Para uma geração que andará entre os 30 e os 40 anos, a última grande referência que subsiste do fulgor do teatro de revista remonta há mais de duas décadas, quando Filipe La Féria levou ao palco do Teatro Nacional D. Maria II Passa por mim no Rossio. Apesar de dezenas e dezenas de atores, bailarinos, autores e cantores terem, com assinalável tenacidade e perseverança, feito o esforço de não deixar morrer o género – sobretudo na sua “casa” de eleição, o Parque Mayer – ao longo dos últimos anos, são poucas, ou nenhumas, as referências que os mais jovens têm da revista à portuguesa.

Porém, desde a segunda metade de 2013, Lisboa deixou-se, de novo, surpreender por uma nova vida do teatro de revista. Primeiro, e uma vez mais, com La Féria, que leva à cena, no Teatro Politeama, a sua Grande Revista à Portuguesa. Meses depois, com o produtor Hélder Freire Costa a estrear, no coração do Parque Mayer, Lisboa Amor Perfeito. O sucesso destas duas revistas à portuguesa justifica que ambos os espetáculos permaneçam em cartaz há já longos meses. Surpreendentemente, ou talvez não, o improvável aconteceu: ao desafio do Teatro Nacional D. Maria II, pelo diretor artístico João Mota, para conceber um espetáculo para a Sala Garrett, o Teatro Praga respondeu com… uma revista à portuguesa!

Para Pedro Zegre Penim, dos Praga, “não é tão surpreendente assim criarmos uma autêntica revista à portuguesa. Sempre nos sentimos fascinados pelo género, e olhando ao nosso percurso é particularmente interessante reconhecer algumas caraterísticas do nosso teatro na revista à portuguesa”. O diretor e encenador sublinha essas similitudes em aspetos como “não nos apoiarmos numa linha narrativa com princípio, meio e fim; estabelecermos sempre uma relação de grande frontalidade com o público; ou apostarmos constantemente na colaboração interdisciplinar entre teatro, vídeo, música ou artes plásticas.”

No grande caldeirão que é criar uma revista à portuguesa cumprindo a sua melhor tradição, Tropa-Fandanga conta com textos escritos a várias mãos (a abertura da revista vinca, precisamente, essa caraterística de criação coletiva que sempre fez escola no género). Ao mesmo tempo, e à sombra dos 163 anos da história do teatro de revista, colaboram neste espetáculo criadores de diferentes escolas e sensibilidades, como os artistas plásticos Vasco Araújo e João Pedro Vale, o músico Sérgio Godinho, que assina as canções originais, o cenógrafo José Capela, ou a fadista Filipa Cardoso, presença assídua em algumas das mais recentes produções do teatro de revista que veem sendo feitas no Parque Mayer.


A estes nomes, junta-se inevitavelmente a grande atração deste espetáculo dos Praga, José Raposo. À relutância que muitos possam ter quanto a uma revista à portuguesa criada pelo coletivo liderado por Penim, José Maria Vieira Mendes e André e. Teodósio, o popular ator responde: “Tropa-Fandanga é mesmo uma revista bem à portuguesa!” Raposo refere, precisamente, a importância de fazer parte de um projeto liderado por artistas “completamente descomplexados quanto a um género que tem sido tão maltratado nos últimos anos”. “Por ser um espetáculo do Teatro Praga, espero que outros públicos, sobretudo as novas gerações que nunca viram um espetáculo de revista ao vivo, possam descobrir este género de teatro tão português.”

Tendo como tema central a guerra – num assinalar dos 100 anos do início da I Guerra Mundial e dos 40 anos do fim da Guerra Colonial –, Tropa-Fandanga proporciona uma viagem do século XX à atualidade, frisando a herança histórica da cultura popular portuguesa. Aos textos e temas musicais originais, junta-se um momento antológico, interpretado por José Raposo, de homenagem a Raul Solnado no célebre quadro da revista Bate o PéA Guerra entre Aspas; a recuperação de temas do cancioneiro popular; ou a recriação de fados célebres, como Fado Falado, que João Villaret interpretou, e Fado do 31, de Pereira Coelho. Porque, como nos confessou Vieira Mendes, “nesta ‘guerra’ queremos espalhar a revista pelo mundo e fazer do fado a sua banda sonora.”

Inicialmente concebidos para zonas com poucas ou nenhumas árvores, estes objetos, da autoria do artista plástico Leonel Moura, têm agora um novo modelo inspirado nas obras de Mondrian e Van Gogh, encomendado por holandeses.

Fabricados através do processo de rotomoldagem, estes novos jardins mantém uma grande variedade de cores vivas, mas oferecem uma maior robustez e resistência. Aliando o conceito de mobilidade a um design provocador e inovador, os jardins permitem diversas utilizações, para interior e exterior, podendo ser usados em projetos de renovação urbana ou eventos pontuais. Os utilizadores podem ainda interagir com os objetos, uma vez que os podem dispor da forma que desejarem de forma a criar sombra ou espaço de convívio, gerando animação e um ambiente lúdico.

Recorde-se que o projeto Jardim Portátil foi concebido em 2002 e apresentado pela primeira vez na Bienal de Valencia de 2003. Os primeiros modelos, realizados em resina, têm sido expostos e comercializados em várias partes do mundo, incluindo Valência, Xangai e Lisboa.

Os jardins portáteis são comercializados em Portugal pela Robotarium.

O espaço existe! É a Galeria da Boavista, localizada a meio caminho entre Cais do Sodré e Santos, numa rua (a da Boavista) onde, na Lisboa de outros tempos, existiam dezenas de lojas de ferragens. O espaço é uma galeria municipal de arte contemporânea que, ao longo das próximas quatro semanas, está por conta da Máquina Agradável, da AADK – Arquitectura Actual da Cultura e de um sem-número de artistas independentes predispostos a “combater a indiferença cultural” e criar sem limites num espaço ao dispor. Por isso mesmo, o que aqui irá ler a seguir não faz referência a uma programação de antemão determinada, porque, como salienta a organização, “cada dia é, garantidamente, uma experiência nova”.

Entrar! A partir de 28 de novembro, seja bem-vindo. Ir “à galeria” pode ser uma prática quase diária até à chegada do Natal. Ao longo da semana, as portas abrem-se ao fim da tarde; aos fins-de-semana, tudo começa mais cedo – e aos domingos, até há atividades para os mais pequenos. Porque ali, na Boavista, acontece sempre qualquer coisa capaz de nos surpreender. São as mostras de artes plásticas, as jam sessions, as performances, a dança e tudo mais, porque a imaginação é o único limite para a criação.

