Joana Espadinha

"Acho que encontrei a minha expressão artística mais perfeita"

Joana Espadinha

Vergonha na Cara é o mais recente trabalho de Joana Espadinha. O sucessor de Ninguém nos vai tirar o sol (2021) revela um lado mais introspetivo da cantora, viajando pela (boa) pop a que já nos habitou, mas também por uma sonoridade mais indie rock. O novo disco é apresentado ao vivo, a 9 de maio, no palco do B.Leza.

Estudaste Direito, depois jazz, até te tornares numa das mais relevantes vozes nacionais. A música aconteceu por acaso?

Sempre achei que a música ia estar presente na minha vida de uma forma mais informal. Em minha casa cantava-se música do Alentejo. Acho que aprendi a cantar antes de aprender a falar e aconteceu a mesma coisa com o meu filho, que também cantou antes de falar. Durante muito tempo olhava para a música como um hobbie que um dia, romanticamente, talvez pudesse tornar-se mais do que isso, mas nunca foi uma escolha assumida, até aos meus 19 anos.

Havia a preocupação de ter um “canudo” [expressão coloquial para referir diploma de um curso superior] noutra área?

Os meus pais sempre me deram muito apoio, mas naturalmente que isso era uma preocupação. Naquela fase, o “canudo” era muito importante, mas acho que agora as pessoas começam a valorizar outro tipo de experiências. Quando quis desistir de Direito, a minha mãe disse “mas não vais para o vazio, tens de ir estudar qualquer coisa”. Lembro-me de terem ficado preocupados, mas nunca me puseram essa pressão. Depois, quando acabei o curso, ficaram um bocadinho mais descansados.

A tua carreira musical iniciou-se no jazz, mas atualmente tens uma sonoridade mais pop. Em que altura do percurso percebeste que era este o teu som?

No fundo, a música que escrevia foi-me mostrando isso. Quando comecei a compor estava em Amesterdão, só convivia com músicos de jazz, estava a estudar esse estilo de música, mas obviamente que as minhas referências vinham da adolescência, de cantautores que ouvia, como a Sheryl Crow ou a Joni Mitchell. Quando comecei a estudar jazz, tinha a ideia de que era o que estava mais próximo, em termos de estudo, da música que queria fazer. Entretanto percebi que era todo um mundo. Acabou por ajudar-me muito ao dar-me ferramentas que ainda hoje utilizo para compor. No fundo, quando se aprende a improvisar – que é uma coisa muito do jazz – o que estamos a fazer é quase compor em tempo real, seguindo certas regras, conhecendo a harmonia, etc. Essa consciência veio quando percebi que estava a tratar canções que já eram pop, como se fossem canções de jazz. E, portanto, agora era preciso produzi-las (e fazer arranjos) enquanto canções pop. Não pensei “agora vou fazer pop”, pensei “esta música não é jazz, o que é que isto é?” E fui atrás disso. Acho que os rótulos podem ser um bocado perigosos e limitadores. Este disco tem claramente um lado A e um lado B: um lado mais pop e um lado mais sombrio.

Fazes parte dos Cassete Pirata, projeto que tem uma onda um bocadinho mais rock. É fácil passares do teu registo habitual para uma sonoridade mais rock?

O rock também foi sempre uma influência para mim. Aliás, este disco tem aqui um bocadinho de indie rock. Acho que o meu primeiro álbum, Avesso (2014), era uma grande mistura de sonoridades e, apesar de ter um lado mais jazzístico, também tinha um lado mais rock, mais sombrio. Depois fiz esta viagem à pop e percebi como conciliar o meu lado mais melancólico com música que me puxasse para cima. Percebi qual é o equilíbrio perfeito para uma canção ficar no ouvido, mas ao mesmo tempo não ser 100% feliz, porque a vida não é assim. A minha música tem feito essa viagem e não tem sido assim tão consciente. Sempre gostei de ouvir muitas coisas e sempre tentei compor sem pensar muito sobre o assunto. Só depois é que olho para o que compus e tento perceber qual foi o caminho que a música fez.

