entrevista
Richie Campbell
“Fico surpreendido com a forma como as experiências de vida se encaixam na minha música”
Este ano, a responsabilidade de encerrar as Festas de Lisboa cabe a Richie Campbell. O músico português - conhecido pela sua sonoridade única e genuína, que mistura reggae, R&B e dancehall – atua no Terreiro do Paço a 30 de junho, num concerto de entrada livre. O mote deste espetáculo é o seu último disco, Heartbreak and Other Stories (2023), mas a ocasião serve também para apresentar os próximos projetos do cantor, que recebe em palco vários convidados.
Sempre quiseste ser músico?
Sim, percebi isso ainda em criança. Também achei que ia ser astronauta, veterinário… mas foi relativamente cedo que percebi que gostava muito de cantar. Na altura não via como muito viável a hipótese de ser artista, mas já gostava de cantar.
Os teus pais apoiavam-te ou insistiam que tirar um curso superior era importante?
Apoiavam-me, mas, da mesma forma que eu achava pouco viável vir a viver da música, eles ainda acreditavam menos nisso [risos]. Comecei a tirar o curso [de Antropologia] e acabei por não o terminar. Mas fui para a faculdade com o objetivo de ter um plano de vida.
O nome artístico vem de onde?
Richie é uma abreviatura de Ricardo. Campbell vem da influência de artistas jamaicanos que cresci a ouvir e de que gostava muito. Tentei absorver algum do talento através do nome. [risos]
E esse fascínio pela cultura jamaicana, de onde é que vem?
Vem da minha mãe, da minha infância em casa a crescer a ouvir os clássicos: Bob Marley, Dennis Brown, Jacob Miller, Garnett Silk, os grandes artistas jamaicanos da geração dela. Depois, a certa altura, já eu era mais velho, o reggae teve muita força em Lisboa, especificamente ali na linha de Cascais e também na margem sul. Essas duas coisas juntaram-se, o que contribuiu para poder dizer que 90% das músicas que ouvi enquanto crescia eram de artistas jamaicanos.
As pessoas associam-te muito ao reggae, mas a tua música inclui outras sonoridades…
As pessoas têm facilidade em associar-me ao reggae porque é o estilo de música jamaicano mais conhecido, mas o que eu faço é uma mistura de todos os géneros musicais jamaicanos. Na Jamaica existe uma diversidade de música quase igual ao que encontramos no resto do mundo. Há imensa diversidade numa ilha pequeníssima. O que eu faço é uma mistura de dancehall – que é outro género musical jamaicano muito conhecido – e também de R&B e outras influências que fui tendo à medida que crescia. A minha música é uma mistura dessas influências jamaicanas com que cresci e também do que acontecia à minha volta, vivendo em Lisboa.
Suponho que seja o género musical que ouves mais… quem são os artistas que mais ouves?
Artistas de dancehall, como o Vybz Kartel e outros que ninguém conhece [risos]. Por exemplo, de dois em dois meses passo pelo menos uma semana a ouvir Bob Marley.
É a tua maior referência do reggae?
Não é a minha maior referência, mas acho que é a de muita gente. Acho que há poucos artistas no mundo que têm uma discografia tão completa, intemporal e que se adapta a várias alturas. Sempre que começa a ficar bom tempo, ali por volta de abril, apetece-me ouvir Bob Marley.
Tens uma rotina de trabalho ou escreves quando te sentes inspirado? É importante ter um método?
Tenho uma rotina de trabalho, mas nem sempre me sinto muito criativo. Portanto, há dias em que, mesmo tendo essa rotina, não sai nada… A minha forma de ver as coisas é esta: tento manter a rotina trabalhando ao máximo para que, no momento em que chegar a inspiração, esteja no estúdio a trabalhar.
A rotina pode ser inimiga da criatividade?
Pode, mas não ter rotina e estar à espera que a criatividade apareça também pode ser um inimigo da produtividade. Portanto, é um balanço que é preciso encontrar… Também não posso estar sempre fechado no estúdio, porque a criatividade não sai de dentro de mim sem motivo, ela surge da minha interação com o mundo. Tenho de viver para ter alguma coisa para contar.
O último disco, Heartbreak and Other Stories (2023), tem muitas canções que falam sobre o amor. Escreves para ti ou para os outros?
