sugestão
Os livros de dezembro
Dez leituras para o Natal
"Tenha cada indivíduo a sua noção individual da salvação do mundo, mas o mais importante e significativo para cada um é, acima de tudo, a ideia de redenção através do amor. A procura por essa redenção exorta-nos não apenas o coro dos anjos do Natal; a isso somos instados também pela voz dos grandes pensadores, poetas e artistas, e o profundo valor de todas estas vozes reside unicamente no facto de todas elas anunciarem uma realidade, um caminho, uma possibilidade que está presente e bem viva no peito de cada ser humano” escreveu Herman Hesse, em Tempo de Natal. Nesta quadra festiva, partilhe e ofereça bons livros. Em cada um deles uma nova realidade, um novo caminho, uma nova possibilidade se anunciam.

Herman Hesse
Tempo de Natal
Hermann Hesse (1877-1962), prosador e poeta alemão, um dos mais importantes do século XX, cedo revelou a vocação literária que o faria abandonar os estudos de teologia e a carreira religiosa. Laureado com o Prémio Nobel de Literatura em 1946, deixou uma obra em que, sob influência da psicanálise e das religiões orientais, procura uma solução espiritual para os problemas e contradições da natureza e da cultura humanas. O Lobo das Estepes, Narciso e Goldmundo, O Jogo das Contas de Vidro, Peter Camenzind ou Sidarta são títulos de alguns dos seus principais e mais famosos romances. O Natal provocava em Hesse um sentimento dicotómico. Por um lado, despertava “memórias profundas e sagradas da mítica fonte da infância”. Por outro, podia “ser uma espécie de ampola de veneno, contendo em si a essência de todos os sentimentalismos e hipocrisia burguesas, (…) ensejo para furiosas orgias da indústria e do comércio”. Os textos (prosa e poesia) ora reunidos, organizados pela ordem cronológica do seu surgimento, testemunham essa dualidade, formada, quer pela reverência, quer pelo distanciamento sarcástico em torno de uma festa que abusou “de modo tão detestável do nome do Salvador e das memórias dos nossos anos mais tenros.” LAE Dom Quixote

Ricardo Adolfo
A Chefe dos Maus
A assistente pessoal do chefe dos chefes de uma empresa de criminosos da cidade de Tóquio é convocada para uma reunião de direção (“Se mais reuniões se fizessem por esse mundo fora, tudo seria um pouco mais idiota e uma fonte de alegria para os dias de todos nós.”). A sede emitiu uma diretriz para aumentar a diversidade nos quadros dirigentes (“Além de mais senhoras a trabalhar, temos que ter pessoas de mais cores e uns poucos deficientes.”). A assistente, de forma espontânea, lança uma sugestão que lhe vale a nomeação a estagiária de chefe (“Eu sabia que não era boa a ter ideias, mas nunca achei que pudessem ser tão más que resultassem numa promoção”). Acompanhamos, então, o seu percurso sucessivo como gerente de bares de alterne, executora de cobranças difíceis, passadora de droga. Ricardo Adolfo, um dos mais originais escritores portugueses, produz um novo romance que lança um olhar implacável sobre os vícios da humanidade e os valores das sociedades contemporâneas. Literatura em carne viva onde a mordacidade e o sarcasmo andam de mãos dadas com a violência e o horror. As relações de poder, a ambição, as falsas noções de ética não são exclusivas deste grupo de criminosos, enformam “toda a ordem do mundo” que só é “sustentável embriagada por muito deboche”. LAE Companhia das Letras

Annie Ernaux
A Escrita como uma Faca
Annie Ernaux e o escritor e professor Frédéric-Yves Jeannet já tinham por hábito corresponderem-se sobre o trabalho de ambos, quando decidiram intensificar a troca de e-mails nos anos de 2001 e 2002, incidindo então especificamente sobre a escrita de Ernaux. Na época desta longa entrevista, a escritora francesa debatia-se com o projeto de contar uma vida de mulher, que era parcialmente a sua, que tanto se distinguia como se confundia com a da sua geração. Esse livro em gestação viria a ser Os Anos (Prémio Marguerite Duras 2008, em França; e Prémio Strega 2016, em Itália), um dos títulos mais celebrados da autora que se encontrava muito longe de imaginar que seria distinguida com o Nobel da Literatura em 2022. Em A Escrita como Uma Faca, que Ernaux qualifica de “exame de consciência literária”, todas as questões colocadas dizem respeito ao seu método de trabalho, alicerçado na memória. “Se tivesse uma definição para a escrita, seria esta: descobrir, ao escrever, o que é impossível descobrir de outro modo qualquer, seja palavra, viagem, espetáculo, etc. Nem a reflexão sozinha. Descobrir qualquer coisa que antes da escrita não estava lá. É esse o prazer – e o assombro – da escrita, não saber o que ela faz acontecer, advir.” RG Livros do Brasil