Tendo em conta a experiência do ano passado – quando o evento ostentou o sugestivo título Ora bolas, há espaço, vamos usá-lo! –, na galeria pretende-se “gerar um acontecimento baseado na experimentação, no possível, no cruzamento de ideias e de áreas, sem a pressão dos resultados e sobretudo do sucesso”. E, nem mesmo o dinheiro que trouxer no bolso é um problema para dizer “presente”. Basta uma pequena contribuição para ajudar a alimentar o projeto e, é só entrar…

Ver! Como referimos, o Demimonde na Galeria da Boavista recusa os espartilhos de uma programação previamente definida. O espaço e os acontecimentos estão por conta dos artistas. Confirmam-se as presenças regulares de Vânia Rovisco, Ana Bigotte, Tiago Barbosa, Daniela Silvestre, Ana Monteiro, Francisca Santos, Cláudio da Silva, Joana Cotrim e outras dezenas de criadores das mais variadas áreas artísticas.

Num ambiente de partilha, a arte combina muito bem com o convívio. A galeria não é, evidentemente, um bar nem um restaurante, mas haverá sempre um ou outro petisco e um copo de vinho para animar a troca de dois dedos de conversa com os artistas.

Criar! E se lhe dissermos que parte da experiência desta iniciativa passa por deixar em aberto a hipótese de entrar, ver, mas também, criar. Ao longo destas semanas, o desafio é lançado a quem ouse agarrar a oportunidade de mostrar o seu lado mais criativo. Desde que haja espaço, fica ao seu critério passar de membro do público a criador.

Demimonde na Galeria da Boavista deverá funcionar de quinta a domingo mas, aqui, quem mais ordena são os artistas. Por isso mesmo, até 15 de dezembro – apesar da organização considerar que este prazo pode muito bem ser elástico! – mantém-se o Open Call a artistas e criadores. As informações básicas para apresentar propostas estão disponiveis na página do Demimonde no facebook.

Porque há sempre um grande grau de imprevisibilidade num projeto que não quer ser, de todo, previsível, arrisque ir passando na Galeria da Boavista. Espetador ou/e criador, garantimos que se vai surpreender.

Como dizia Jean-Jacques Brochier, os filmes de Luis Buñuel (Espanha, 1900 – México, 1983) “manifestam uma unidade na diversidade notável”. Dadas as contingências de um percurso de vida acidentado – destacando-se o exílio mexicano, nacionalidade que viria a adotar –, este natural de Aragão, que estudou nos Jesuítas e acabou por se tornar num dos artistas malditos para a igreja católica, conheceu os mais diversos sistemas de produção. A sua obra, muitas vezes controversa e polémica, compreende o filme surrealista, o melodrama mexicano e “a odisseia histórica ou burguesa”. Díspar nos conteúdos, é certo, mas sempre fiel aos princípios de realização, à dedicação humanista e à “denúncia das alienações” que continuaram a ser as mesmas dos anos de 1930 até ao fim da vida.

Para homenagear este grande mestre do cinema, a Cinemateca Portuguesa dedica, no âmbito do CineFiesta, um dia inteiro (23 de novembro) a Buñuel, com três obras-primas de fases distintas do percurso do cineasta. Em complemento, o crítico de cinema e antigo diretor da Filmoteca Española e do Instituto de Cinema Espanhol, Miguel Marías, apresenta uma conferência em torno da filmografia e do percurso do realizador, que assinou mais de três dezenas de obras em países como França, Espanha, México e Estados Unidos da América.

(Re)descobrir Buñuel

A primeira proposta da Cinemateca e do CineFiesta para descobrir, ou redescobrir, o cinema de Luis Buñuel é o seu primeiro filme a solo. Sucessor de Un Chien Andalou (uma “obra capital sob todos os pontos de vista”, como considerou Jean Vigo – filme de autoria partilhada com Salvador Dáli), A Idade de Ouro (L´âge d´Or, 1930) é, como o próprio Buñuel disse, “uma película romântica executada em pleno frenesim surrealista”, onde “o instinto sexual e o sentimento da morte formam a substância do filme”. Filmado e produzido em França, a obra legou algumas das cenas mais inesquecíveis do cinema, como Lya Lys a chupar um dedo do pé de uma estátua, um angélico Jesus Cristo seguido por apóstolos libertinos atravessando a ponte de um castelo ou o pintor Max Ernst a encarnar um bandido moribundo.

´A Idade de Ouro’ (França, 1930)

 

Filmado no México, Nazarin (1960) é uma adaptação do romance de Benito Pérez Galdós e o filme onde habita “o único padre ´positivo´ na obra de Buñuel”. A história desenvolve-se em torno de um clérigo que renuncia aos bens materiais e toma a defesa dos oprimidos. A opção valer-lhe-á a humilhação, a violência e a prisão imposta pelos seus semelhantes. Uma obra polémica que dividiu opiniões, tendo sido proibida, à época, em Portugal.

Este pequeno ciclo termina com Tristana – Amor Perverso (1970), obra realizada na Europa, com Catherine Deneuve e Fernando Rey a interpretar os papéis principais. Tal como NazarinTristana adapta um romance de Benito Pérez Galdós, e narra a história de uma jovem inocente seduzida por um galanteador mais velho. O filme retrata as perversões sexuais, o desejo e as obsessões – temas muito presentes nesta fase da filmografia de Buñuel – que, aqui, conduzem a um desfecho trágico.

Como é que Mary Poppins se prepara para salvar o mundo?

Na verdade, Mary Poppins não salva nada! [risos] Tudo parte das promessas de um futuro brilhante e maravilhoso que ela vem anunciar. Ela promete um mundo radioso que as outras personagens vão rejeitar, provavelmente, porque já não acreditam em nada. Esse é o lado político que parece estar presente na peça, estabelecendo um paralelismo entre esta Mary Poppins e aqueles que tudo prometem. Há uma personagem na peça que diz “somos novos demais para ter já um futuro tão viçoso”, e isso sublinha aquilo que nós, sobretudo os jovens, estamos a viver quando nos dizem que temos de passar um mau bocado para merecer dias melhores.

Mas, apesar de já não ser possível acreditar em promessas, as coisas ainda correm bem a Mary Poppins. Ou não?

A peça começa com um monólogo que corresponde à apresentação dela para conseguir um novo emprego. Na verdade, acho que também ela já viveu melhores dias, e agora até tem de se sujeitar a entrevistas de emprego…

Porquê Mary Poppins?