É um tema muito recorrente e sinto que ao longo da minha carreira – porque vou ficando mais velho – os meus argumentos vão evoluindo, são mais maduros, mais complexos. Se calhar, a primeira música que escrevi era a questionar porque é que me tinham deixado. Atualmente, já abordo ângulos mais complexos das relações no geral. Mas é um tema sobre o qual consigo falar com muita facilidade. Eu próprio fico surpreendido com a quantidade de vezes que tenho alguma coisa de novo para dizer sobre isso e pela forma como todas as minhas experiências de vida se encaixam na minha música.
Escrever é uma catarse, é isso?
As pessoas costumam dizer isso, mas não vejo como catarse. Seja em músicas que falam de amor, ou músicas que abordam outros temas, acontece-me o seguinte: se passo por uma determinada experiência (seja ela positiva ou negativa) e se isso se traduzir numa música, já estou a ganhar. Mesmo quando são coisas menos boas ou mais difíceis, fico sempre contente quando consigo retirar uma música desse processo.
É importante criar uma narrativa para cada disco?
Tento não planear de antemão e sinto que descubro sempre essa coerência a meio do processo. Deixo o processo correr de forma natural e depois, quando chega a altura de começar a juntar as músicas do álbum, interpreto em que fase da vida é que estou, o que é que faz sentido e o que é que acabei por escrever.
Olhar para os discos mais antigos é o mesmo que folhear um álbum de fotografias? Consegues perceber exatamente quem eras naquela altura?
Consigo. Faço esse exercício várias vezes quando sinto que estou um bocadinho perdido criativamente. Às vezes vou ouvir o que já fiz porque ajuda-me, transporta-me para essa altura. É um bocado como ver um álbum de fotografias. Às vezes olho para uma fotografia e percebo que cenário era esse. É o mesmo com a música, ajuda-me a perceber o que escrevi.
Fazer esse exercício de olhar para trás também pode ser fonte de inspiração?
Às vezes sim. Acima de tudo, dá-me confiança quando estou a ser demasiado crítico com as músicas que estou a fazer no momento. Vou ouvir coisas antigas e penso que as pessoas gostaram, mas agora eu acho horrível [risos]. Quer dizer, não acho horrível, mas consigo ouvir e ter a consciência de que consigo fazer muito melhor. E se calhar estou a ser demasiado exigente quando naquela altura não era tanto e as coisas funcionavam. Portanto, é nesse sentido que, às vezes, é importante ouvir o que está para trás.
És perfecionista, portanto?
Demorei cinco anos a fazer este álbum. Tenho de sentir que está tudo perfeito antes de o lançar. O que não quer dizer que esteja, efetivamente. Porém, o que acontece é que já estou há tanto tempo sem produzir novas músicas que tenho de avançar, e acaba por nunca atingir a perfeição. É o mais perfeito que consegui naquele momento.
Em 2014 criaste a editora Bridgetown. É um papel muito diferente do de ser músico ou as duas coisas complementam-se?
São papéis que se complementam, no sentido em que trabalhar com artistas que estão noutra fase de carreira também me traz benefícios. É importante ver alguém que está a começar e a ter as primeiras vitórias, testemunhá-lo de perto. Assistir a isso quase que me dá um choque de motivação. A minha função é aconselhar os artistas que estão na editora e tentar passar um bocadinho do conhecimento que tenho por estar cá há mais anos do que alguns deles.
Gostas de os ver ganhar asas e voar?
Adoro lembrar-me dos momentos em que tivemos as primeiras conversas, em que eu disse “sei que isto vai funcionar” e, algum tempo depois, de as coisas terem corrido bem, estarmos numa sala grande a festejar esse trabalho. Acho que é das coisas que mais gosto de fazer.
Como é a tua relação com as Festas de Lisboa?
Quando era mais pequeno e vivia em Caxias, todos os anos ia religiosamente ao arraial de lá. Atualmente, ir para as Festas é um bocadinho caótico [risos]. Multidões para mim não são o ideal, mas faço questão de ir todos os anos a algum sítio onde haja menos confusão.
A 30 de junho encerras as Festas com um concerto no Terreiro do Paço. Que espetáculo estás a preparar?
Vou tocar este disco e vou ter convidados especiais relacionados com este trabalho. Também vou receber convidados relacionados com a Bridgetown e com os meus próximos projetos. Posso também adiantar que vai ser a primeira vez que vou tocar uma música que há-de sair, entretanto.
Já estás a pensar no futuro?
Já tenho ideias para um álbum novo. Estou numa fase em que já tenho música suficiente, mas que quero melhorar e trabalhar, e retirar as canções de que não gosto tanto. Ainda não estou na fase de pensar em lançar um disco, não sei daqui a quanto tempo é que ele vai sair, mas espero não voltar a demorar cinco anos [risos].