Amir-Alexandros Afendras
Portugal ilustrado
Portugal Ilustrado é um guia em forma de dicionário visual que abrange regiões de todo o país, desde Portugal continental às ilhas da Madeira e dos Açores. Recheado de belas ilustrações a tinta e aguarela, o livro prescinde de texto (com exceção das legendas a português que acompanham cada imagem) tornando-o acessível a miúdos e graúdos, visitantes e naturais do país. Ao longo das suas 60 páginas muito há a descobrir, dos símbolos culturais e figuras notáveis, da arquitetura à gastronomia, da fauna à flora: Camões e Amália, Almada e Saramago, o Mosteiro de Alcobaça e o MAAT, o Zé Povinho e o azulejo, o lobo ibérico e o cavalo lusitano, o caldo verde e o cozido à portuguesa, o arroz-doce e a queijada de Sintra… O seu autor, Amir-Alexandros Afendras, jovem grego-malaio que reside há 15 anos em Lisboa, afirma: “Quando cheguei a Portugal, tudo me parecia novo e fascinante. Comecei a desenhar para guardar o que via”. Esta obra cativante é o produto dessa prática: o olhar generoso de um imigrante que com um talento singular nos devolve o melhor que temos neste país. “Portugal é um país pequeno, mas sublimemente complexo”, escreve o autor. Quase ficamos com pena que não seja maior para este livro ter mais páginas. LAE Majericon

Camilo Castelo Branco
Maria! Não me mates, que sou tua mãe!
Uma edição pequenina, feita numa parceria entre a editora de audiolivros Boca e a Peripécia Teatro, no ano do bicentenário de Camilo Castelo Branco. É, portanto, um livro que se pode ler, ver e ouvir (através de um QRcode). Inserida no projeto ContoContigo, tem ilustrações de Susa Monteiro, fotografias de Lino Silva e Vítor Santos e uma gravação áudio do texto, com interpretação de Patrícia Ferreira, encenada por Nuno Pinto Custódio, e excertos de músicas dos Danças Ocultas. Maria! Não me mates, que sou tua mãe! é um conto escrito por um jovem Camilo e publicado pela primeira vez em 1848 sob a forma de folheto de cordel, tendo como inspiração um matricídio real: “Meditação sobre o espantoso crime acontecido em Lisboa: uma filha que mata e despedaça sua mãe. Mandada imprimir por um mendigo, que foi lançado fora do seu convento, e anda pedindo esmola pelas portas. Oferecida aos pais de famílias e aqueles que acreditam em Deus”. Um texto que continua a deliciar-nos quase dois séculos depois, cheio de melodrama e de referências à então vigente moral cristã. “Tudo indica que o fim do mundo está chegado”, já anunciava Camilo. GL Boca
Édouard Louis
O Colapso
“Não senti nada ao saber da morte do meu irmão; nem tristeza, nem desespero, nem alegria, nem prazer”. Consumido por uma existência entregue à delinquência, ao álcool e à violência, o corpo do irmão mais velho de Édouard Louis colapsou com apenas 38 anos de idade. Confrontado com a notícia, o autor consciencializa-se que nunca conheceu, nem compreendeu o irmão. Empreende então um inquérito junto dos amigos, familiares e das mulheres com quem o irmão viveu, com o propósito de encurtar “a distância entre nós os dois”. É o resultado dessa investigação que aqui surge, apresentado em 16 factos que revelam uma vida que foi “uma Ferida lançada ao mundo e incessantemente reaberta” e que refletem sobre a questão de saber “em que momento é que certos atos se tornam destino? Até que momento é que alguém (…) podia ter mudado o curso que a vida dele tomava?” Édouard Louis regressa ao doloroso processo de revisitar os seus vínculos familiares (“Quem é que pode saber a diferença entre o que magoa e o que liberta?”), numa zona operária das mais pobres do norte da frança, criando mais uma obra de grande força política sobre o círculo de violência no espaço doméstico e sobre o destino de classe. LAE Elsinore
Elvis Guerra
Ramonera
Ramonera é a primeira obra poética no catálogo das edições Orfeu Negro, e a primeira edição bilingue publicada em Portugal na língua indígena zapoteca e em português. Elvis Guerra é uma poeta muxe’ de Juchitán de Zaragoza, no México. Muxe’ é uma identidade transfeminina não binária que se refere a pessoas que ao nascer foram designadas como femininas, mas que não se identificam como homens nem mulheres, embora adotem, em diferentes graus, uma expressão de género feminina. Contudo, ser muxe’ não é somente uma questão de género: abrange também fazer parte do povo zapoteca, preservar a língua, cultura e costumes e ocupar um lugar próprio na comunidade. Tradicionalmente, cabia-lhes tratar dos familiares idosos e doentes, do trabalho doméstico e organizar festas tradicionais e religiosas. Mantinham também a função de iniciar sexualmente os homens. Elvis Guerra reflete, através da sua obra indígena e cuir, sobre a dissidência de género e a etnicidade, propondo uma crítica da exclusão e da violência exercida sobre os corpos que se reconhecem em identidades não-binárias. No poema Ao Menino que Fui, escreve: “Nasci e era um bebé muxe. / (…) Nasci para dançar de saltos altos / e com um livro na cabeça. / Nasci a pedir que me lessem o mundo. / Nasci livre. O resto é poesia.” LAE Orfeu Negro

