sugestão
Os livros de novembro
Oito novas proposta de leitura
Pier Vittorio Tondelli, escritor homossexual italiano, nasceu e cresceu em Correggio, pequena cidade dominada pelo catolicismo, a hipocrisia, o conservadorismo e o machismo. O autor celebrou a literatura como “realidade separada”, lugar de diferença, solidão e, em última análise, de sobrevivência. Tal como Teo, protagonista de Quartos Separados, foi “neste seu sentir-se longe, afogado em problemas, vivendo com eles, mas sempre de uma posição distanciada, como no pulsar de um coração separado, [que] viria a descobrir a observação e a escrita e, talvez, uma razão que o fizesse crescer sem ser imediatamente massacrado”. Para além da obra de referência de Pier Vittorio Tondelli, no mês de novembro sugerimos outras novas publicações de qualidade, oito propostas de “sobrevivência” num mundo que se afigura cada vez mais hostil.

Pier Vittorio Tondelli
Quartos Separados
Pier Vittorio Tondelli morreu vítima de SIDA em 1991, aos 36 anos. Nas suas poucas (mas influentes) obras, reafirma uma “escrita da vida”, uma adesão à realidade da geração dos anos 1980, marcada pelo “sexo, drogas e rock’n’roll” e pelo fim da contracultura dos movimentos juvenis que a antecederam: “A sua diferença, aquilo que o distingue dos amigos da terra onde nasceu, não é tanto o facto de não ter um trabalho, uma casa, um companheiro, filhos, mas precisamente o escrever, dizer continuamente através da escrita aquilo que os outros se sentem muito satisfeitos por calar”. Teo, jovem escritor italiano, narra a sua trágica história de amor com Thomas, um músico alemão, interrompida pela morte prematura. Durante quatro longos e dolorosos anos de luto, Teo reflete sobre os temas do amor e do sexo, da culpa e da solidão, e na questão central da linguagem que perceciona como incapaz de expressar a essência da relação amorosa (“Mas o que lhe parecia mais importante era o facto de, carta após carta, estar a elaborar com Thomas um novo código de palavras adequado ao seu amor”). A prosa é requintada, rítmica e musical, mas contaminada por certas “impurezas” que o autor compara a um “quadro em se vê a matéria, a pincelada, o gesto do artista”. LAE Clube do Autor