Porque foi dos filmes que mais vi na infância. Lembro que o tinha gravado numa cassete VHS e o revia vezes sem conta. Devia ter uns quatro anos quando o vi pela primeira vez, portanto, nem sequer sabia ler. Curioso é que, quando aprendi a ler e o voltei a ver, fiquei com a sensação de que o entendia desde sempre.

Como é que nasceu a peça?

Foi graças ao [Jorge] Silva Melo. Na altura estava a fazer A Morte de Danton, de Buchner, com os Artistas Unidos, e ele falou-me de um encontro de jovens dramaturgos, promovido pela Sala Beckett, em Barcelona. Vi como poderia inscrever-me e enviei o currículo. Para participar era necessário apresentar um texto dramatúrgico inédito, para um espetáculo de cerca de 20 minutos. O tema era A Era dos Desejos

E como é que ligaste essa “era dos desejos” a Mary Poppins?

A minha visão da Mary Poppins é a de uma fada-madrinha sem varinha, logo associei a personagem a alguém que realiza desejos. Como estava com uma enorme dificuldade em iniciar o texto, lembrei-me de um monólogo que tinha escrito em 2010 e adaptei-o à “voz” da Mary Poppins. Depois, decidi coloca-la junto de uma nova família, que não se inspira na do filme, nem sequer diretamente numa família portuguesa. Digamos que o que se passa nesta peça poderia acontecer hoje, em qualquer lugar do mundo.

O espetáculo acabou por ser feito em Barcelona, mas também nalgumas cidades dos arredores de Lisboa. Como é que o público tem reagido a esta versão de Mary Poppins?

A minha Mary Poppins é muito latina, muito mais descontraída e histriónica do que aquela personagem tipicamente britânica do filme. Por isso, alguma estranheza acaba por se refletir no público, e surpreendê-lo. Em Barcelona, como a peça foi representada em catalão e inglês, a musicalidade que tentei imprimir ao texto ficou algo comprometida e, talvez, a sensação de estranheza que passou para quem a viu lá tenha sido devida a isso mesmo.

Como é que o ator Ricardo Neves-Neves se transformou em dramaturgo?

Foi ainda no Conservatório que comecei a escrever, mas sem a pretensão de fazer da dramaturgia a minha profissão. Aquilo que queria era ser ator. Um dia, umas notas que tomei acabaram por se transformar numa peça que dei a uns colegas para ler. E, às tantas, como a tinha escrito, acabei por encená-la. Começou por chamar-se O Regresso de Cassandra, mas achei mau e mudei para O Regresso de Natacha… confesso que não entendo aonde é que vi as melhoras [risos]. Por incrível que pareça, essa peça, que escrevi em 2005, continua a ser muito solicitada e ainda há pouco tempo foi representada, apesar de, confesso, sentir por ela algum desconforto.

Para além de teres trabalhado com grupos como os Primeiros Sintomas, és fundador do Teatro do Eléctrico, onde tens desenvolvido a maior parte do teu trabalho enquanto dramaturgo e encenador. Como é que nasceu esse projeto?

Poucos meses depois de acabar o Conservatório, em 2006, reuni colegas e começámos a trabalhar juntos, apesar de, oficialmente, o Teatro do Eléctrico ter sido fundado dois anos depois. Foi, também, a resposta que encontrei para poder continuar a trabalhar com os meus colegas de turma e, assim, desenvolvermos um projeto que considero dotado de muita seriedade e empenhamento. Acima de tudo, o Teatro do Eléctrico dá-nos prazer. E isso, por vezes, é muito mais importante do que um eventual retorno financeiro.

O fado tem muitas vezes associado a ideia de destino e, por isso, é inevitável perguntar quando é que sentiu que o seu destino era o fado?

Foi relativamente cedo. Comecei a cantar o fado aos 23 anos e um par de anos depois ficou claro na minha cabeça que havia de ser esse o meu destino. O início foi feito timidamente e de forma amadora, mas o público aceitou-me muito bem. Até hoje.

Recorde-nos a sua primeira gravação.

O meu primeiro disco era um single, inserido num disco do muito popular Grupo Mário Simões. À época editavam-se discos de 45 rotações com quatro faixas e eu gravei um fado de minha mãe [a fadista Lucília do Carmo] acompanhado, imagine, por piano, guitarra elétrica, bateria, baixo e um coro vocal. Uma autêntica loucura… mas que passava na rádio de manhã, à tarde e à noite…

Que fado era esse?

Chamava-se Loucura, um dos grandes fados de minha mãe, com autoria de José de Sousa, e o único que eu sabia cantar à época.

O seu segundo disco também não foi uma gravação propriamente convencional para aquilo que era o fado…

Nada mesmo. Foi gravado com uma orquestra sinfónica, dirigida por um grande músico, o maestro Joaquim Luís Gomes, referência, infelizmente esquecida, da nossa música ligeira. Foi também um grande sucesso junto do público e isso convenceu-me nitidamente que este seria o meu caminho. A partir dai, nunca mais parei…

Mas, ao que se sabe, o seu pai tinha outros projetos para si…

Infelizmente o meu pai faleceu antes de eu ter abraçado este percurso. Mas importa referir que mais do que ter projetos para mim, o meu pai delineou-os muito bem. Quando acabei o então 7.º ano do liceu, mandou-me estudar idiomas para um colégio na Suíça. Era um sítio para filhos de milionários, e sabe-se lá os sacrifícios que meu pai e minha mãe fizeram para eu poder estudar ali. Em relação ao fado, quando era miúdo e cantava, o meu pai emocionava-se muito, mas deixava bem claro: “mais artistas na família, não!”. Hoje, e penso não estar enganado, estou certo que estaria muito orgulhoso com a decisão que tomei. Até porque, para ele, um princípio fundamental era que qualquer coisa que fizéssemos na vida fosse bem feito.

E a sua mãe? Como é que depois dos sacrifícios feitos para que tivesse uma vida, digamos, mais convencional, encarou a decisão de ser fadista?

