas Marta e Miguel?
Tanto trabalho com convites diretos a atores, como opto por um processo tradicional de casting. Neste filme quando comecei a desenvolver a ideia, pensei na materialização do argumento e da história e comecei logo a idealizar os atores, sobretudo o par protagonista. Quem será esta Marta, quem será este Miguel? Pensei na Sara Barros Leitão e essa ideia foi-se consolidando, porque conhecia o trabalho dela e por saber que, como pessoa, tinha também uma série de características que se colavam bem à personagem. Para mim, ela era a Marta. Tive a sorte de a convidar e dela aceitar e por isso não precisei de pensar num plano B. O Miguel Nunes já conhecia, já tinha trabalhado com ele. A parte complicada é conciliar agendas, mas correu bem. Já as personagens secundárias passaram por um processo de casting e, no fim, conseguimos ter um bom grupo de atores.
Existe um gap de cinco anos entre os dois trabalhos que fez para cinema. Pretende continuar a fazer cinema?
Fiz muito publicidade. E fiz a série televisa Madre Paula que foi pensada com uma premissa mais ligada ao cinema. Neste momento tenho vários projetos em desenvolvimento, em diversos formatos, ainda não financiados, em processos de candidatura. Para se conseguir fazer um filme há um longo caminho, é um procedimento difícil, mas inevitável. Mas sim, o cinema faz parte do trabalho futuro. Foi com a ficção que comecei, a primeira curta é de 1997. Sempre tive um pé no cinema, um pé na publicidade e considero todos os formatos igualmente interessantes.
O que Leonardo tem para partilhar só poderia ser feito num lugar seguro, como um jardim (aqui, o de inverno do São Luiz, hoje Sala Bernardo Sassetti), onde se instala uma tenda feita de toalhas de mesa e lençóis bordados, saídos ora das mãos mágicas de artesãs dedicadas, ora do anonimato em série das fábricas de têxteis. Comenta o autor e ator que “são um trabalho magnífico da Tati[ane] Oliveira e da Margarida Silva, a representar uma manta de retalhos de coisas novas e antigas, como uma história de vida. Há enxovais, Feira da Ladra, mas também há Ikea,” esclarece Garibaldi.
Por falar em história de vida, é isso que Leonardo se propõe contar a partir da sua chegada ao dia de hoje, o seguinte a ter completado 30 anos e ter deixado de ser jovem. Sendo agora um adulto, “já não basta fugir para debaixo das saias da mãe”, portanto, eis chegado o momento de enfrentar a ideia de que a partir daqui estamos por nossa conta.
Mas é preciso perceber como se chegou aqui, sabendo que a vida é, muitas vezes, repleta de sonhos desfeitos, carregada de dores de crescimento e, no caso, de músicas, porque Leonardo sempre quis ser cantor e, para ele, ainda hoje, a uma música corresponde uma memória.
Boas ou dolorosas, as memórias trazem canções que contam a história do agora adulto Leonardo desde o dia em que se sentiu verdadeiramente triste pela primeira vez: completava cinco anos de idade e ninguém apareceu para festejar.
O Billie Elliot da música
Nascido há 30 anos no interior de Portugal, Leonardo anunciou em criança que queria ser cantor, porque sonhava, um dia, ouvir as suas músicas a passar nas telenovelas. O sonho de ser cantor pop trouxe-lhe agruras, não só perante a incompreensão dos amigos na escola, como da família, sobretudo o pai que, olhando para o filho, apenas via deceção.
Tal como a história do adolescente inglês que, enfrentando preconceitos e contrariando a vontade da família e a expectativa da comunidade, trocou o pugilismo pelo ballet num famoso filme de Stephen Daldry, Leonardo sentiu-se “o Billie Elliot português, mas da música”, e veio estudar para Lisboa. A aventura começou, mas continuava a tristeza.
“Podemos dizer que Last Call é uma autoficção, com muita coisa minha, mas onde a maior parte são memórias completamente ficcionadas”, esclarece Leonardo Garibaldi, logo após um intenso ensaio. “É um espetáculo que andei a pensar durante dois anos, quando senti que ia chegar aos 30 e atingir a idade adulta. Como artista, quis descobrir uma identidade que fosse como que um paralelo à vida.”
Tendo como público-alvo os alunos do terceiro ciclo do ensino básico e ensinos secundário e superior, Last Call aborda muita da vivência juvenil, com especial ênfase para os dilemas da aceitação, o bullying escolar e a homofobia. Se o tom é muitas vezes grave e depressivo, o espetáculo tenta deixar muito presente que “não adianta alimentar a vitimização”. Embora Leonardo esteja triste porque deixou de ser jovem, “há que levantar os olhos e perceber o que há de bom à nossa volta.”
Esta produção do grupo Os Possessos está em cena, para o público em geral, até 6 de outubro, sempre às 19 horas. Em 2025, o espetáculo passa por Cascais e pelo Centro Cultural Gil Vicente, no Sardoal, terra natal de Leonardo Garibaldi.
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