António Borges Coelho
Poemas
Por ocasião dos 90 anos de António Borges Coelho, a Biblioteca Nacional de Portugal organizou uma mostra de homenagem intitulada Dar voz aos que em baixo fazem andar a História. Efetivamente, um traço unificador do conjunto da obra do ilustre historiador é o de transformar os estratos médios, os trabalhadores rurais ou os escravos, em atores sociais e coletivos. O autor, pioneiro entre nós do estudo dos vestígios da cultura árabe, dos processos da Inquisição ou das raízes da expansão portuguesa, reúne em livro uma coletânea-balanço da sua poesia, revista uma última vez por si, aos 96 anos de idade, pouco antes do seu falecimento, ocorrido no passado mês de outubro. Para além da sua atividade de historiador, Borges Coelho escreveu também prosa de ficção, teatro e poesia. Vida literária que começou, justamente, com a publicação de Roseira Verde, recolha poética de 1962. Capaz de um genuíno sopro lírico e de celebrar uma ligação telúrica à terra, esta é uma poesia marcada pela luta exemplar do autor pela liberdade, contra o salazarismo, e pela sua penosa experiência de preso político. Por vezes, aflora o desespero (“Não há céu para os humanos / só betão chapa e óleo queimado”), mas prevalece o sentido militante de resistência: “Quem é capaz / de subjugar-me a chama? Quando quero / dou um salto das ameias / mergulho no mar de panorama / nado com os peixes as sereias.” LAE Caminho
John Steinbeck
Chama Devoradora
John Steinbeck (1902-1968), Prémio Nobel de Literatura em 1962, autor de As Vinhas da Ira (1939) e A Leste do Paraíso (1952), criou com Ratos e Homens, publicado em 1937, um género novo: o romance-peça teatral. Combinando formas já conhecidas, pretendia “permitir a uma peça maior alargamento do círculo de leitores e a uma novela a possibilidade de, se dela se conservar unicamente o diálogo, ser representada sem habitual revisão prévia”. A obra que ora se edita, dividida nos três atos tradicionais, é a sua terceira experiência no género. Narra a história de um homem consumido por uma “chama devoradora”. Joe Saul é um poderoso trapezista de circo (“espécie de pequeno mundo dentro do mundo”) que evoca a ascendência dos deuses da Antiguidade Clássica e dos jograis da Idade Média. Sentindo-se envelhecer e perder forças, é atormentado pelo facto de nunca ter tido um filho. John Steinbeck, inspirando-se numa narrativa medieval, desenvolve uma profunda reflexão em torno dos temas universais da continuidade do sangue, do desejo de imortalidade e da responsabilidade individual e coletiva pela vida de cada criança. LAE Livros do Brasil
Joël Dicker
Uma Catastrófica Visita ao Zoo
Joël Dicker propôs-se escrever “um livro que pudesse ser lido e partilhado por todos os leitores, dos 7 aos 120 anos.” Contrariando a tendência para esquecermos as crianças que fomos, Uma Catastrófica Visita ao Zoo é um relato de sucessivos e imprevisíveis acontecimentos, narrado por Joséphine, uma das protagonistas desta misteriosa história, já em adulta. Joséphine frequentava uma escola especial, juntamente com outros cinco meninos, de onde conseguiam ver a escola das crianças normais. Uma segunda-feira de manhã, bombeiros entram e saem da escola, numa agitação sem par. Tinha acontecido uma inundação. A “catástrofe inicial que se desenrolaria em cascata, de catástrofe em catástrofe, até à catastrófica visita ao jardim zoológico.” Descontentes com as investigações dos bombeiros, e, entretanto, já instalados na escola das crianças normais, os meninos, logo apelidados de “Esquisitoides”, resolvem levar a cabo a sua própria investigação para descobrir quem inundara a escola. Com a mestria a que já nos habituou, prendendo o leitor do início ao fim, Dicker apresenta-nos uma história que fala de inclusão e tolerância, de democracia e censura, das relações entre professores e alunos e também entre pais e filhos. “No fundo, as pessoas são como as estrelas: é quando as observamos com atenção que nos apercebemos de quanto brilham.” SS Alfaguara

Sigrid Undset
A Coroa – A Saga De Kristin Lavransdatter, Vol. I
Sigrid Undset nasce na Dinamarca em 1882, filha de um arqueólogo com quem desenvolve o gosto pela história medieval e a mitologia. Em 1912 casa-se com o pintor norueguês Anders Castus Svarstad com quem tem três filhos. A partir de 1920 dedica-se à escrita de romances históricos e, em 1928, é galardoada com o Prémio Nobel de Literatura. Em 1924 converte-se ao catolicismo provocando um grande escândalo numa Noruega predominantemente protestante. Durante a II Guerra Mundial, opõe-se ao regime nazi e refugia-se nos Estados Unidos. A trilogia Kristin Lavransdatter, a sua obra-prima, decorre na Noruega da Idade Média, pouco depois do período Viking. Kristin pertence a uma família nobre e, desde cedo, demonstra uma personalidade forte e independente, contrastando com a religiosidade e a submissão das mulheres da época. Prometida em casamento a um pretendente escolhido pelo pai, conhece Erlend, um cavaleiro carismático, mas de reputação e ligações políticas duvidosas. Apaixonada – “Kirstin sentia que eram agora na verdade apenas um (…) e que sentiria na própria pele qualquer arranhadela que Erlend sofresse” – desafia a tradição e as convenções sociais e religiosas. Este extraordinário retrato de mulher em luta contra os constrangimentos sociais da Idade Média espelha os conflitos internos da autora, dividida entre maternidade e escrita, tradição e individualidade. LAE E-Primatur