Com a morte do meu pai, fui chamado à gestão da casa de fados [O Faia] dos meus pais. A minha mãe, que achara alguma graça aos meus primeiros passos no fado, era a vedeta, o grande chamariz, mas incapaz de assumir sozinha a gestão da casa. Passado uns tempos, comecei também a cantar lá e, como os grandes fãs dela – que eram pessoas com um entendimento superlativo do fado – lhe diziam “o teu miúdo tem jeito”, isso foi acontecendo com maior regularidade. Poucos anos depois, juntávamos na casa públicos muito diferentes, uns que vinham pela minha mãe, outros por mim, o que era extremamente interessante. Objetivamente, em relação à aceitação dela da minha vontade de ser fadista, penso que só aconteceu devido às considerações de três mestres: o Alfredo Marceneiro, que gostava muito de me ouvir e chegou a ser meu conselheiro; o Frederico de Brito, que acabou por escrever-me fados fabulosos e dizia à minha mãe “Lucília, o teu rapaz tem futuro!” – e como ele contribuiu para esse futuro! –; e o Joaquim Campos, um contemporâneo do Marceneiro, que um dia vai à nossa casa de fados para ouvir a minha mãe e me descobre como fadista. Com o apoio destes três grandes, a minha mãe acabou por aceitar a decisão.

Como é que recorda essas noites n´O Faia, lado a lado com a sua mãe?

Com grande saudade. Era formidável ter dois públicos na mesma casa de fados, o meu e o dela. Os da minha geração eram surpreendidos com a qualidade de fadista da minha mãe e os da geração dela diziam-lhe “o teu filho canta cada vez melhor”. Foram 20 anos a cantar quase todas as noites. E foi uma grande oficina – sem microfones, sem luzes, sem artifícios, com o fumo dos cigarros e dos charutos. Uma verdadeira escola…

Como é que foi passar desse ambiente para os grandes palcos?

Lembro especialmente um concerto em 1980, no Olimpia de Paris. O Gilbert Bécaud ficou muito surpreendido com a forma como eu preparei em cerca de duas horas o cenário, as luzes e tudo o resto, e geria tudo isso durante a atuação, e pergunta-me: “de onde é que tu desembarcaste?”. Eu respondi-lhe: “tu estás num país de cultura, onde os músicos estão habituados aos grandes palcos; eu estou a pisar um grande palco depois de anos a fio a cantar nas condições mais improváveis”. E contei-lhe que cheguei a atuar em sítios onde, quando não havia sequer colunas de som, a voz era transmitida por cornetas. Penso que isto explica como foi importante para mim a aprendizagem em condições pouco convencionais e depois passar para os grandes palcos. Foi isso que fez de mim um “bicho de palco”. Tanto que, onde me sinto como peixe na água é sobre o palco, e ao longo dos anos tenho dispensado o psiquiatra porque é ai, precisamente, o sítio onde faço a minha catarse.

1977 é um ano incontornável na sua carreira pelo lançamento daquele que será, porventura, um dos álbuns mais citados da música portuguesa, Um Homem na Cidade

Essa é uma apreciação vossa, não minha… Eu fiz tantos outros discos! É certo que há cantores que ficam famosos por um tema e eu tenho um disco inteiro… Mas é como se limitássemos os grande discos de Amália ao Busto e ao Com que voz, esquecendo que ela gravou outros álbuns maravilhosos.

Mas reconhece que, na sua carreira, é um momento incontornável, até pela ligação criativa ao José Carlos Ary dos Santos.

Claro que sim. Que bom na vida é olhar para trás e afirmar que tivemos alguns privilégios. Eu tive alguns, e um deles foi ter-me cruzado com o José Carlos. Foi crucial para mim e para o fado. Um Homem na Cidade nasceu da vontade dele de escrever sobre Lisboa e fazer um álbum conceptual sobre a cidade, mas, sobretudo, de disfrutar da liberdade conquistada no 25 de Abril. Eu percebi o espirito, embora tivesse sido forçado a travá-lo em momentos em que ele resvalava para o discurso panfletário. O José Carlos tratava-nos por “sobrinhas” – ele era a “tia velha” – e, em resposta às minhas objeções, dizia: “acho que a ‘sobrinha’ está muito exigente e um pouco reacionária”. Mas fi-lo ver que devíamos fazer um disco que perdurasse e que, ao longo dos anos, fosse capaz de ser sempre atual. E ele aceitou isso muito bem. Depois, com a sua genialidade, aconteceu o resto e, apesar de muita gente não acreditar, houve letras de fados naquele disco escritas em pouco mais de 45 minutos. Porque ele não era só um génio, era também um repentista. Pessoalmente, foi um grande amigo, um homem insubstituível, de quem sinto uma enorme falta.

O que é também muito interessante no disco são os autores das músicas serem compositores pouco ou nada ligados ao fado, como o Fernando Tordo, o Paulo de Carvalho ou o António Vitorino de Almeida…

Os grandes autores do fado clássico tinham desaparecido, portanto fomos à procura de novos músicos, pessoas oriundas dos mais variados géneros. Isso tornou ainda mais maravilhoso fazer esse trabalho. Foi, na verdade, uma experiência inesquecível… Mas, deixe-me dizer que das minhas ligações criativas ao José Carlos Ary dos Santos, lamento a pouca atenção dada a um disco chamado Um Homem no País [1983], que gravámos com ele já um pouco diminuído, mas ainda assim fabuloso. Era um disco muito à frente do tempo, louco mesmo…

Para além desses discos que fez com o Ary dos Santos, há algum outro de que guarde uma memória especial?

Poderia citar muitos outros. Mas gosto especialmente do Mais do que amor, é amar [1986], onde reuni alguns dos fados clássicos, aprendidos e ouvidos quando criança, e coloquei sobre esses mesmos fados versos de grandes autores portugueses que nunca haviam sido cantados, como Teixeira de Pascoaes, Antero de Quental ou José Saramago. Isso aconteceu numa altura em que o fado não estava a dar, o que fez com que esse disco esteja praticamente esquecido.

«Desde criança que ouvi cantar as grandes figuras do fado, que o faziam de uma forma absolutamente inesquecível, pelo que assumo ter pelo fado tradicional um enorme respeito.»

 

Ao longo destes 50 anos, nunca se cansou de pesquisar no fado, e até de enervar os puristas…

Às vezes, as pessoas pensam que tenho o objetivo de inventar a pólvora, de causar danos… Mas não é nada disso. Dentro da história do fado, cada pessoa tem a sua e a minha é esta que fui construindo ao longo destas décadas. Desde criança que ouvi cantar as grandes figuras do fado, que o faziam de uma forma absolutamente inesquecível, pelo que assumo ter pelo fado tradicional um enorme respeito. Contudo, se essa gente maravilhosa cantou o fado daquela forma, o que é que eu poderia acrescentar ao fado? Por isso, assumi, por exemplo, cantar o “fado vianinha” com uma orquestra, convidar um músico extraordinário como o Carlos Bica [contrabaixista de jazz] para tocar comigo, ou, como aconteceu na Alemanha, cantar fado acompanhado por uma orquestra de sopros. Vejo o fado tradicional como o meu alimento básico, mas tenho que me motivar e por isso sou, e serei sempre, um pesquisador.