Tatiana Salem Levy
A Chave de Casa
“Não tenho a mais ínfima ideia do que me aguarda nesse caminho que escolhi. Da mesma forma, não sei se faço a coisa certa”. A protagonista de A Chave de Casa parte “em busca de um sentido, de um nome, de um corpo”, parecendo-lhe que se “refizesse, no sentido inverso, o trajeto dos meus antepassados, ficaria livre para encontrar o meu”. Depois de o avô lhe ter deixado a chave de uma casa onde morou, na Turquia, embarca numa dolorosa viagem em busca, não só dos seus antepassados, mas de si própria. Poder-se-á dizer que é antes uma fuga para combater o estado de imobilidade em que se encontra, e fugir de um amor excessivo que a levou a conhecer a loucura. Não tendo mais a fazer na Turquia, vem a Portugal na tentativa de descobrir as suas origens reencontrando “a palavra amor”. Frequência habitual no nosso país, Tatiana Salem Levy conta-nos que ao vir do Brasil para Lisboa, em 2013, nada esperava encontrar. Porém, hoje afirma: “Lisboa é a minha casa.” Galardoado com o Prémio São Paulo de Literatura em 2008, e há muito esgotado em Portugal, A Chave de Casa, livro de cariz autobiográfico, tem agora uma nova edição revista pela autora. SS Elsinore

Éric Chacour
O que Não Sei de Ti
Tarek, médico proveniente da burguesia sírio-libanesa do Cairo, e Ali, jovem prostituto que vive com a mãe em Zabbaleen, região habitada pelos catadores de lixo, conhecem-se no âmbito do trabalho social do primeiro, e vivem uma ligação proibida no Egito da década de 1980. “A vossa diferença de idade, quase quinze anos, a educação, a profissão, a família, o estatuto, a religião… Contas feitas, a única coisa que vocês tinham em comum era serem homens no Egito, num século XX moribundo. Esse raro ponto em comum, porém, iria condenar-vos mais que qualquer outra diferença.” O livro de Éric Chacour exprime o ponto de vista de um terceiro elemento, com recurso a fontes escritas ou relatos diretos que a seu tempo serão do conhecimento do leitor. Na verdade, o que temos na frente são duas histórias de amor que o livro torna paralelas com recuos e avanços no tempo, em continentes distintos, até ao início do novo século. Numa escrita poética e cinematográfica, Chacour revisita o tempo e a geografia dos seus pais, para libertar do opróbrio o destino do par de amantes clandestinos, e devolver-lhes um enquadramento que provém de um tempo de tolerância e compreensão. RG Alfaguara

Stefan Zweig
Um Mundo Cada Vez Mais Monótono
Poeta, biógrafo, ensaísta, dramaturgo e novelista austríaco, Stefan Zweig (1881/1942), filho de um rico industrial judeu, pertencia a um círculo intelectual que incluía Maximo Gorki, Romain Rolland, Rilke, Rodin, Freud ou Richard Strauss. As biografias que escreveu, de Balzac, Nietzsche, Tolstói, Erasmo de Roterdão ou do grande navegador português Fernão de Magalhães, entre outros, contam-se entre os melhores exemplos literários da influência de Freud, especialmente no que concerne à análise da obra dos biografados e do seu respetivo processo criativo. Apesar de todas as alegrias que as suas múltiplas viagens lhe proporcionaram, o autor retirou delas uma forte impressão espiritual: a monotonização do mundo. Neste curto ensaio sobre a uniformização das sociedades, tema de particular pertinência na nossa era digital, elege quatro exemplos: a dança, o cinema, a rádio e a moda (“O cristianismo e o socialismo precisaram de séculos ou décadas para conquistar seguidores e difundir preceitos; um modista parisiense escraviza hoje milhões em oito dias”). Todos eles cumprem o ideal supremo da mediania: “proporcionar prazer sem exigir esforço”. E conclui: “Quem hoje ainda exige independência, escolha pessoal, personalidade mesmo no prazer, parece ridículo perante uma força tão avassaladora.” LAE Relógio D’Água