Nuno Portas
A Cidade como Arquitetura
Em A Cidade como Arquitetura, livro escrito por Nuno Portas (1934-2025) em 1969, o arquiteto dá à estampa uma crítica particularmente lúcida, e em muitos sentidos visionária, sobre as cidades, parecendo antecipar muitos debates contemporâneos sobre participação e sustentabilidade. Numa obra hoje reconhecida como um marco na reflexão sobre o urbanismo em Portugal, o autor propõe um contributo “para armar melhor uma disciplina em refundação: a arquitetura urbana”. Para isso, Portas rompe com a visão de uma cidade resultante de planos técnicos ou funcionais, defendendo-a como “obra arquitetónica em grande escala”, ou seja, a cidade como estrutura viva e mutável, cuja qualidade depende da articulação entre projeto e experiência quotidiana e entre políticas públicas e práticas sociais. A atual edição, reimpressão fac-simile da quarta de 2011, assinalou a celebração dos 90 anos de Nuno Portas pela Ordem dos Arquitetos. FB Livros Horizonte
Silvia Federici
Além da Pele
A Orfeu Negro já tinha editado Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici, um ensaio feminista sobre a transição do feudalismo para o capitalismo e de como este se apropria e explora os corpos das mulheres. Chega agora Além da Pele, escrito em 2020, com o subtítulo Repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo – um conjunto de textos sobre o corpo feminino e a necessária luta para a sua libertação. A filósofa italiana defende a ideia de que apenas haverá corpos livres quando se conseguir uma nova forma de organização social e individual – rebatendo até algumas importantes teorias feministas. Essa mudança, argumenta, tem de passar por alterações do quotidiano, uma vez que aquilo que no capitalismo é vendido como forma de libertação se revela, na verdade, um meio de enfraquecimento. Federici acredita que, para conseguirmos mudar o mundo, precisamos de corpos que dancem e de uma “militância alegre”, acrescentando que esta luta tem de ser vivida em conjunto, com amor e afetividade. Palavras escritas há cinco anos, quando o mundo parecia, apesar de tudo, bem mais “evoluído” nesse sentido do que nos dias de hoje. GL Orfeu Negro

Moira Buffini
Jantar
Page, uma mulher abastada, fútil e entediada, prepara-se para reunir alguns amigos para jantar e celebrar o mais recente sucesso editorial do marido, Lars, um badalado “filósofo” da autoajuda. Para servir as iguarias requintadas que a própria preparou, conta com a ajuda de um misterioso criado que contratou através da internet. A primeira convidada a chegar é Wynne, uma excêntrica e falhada artista plástica, que granjeou brevíssimo sucesso quando exibiu uma pintura em que reproduzia os genitais do amante deputado. Seguem-se Hal, um microbiologista novo-rico, rude e boçal, e a sua companheira, a pivot de noticiário Sian, tratada recorrentemente pelo namorado como a “miúda das notícias”. Sentados à mesa, Page inicia o jantar procurando a cada prato não celebrar o sucesso do marido, mas humilhá-lo e insultar os convidados. Tudo parece estar a correr como planeara, quando irrompe pela casa Mike, um pobre coitado que, devido ao nevoeiro cerrado, acaba de destruir a carrinha que conduzia no muro da casa. Entre a comédia de costumes, a sátira e o grotesco, a dramaturga inglesa Moira Buffini assina uma comédia carregada de ironia que combina influências que vão de Buñuel a Pinter, passando pela melhor tradição do policial britânico. A peça, encenada por Pedro Carraca, está em cena no novo Teatro Paulo Claro, nova casa dos Artistas Unidos, até meados de novembro. FB Livrinhos de Teatro – Artistas Unidos