Como estamos prestes a comemorar os dois anos da distinção do fado como património imaterial da humanidade, não posso deixar de perguntar como foi ter sido, ao lado de Mariza, o embaixador dessa candidatura vitoriosa?

Foi uma enormíssima honra e, quando se concretizou, foi uma alegria sem paralelo em toda a minha vida, exceção feita às de ordem pessoal, mas superior às da minha carreira. Foi uma conquista irrevogável e inapagável, e como sempre disse desde o início, Lisboa é uma cidade que tem, entre outras coisas, uma canção que é seu património, que é património dos portugueses e, desde há dois anos, de toda a humanidade.

A história de como se tornou embaixador da candidatura é bastante curiosa. Quer partilhá-la?

Em 2004, o Dr. Santana Lopes, presidente da Câmara Municipal de Lisboa à data, anunciou numa sessão de Câmara que seria lançada a candidatura junto da UNESCO e os embaixadores seriam Carlos do Carmo e Mariza. Nessa noite, uma jornalista telefona-me para casa e diz-me: “Como está, Sr. Embaixador?” E foi assim que soube, sem ter previamente conhecimento de nada. Como gosto muito pouco de brincadeiras com o fado, fui saber se a coisa era mesmo para ser levada a sério e, a partir dai, arregaçámos mangas e deitámos mãos à obra, agregando toda, mas mesmo toda a gente do fado, desde os artistas às associações e agremiações, passando por estudiosos e académicos. Até fiz algo que não está minimamente na minha maneira de ser que foi telefonar ao Dr. [Francisco] Balsemão a pedir-lhe o apoio da SIC. Contactei também o diretor da TSF e a Antena 1, e conseguimos, ao longo de seis anos, o ruído de fundo essencial para levar a bom porto a candidatura. O trabalho de todos os envolvidos foi de tal modo bem feito e com tamanha qualidade que impressionou significativamente o comité de avaliação.

Antes da candidatura, houve a “construção” de um museu para o fado. E, o Carlos do Carmo teve um papel determinante nesse projeto…

A fundação do Museu do Fado e da Guitarra Portuguesa, há 14 ou 15 anos, gerou uma enorme hostilidade junto da família do fado, que desconfiava dos “doutores” que iam invadir o território. Foi preciso construir uma relação de confiança, e esse papel coube à Dra. Sara Pereira, diretora do museu, que com o seu caráter agregador o foi fazendo. A dada altura, eu próprio dei um impulso para fazer dali a “nossa casa”. Aquando da morte de minha mãe, e como ela não era uma pessoa religiosa, tentei saber se era possível que o corpo saísse do museu para o Talhão dos Artistas no Cemitério dos Prazeres. E isso aconteceu. Logo a seguir, doei todo o espólio dela ao museu, Esta atitude motivou uma enorme confiança junto dos artistas e dos seus familiares, tendo muitos deles efetuado doações que permitiram construir um espólio que é já bastante assinalável.

Voltando à sua carreira, e como antes de iniciarmos esta entrevista, nos disse já não ser um cantor da moda, lembro que um dos temas mais tocados nas rádios portuguesas ao longo deste ano é Os Velhos do Jardim, um dueto com o Rui Veloso…

Uma surpresa para mim, sobretudo quando me disseram que era das canções mais tocadas na Rádio Comercial que é, ao que consta, a rádio mais ouvida a nível nacional. Foi muito engraçado, porque o Rui telefonou-me um dia a dizer que me ia enviar uma canção e se eu gostasse poderíamos gravá-la juntos. Confesso que, apesar de ter integrado um álbum do Rui, eu não a conhecia, pelo que, quando senti aquelas belíssimas palavras do Carlos Tê foi inevitável aceitar gravá-la.

Antes de falarmos um pouco sobre os concertos do CCB, é importante assinalar que no próximo dia 4 de novembro é lançado o seu novo disco Fado é Amor. O que nos pode contar sobre este trabalho?

O disco vai ser lançado, por coincidência, no dia de anos da minha mãe. Mas não foi uma decisão minha, foi a editora que apontou essa data. E, apesar de não poder falar muito sobre o disco, o que é interessante é a minha mãe estar em dueto comigo numa das faixas. Graças a estas novas tecnologias, isso é possível. Mais sobre este trabalho: estou rodeado de 10 miúdos e miúdas que cantam fados comigo. Há ainda um dvd sobre os bastidores do disco que é divertidíssimo.

No dia 30 de novembro e no dia 1 de dezembro, há concertos comemorativos dos 50 anos de carreira. Como vão ser estes dois espetáculos que se adivinham tão especiais?

Antes de mais, o público sensibilizou-me profundamente, porque continua a ser tão generoso comigo que já esgotou o concerto de 30 de novembro. Daí a data extra. Sobre os concertos, pretendo fazer uma síntese deste percurso. Para isso, terei comigo a Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida pelo maestro Vasco Pierce de Azevedo, que me irão acompanhar nalguns dos fados mais populares e consagrados da carreira. Terei os meus “meninos”, o José Manuel Neto, o Carlos Manuel Proença e o José Marino Freitas, um trio de guitarristas maravilhoso que me acompanharão em fados que ainda estou a selecionar. Por fim, vou ter um grande músico do mundo chamado Antonio Serrano. Para quem não sabe é espanhol, habitual colaborador do Paco de Lucia e é um exímio tocador de harmónica. Conheci-o num festival de jazz na Andaluzia, e, confesso, deixou-me impressionadíssimo.

Percebi que recebeu com enorme satisfação a notícia de ter esgotado o concerto de 30 de novembro…

Foi com muito espanto. Afinal, como lhe disse, não sou um cantor da moda nem um miúdo que apareceu agora e está a dar… É verdade que pensámos nas dificuldades que as pessoas estão a passar, e os bilhetes têm preços acessíveis. Mas não deixa de ser surpreendente que, sem grande promoção e a quase dois meses de distância, tenhamos esgotado o Grande Auditório. Agora, espero que se justifique a decisão de termos avançado para um segundo concerto. Cabe ao público dar a resposta.

A 13 de outubro de 2013, cumprem-se 40 anos sobre a estreia nos palcos da companhia fundada por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo. E, no Teatro do Bairro Alto vai fazer-se a festa.

Do Laura Alves ao Teatro do Bairro Alto

Tudo começou a 13 de outubro de 1973, no Teatro Laura Alves, na Rua da Palma, arrendado ao empresário Vasco Morgado. Os jovens Jorge Silva Melo e Luís Miguel Cintra, antigos membros do Grupo de Teatro de Letras e ex-bolseiros da Fundação Calouste Gulbenkian, haviam fundado o Teatro da Cornucópia, e apresentavam ao público de Lisboa O Misantropo, de Molière. Com este clássico, afirmavam um dos objetivos centrais da companhia: “realizar espetáculos que, pela acessibilidade dos temas e dos tratamentos cénicos, possam interessar simultaneamente o público adulto já formado pela atividade das restantes companhias e o público jovem que ainda não tem consciência nem hábitos de espetador (…)”. No elenco, para além dos diretores da companhia, figuram Glicínia Quartin, Filipe La Féria, Carlos Fernando, Luís Lima Barreto, Orlando Costa, Raquel Maria e Dalila Rocha.

Até ao 25 de Abril, a Cornucópia assina mais uma criação, Ilha dos Escravos e A Herança, de Marivaux, que estreia no Terraço do Teatro Capitólio, em março de 1974. Com a queda da ditadura, o sopro da liberdade leva a companhia a apresentar no Incrível Almadense, em julho, a sua primeira incursão no teatro de Brecht. O Terror e a Miséria no III Reich é um espetáculo co-encenado por Cintra e Silva Melo, e seria representado em dezenas de vilas e cidades do sul do país. Em Lisboa, a estreia acontece no Teatro da Trindade.

1975, o país em revolução e a Cornucópia chega à sua atual morada, o Teatro do Bairro Alto. Pequenos Burgueses, de Gorki, é a peça inaugural, após meses conturbados, sem dinheiro para o pagamento de ordenados e com poucas ou nenhumas condições para desenvolver a atividade. Depois de muitas hesitações, o espetáculo estreia a 1 de julho e conta no elenco, entre outros, com Lia Gama e Márcia Breia, duas atrizes que vão trabalhar com alguma regularidade na companhia.

No ano seguinte, dá-se a primeira colaboração de Cristina Reis com a Cornucópia, precisamente na peça infantil As Músicas Mágicas, de Catherine Dasté. Mais tarde, a cenógrafa e figurinista assumiria a codireção da companhia.

Em 1979, um momento de viragem. Jorge Silva Melo assina as encenações de Woyzeck, de Büchner, e E Não se pode Exterminá-lo?, a partir de cenas de Karl Valentin. Os dois espetáculos acabariam por ser os últimos do encenador, ator e cineasta no Teatro da Cornucópia. Mais tarde, em 1995, fundaria os Artistas Unidos.

 

Uma escola de teatro

O Teatro da Cornucópia tornou-se, provavelmente, a mais aclamada das companhias do teatro português. Ainda na última edição do Festival de Almada, Rodrigo Francisco sublinhava a sua importância, e a dessa “figura absolutamente incontornável no teatro europeu que é Luís Miguel Cintra”. O diretor do mais importante festival de teatro do país não hesitou em colocar o diretor da Cornucópia lado a lado com outros dois vultos vivos: Peter Stein e José Luis Gómez.

O trabalho de divulgação de grandes obras da dramaturgia mundial, dos clássicos aos contemporâneos, bem como a notabilização dos grandes atores e atrizes do teatro português das últimas décadas são essenciais para compreender este reconhecimento. A Cornucópia trabalhou, minuciosa e criativamente, cerca de 120 produções, com textos de autores clássicos, como Aristófanes, Plauto, Gil Vicente ou Shakespeare; contemporâneos, como Heiner Müller, Fassbinder, Lorca, Genet ou Pasolini; e gigantes da dramaturgia portuguesa, como Gil Vicente, Camões ou António José da Silva. Um punhado de espetáculos admiráveis a partir de colagens de textos, marcam também o rico percurso de uma companhia que “tocou em todas as épocas da história da literatura dramática”.

Ao longo destas décadas, a companhia conheceu muitos elencos e contou com um sem-número de atores e atrizes de teatro de referência. Ricardo Aibéo, Virgílio Castelo, Emília Correia, Margarida Carpinteiro, Teresa Madruga, António Fonseca, Miguel Guilherme, Canto e Castro, Luísa Cruz, Rita Durão, Adriano Luz, Rita Blanco, Miguel Borges, Dinarte Branco, Beatriz Batarda ou Nuno Lopes são apenas alguns dos nomes que brilharam nos espetáculos da Cornucópia.

 

Parabéns à Cornucópia

Outubro de 2013 marca o arranque das comemorações do Teatro da Cornucópia. A 5 e 12, sábados, o Teatro do Bairro Alto está de portas abertas para apresentar… cinema. Oito filmes mostram momentos de um percurso. São registos da companhia, registos de amigos, uns inéditos, outros esquecidos, que contam pedaços de história do teatro. Do teatro que a Cornucópia fez e continua a fazer.

De 9 a 31 de outubro, a Cinemateca Portuguesa associa-se à comemoração e apresenta um programa paralelo de cinema, onde surgem obras de Paulo Rocha, José Álvaro Morais, Christine Laurent, Solveig Nordlund ou Jorge Silva Melo.

No dia em que se cumprem os 40 anos da estreia de O Misantropo, a 13 de outubro, domingo, inicia-se, às 16 horas, uma tribuna livre para falar sobre a Cornucópia. É o momento ideal para aqueles que partilharam as “brincadeiras” tomarem a palavra. Todos estão convidados a intervir, bastando apenas uma inscrição prévia (até 4 de outubro) através de correio eletrónico (info@teatro-cornucopia.pt). Depois, pelas 20 horas, é tempo de brindar, tomar um copo, petiscar e conversar – são bem-vindos contributos de comes e bebes! Para encerrar a noite, o verbo dá lugar à música, e todos os músicos estão convidados a intervir.

Da nossa parte, endereçamos à Cornucópia os parabéns e o desejo de ver cumprir muitos mais anos de “brincadeiras”. E, já agora, em novembro há novo espetáculo: 4 Ad Hoc, quatro “pochades” de Eugene Labiche traduzidos por Luís Lima Barreto e Luís Miguel Cintra, com a colaboração de Cristina Reis, promete ser mais um grande momento de teatro a juntar a tantos outros que temos visto, pelo Teatro do Bairro Alto, ao longo dos últimos anos.

No sótão de um prédio de Nova Iorque prestes a ser demolido, Vitor Franz (Marco Delgado), um polícia, e a mulher, Ester (São José Correia), deambulam por entre móveis e objetos enquanto aguardam a chegada de um velho comprador de antiguidades, Gregório Salomão (João Perry). O objetivo do casal é conseguir o melhor preço pelo espólio da família Franz, da qual só resta Vitor e o irmão Walter (António Fonseca), um médico de sucesso que se afastou da família para perseguir as suas ambições.

Com a chegada do vendedor, e perante a pressão da mulher, Vitor sente-se tentado a vender tudo por um preço sem consultar o irmão, de quem está desavindo há mais de 16 anos, altura em que o pai morreu. Entre a necessidade do dinheiro e o secreto desejo de ver Walter aparecer, Vitor acaba por ser forçado a recordar e a pôr em causa todo o seu percurso de vida, desde o dia em que o pai se viu falido, no decorrer do crash de 1929 que originou a Grande Depressão, até ao momento em que está prestes a confrontar-se com o irmão e com a sombra de um passado que lhe devorou os sonhos.

‘O Preço’ tem cenário de António Casimiro e João Lourenço

 

Da autoria do dramaturgo norte-americano Arthur Miller (1915-2005), O Preço é uma peça muito pouco conhecida, escrita em 1968, e levada pela primeira vez aos palcos portugueses em 1970, numa encenação de Jacinto Ramos. Toda a ação se projeta a partir da Grande Depressão e “não será estranho ver, de certo modo, o nosso presente no drama destas vidas”, sublinha o encenador João Lourenço. Pelas suas características, a dramaturgia de Miller parece não reconhecer-se à primeira vista: “há aqui qualquer coisa de Ibsen, pelas personagens, pelo constante diálogo com o passado”, sublinha o encenador.

Nesta encenação, que surge perante a ameaça concreta de ser a última levada à cena pelo Teatro Aberto devido aos cortes nos apoios estatais, destaca-se, para além de um texto magnifico servido por uma direção notável, grandes interpretações de um quarteto de atores que encarnam extraordinárias personagens criadas pelo autor de Morte de um caixeiro viajante.

Uma palavra muito especial para João Perry que, neste seu regresso ao palco, compõe superlativamente o comprador de origem russo-judaica Gregório Salomão, naquela que, nas palavras de Lourenço, será porventura “das personagens mais modernas da dramaturgia de Miller.”

“Está ai o público.” “Que entre”, responde o Diretor de uma companhia de teatro ao ar livre ao anuncio do Criado. Por esta altura já o público percorreu um longo corredor do Teatro São Luiz e se instalou no palco. A cortina fechada oculta a plateia de cadeiras vermelhas, vazias. O público, esse, já sente as “entranhas do teatro”. Dentro de momentos, a cortina abre-se. O espetáculo está a começar, e vai representar-se Romeu e Julieta, de Shakespeare. Erguem-se as máscaras que ocultam a verdade e alimentam as ilusões, num duelo entre o lado de cá e de lá dos biombos espelhados que nos separam, a nós, o público, da plateia vazia em fundo. Este é o “teatro das convenções”, mascarado e frio, que Lorca sentia querido pelo público, normalmente indiferente e insensível à procura da verdade através da arte.

Soltando amarras, o espetáculo prossegue, como se colocasse “o céu numa sala de teatro” que agora não existe. Estamos no Largo de Camões, ao ar livre, onde se faz ouvir o “manifesto de Lorca”, lido por Margarida Vila-Nova (antes, sobre o palco do São Luiz, a actriz era Julieta), num encontro com as palavras cantadas de Poeta em Nova Iorque, pela voz de Mitó Mendes (A Naifa). Para o encenador António Pires, este momento partilhado pelo público vindo do teatro e o público acidental, ocasional ou errante da praça lisboeta fixa a mensagem de Lorca: “o público não pode nem deve intervir no mais íntimo da criação artística”. A bem da verdade através da arte.

Margarida Vila-Nova numa cena de ‘O Público’

 

Último momento. Derradeiro. No Teatro do Bairro, em torno de uma caixa de areia, todas as máscaras caem. É, por fim, o tempo da verdade através da arte, do “teatro debaixo da areia”, da imaginação e da alegoria. Aqui pulsam os sentimentos e quebra-se a máscara. O próprio Lorca deixa cair a sua, assume e aborda a sua homossexualidade, e encontra-se consigo mesmo dentro do teatro. Deste teatro onde, partidas as portas, levantado o teto, apenas restam “as quatro paredes do drama.”

O Público enquanto manifesto pela liberdade

Não é estranho reconhecer em O Público os ecos surrealistas que abalaram Federico Garcia Lorca (1898-1936) nos finais da década de vinte e princípios de trinta do século passado, por via da influência de amigos como Buñuel e Dalí.  Mas, se a peça repercute esses ecos, acima de tudo, ela é como que um manifesto pessoal sobre o teatro e a arte, onde o mundo intimo do autor, inclusive a sexualidade, se liga estreitamente às suas conceções criativas. Ao opor aquilo a que chamou o “teatro das convenções” ao “teatro debaixo da areia”, Lorca procurou um caminho para que cada um encontrasse, nas palavras de António Pires, essa “espécie de laboratório crítico de nós mesmos”. Precisamente no último, nesse “teatro debaixo da areia”, aquele que é mais livre, mais abstrato e criativo.

Ao opor aquilo a que chamou o “teatro das convenções” ao “teatro debaixo da areia”, Lorca procurou um caminho para que cada um encontrasse, nas palavras de António Pires, essa “espécie de laboratório crítico de nós mesmos”.

 

Ao aliar ao texto de O Público passagens de Poeta em Nova Iorque e outros escritos do poeta e dramaturgo produzidos na mesma fase, o espetáculo de Pires – que o encenador chega a adjetivar como “pintura surrealista” – assume o caráter de manifesto, também ele muito pessoal, a favor da liberdade criativa dos artistas, num período em que se parece querer fazer depender a criação das vontades do público.

A peça vai estar em cena ao longo de 11 noites, de 5 a 16 de junho (exceto dia 12), e conta nos principais papéis com Adriano Luz, como o Diretor, Margarida Vila-Nova, como Julieta, e Laura Soveral, no papel de Prestidigitador.

Fazendo uso das suas palavras, nesta “espécie de arca do tesouro ou de caixa de Pandora” que é o teatro de cordel português setecentista, que surpresas encontrou?

Quanto se começam a ler estas peças avulsas, reunidas por terem sido vendidas como teatro de cordel, descobrem-se, surpreendentemente, naturezas muitos diferentes: há textos litúrgicos, satíricos e de crítica social, poéticos, filosóficos e entremezes. São precisamente os entremezes que tornam mais conhecido o teatro de cordel, porque contêm, digamos, uma forma muito volante na sua expressão dramática. Outra grande surpresa está precisamente na ideia de teatro popular. Não há dúvida que o teatro de cordel é popular, mas os seus autores eram geralmente pessoas eruditas. Dai encontrarmos textos muito bem escritos e diálogos dramáticos espantosos do ponto de vista literário. As personagens, essas sim, são populares, e correspondem a uma imagem bastante reconhecível pelas gentes de Lisboa.

Como procedeu à seleção dos textos e construiu o espetáculo?

Confesso que não houve grande critério científico na seleção. Recorri à coleção da biblioteca da Gulbenkian, que digitalizou estes folhetos de cordel e, a partir de casa, fui lendo tranquilamente os textos e tomando nota daqueles que me pareciam mais engraçados ou que me prendiam a atenção. Acabei assim por fazer uma espécie de salada, casando até cenas de textos diferentes, como uma espécie de potpourri de coisas que se associam naturalmente umas às outras.

E o resultado é…

Um espetáculo sobre “os desastres do amor” (precisamente o título de um nosso anterior trabalho) e muito sobre as mulheres… Porque são as mulheres que estão no centro da vida, porque são as mulheres que os homens amam, porque são as mulheres que impelem os amores felizes ou não são felizes no amor…

Trata-se, portanto, de um espetáculo muito feminino…

Diria que é um espetáculo muito divertido, muito variado e é um “show” de representação das quatro atrizes que o protagonizam. Refiro-me à Luísa Cruz e à Teresa Madruga, atrizes excecionais e profundamente ligadas à minha carreira, e à Rita Durão e à Sofia Marques, que trabalham habitualmente aqui na Cornucópia. Elas são brilhantes e, citando uma frase que retirei da literatura de cordel, “a mulher é como o camaleão”, afirmo tratar-se da maior das verdades pela capacidade de inconstância e transformação que se reconhece à mulher. Essa frase ainda mais se aplica às atrizes, e, porque não, a estas em particular, que se desdobram, ao longo da peça, em múltiplas personagens e registos.

Voltando aos textos. Foi difícil selecioná-los, tendo em conta o extenso acervo da Gulbenkian?

Pela qualidade do material sim, por isso, o espetáculo é longo, contrariando até, de certo modo, o espírito da literatura de cordel. Porém, o prazer que nos deu trabalhá-lo e vê-lo em palco foi mais forte e, como prefiro pecar por excesso do que por defeito – por defeito é sempre mais preguiçoso –, decidimos aproveitá-lo o mais possível.

Luísa Cruz e Luís Miguel Cintra numa cena do espetáculo ©Luís Santos

 

Um material certamente capaz de surpreender o público…

Com certeza, porque acredito ir haver muita gente a descobrir o manancial que existe na literatura de cordel setecentista. Há milhares de textos muito bons de literatura dramática portuguesa que foram desprezados, o que, aliás não surpreende, porque Portugal é assim…

Como escolheu o título?

Vem de uma peça – da qual, por sinal, não aproveitámos nenhum diálogo – que se chama Amor sem Pés nem Cabeça. É um daqueles “disparates” (que há muitos) sobre a maneira como se tecem os casamentos e como as pessoas se comportam dentro das relações amorosas numa sociedade de burguesia pequenina que se faz passar por gente fina, muito característica do final do século XVIII. Àquele título, acrescentei um “ai” que, no fundo, transmite aquilo que de pessoal coloquei ao serviço da peça. Ou seja, uma certa melancolia sobre a vida e as infelicidades de quem não consegue no meio de complicações mais ou menos ridículas fazer a vida que quer e ser feliz. Apesar de ser um espetáculo muito engraçado, tudo isso está também na peça, e acaba como que contido nessa interjeição que antecede o título.

Refere que alguns dos textos parecem estar à espera de ser transformados em “teatro de novos tempos”. Este espetáculo é o resultado dessa transformação?

Sim. Antes de mais porque não se trata de uma reconstituição histórica da vida na Lisboa do século XVIII. Há uma brincadeira constante com a atualidade, tanto que, numa coisa que me é muito grata fazer, exploro o anacronismo do ponto de vista cénico, nomeadamente através da cenografia e do guarda-roupa. O que representamos através destes textos de época acaba por ser o contemporâneo, o que demonstra quão livre é este material.

É uma relação diferente daquela que se tem com os clássicos?

No teatro de cordel, o prazer passa por descobrir ser melhor do que aquilo que pensávamos, sem nunca provocar a sensação de não estarmos à altura dos textos. A relação com os clássicos é diferente, é um bocadinho traiçoeira. Sou de um tempo em que os clássicos atemorizavam as pessoas, impunham respeito, davam medo e assustavam pela sintaxe difícil… lembro, quando traduzimos e encenámos Ricardo III, no princípio da companhia, considerarmos uma ousadia. Hoje, tudo se banalizou pois a relação com os textos é muito mais superficial. Já não se exige a intimidade com o clássico, pelo contrário, o texto ou o autor funcionam muitas vezes como um mero aval ou um selo de qualidade.

Há, então, uma imensa liberdade neste teatro de cordel…

A arte é por definição o terreno da liberdade, abre portas ao mundo e na cabeça dos outros. Este teatro também corresponde a isso, ainda mais hoje, numa altura em que, por imposição das lógicas do mercado, a arte está a deixar de ser livre.

Neste “destemperado jogo de entremezes lisboetas”, que Lisboa se reconhece na peça?

Há vários exemplos ao longo da peça, mas sublinharia um local recorrente nos textos: o Cais do Sodré. Na Lisboa setecentista aquele era um local de grande centralidade, com comércio, com barraquinhas de comes e bebes, com gente de toda a índole. Em suma, era um verdadeiro microcosmos da cidade. Hoje, é pouco mais que um local de passagem, e não serão poucos os que venham a pensar como o Cais do Sodré daqueles tempos é tão semelhante ao Centro Comercial Colombo dos nossos dias.

Porquê esta peça quando a Cornucópia completa 40 anos de teatro?

Depois de termos feito tantas obras-primas, tantos grandes textos da história do teatro, porque não fazer peças portuguesas que são secundárias neste nosso aniversário?

O teatro continua a ser um prazer?

Prescindi de muito para fazer teatro durante quase toda a vida. Tenho 60 e tal anos e o privilégio de não ter dado conta de aqui chegar. E tudo porque se faz teatro para nunca deixar de ser miúdo. Fi-lo sempre pelo prazer de brincar, mesmo quando as brincadeiras se tornaram muito complicadas intelectualmente.

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