“Os meus discos são sempre muito autobiográficos e refletem uma luta com os meus conflitos interiores”

O novo disco chama-se Vergonha na Cara. O que é que quiseste transmitir com este trabalho?

Não foi consciente, mas acabei por perceber que havia uma linha condutora. Os meus discos são sempre, primeiramente, para mim, para eu resolver as coisas que tenho a resolver. Só depois é que começo a pensar que as pessoas vão ouvi-los. São sempre muito autobiográficos e refletem uma luta com os meus conflitos interiores. Um deles foi a superação da timidez, daí esta necessidade de regressar à adolescência – que é um período tão importante para a definição da nossa personalidade – e ter percebido que passei uma grande fase do meu crescimento sem ser muito vocal em relação ao que eram as minhas opiniões. Fui uma adolescente tímida, que ouvia as opiniões dos outros sem ter muita confiança na sua própria voz. Anos depois, olho para trás e percebo que essa característica não desapareceu totalmente. Daí a necessidade de perceber que já tenho idade para não ter vergonha daquilo que sou e do que quero ser. Esse foi o tema principal, mas abordo outros temas como a autenticidade nesta era digital. As redes sociais, por exemplo, são um excelente mecanismo para divulgarmos o nosso trabalho, mas também têm um lado de não sabermos o que é verdade e o que não é, da forma como se comunica e de como se ignora o sofrimento real dos outros porque se vive muito da aparência. Há uma canção sobre isso, a Alibi. Preocupa-me imenso o estado da nossa saúde mental, porque é humano gostar de validação e muitas vezes as redes sociais alimentam-se dessa necessidade.

Há aqui uma vontade de reconciliação com o passado?

Sim, sem dúvida nenhuma. De reconciliação e de reencontro. E eu sinto mesmo que me reencontrei muito neste disco.

E nesse processo terapêutico não tens receio de te expores demasiado?

Isso é uma coisa que também me preocupa, porque depois tenho de estar num palco a olhar para o público enquanto canto, mas ainda não houve nenhuma situação em que sentisse que fui longe demais. A vulnerabilidade é muito importante na arte, mas é um equilíbrio difícil. Estar demasiado vulnerável também vai impedir-me de expressar convenientemente e de passar as mensagens que quero. Tive uma professora em Amesterdão que dizia que o sofrimento é uma coisa que nos emociona e que cria empatia, cria ligação com o objeto artístico. Por outro lado, ninguém quer sofrer comigo no palco. Há aqui um ponto em que o sofrimento vai impedir a comunicação de funcionar (a não ser que sejas a Elis Regina e que estejas a cantar o Atrás da Porta). Por exemplo, a canção Nascer do Zero fala sobre o processo de transformação de alguém que chega a um palco e tem de ser mais do que aquilo que é no dia-a-dia. É um momento catártico que tem o seu lado de adrenalina, mas também pode ser aterrador, é um salto de fé. É como saltar e confiar que o paraquedas vai abrir.

Que compositora és hoje?

Sou mais segura e confio muito mais nos meus instintos. Uma coisa que este percurso me tem mostrado é que, sem as pessoas, sem uma equipa que trabalhe connosco, não somos ninguém. Tenho tido a sorte de trabalhar com pessoas absolutamente fantásticas, dos músicos aos produtores. Acho que tive alguma visão na escolha das pessoas para fazer este disco comigo. A começar pelo Tony (António Vasconcelos Dias), que foi o principal produtor do disco e que é também o diretor musical. É uma pessoa com quem estou muito alinhada, com quem é muito prazeroso trabalhar, que me desafiou imenso. Depois também trabalhei com o Ben Monteiro, que produziu o primeiro single e me devolveu a confiança na minha voz, que me puxou até ao limite em termos vocais. O artista tem constantemente de evoluir e é muito tentador, quando fazemos algo que achamos que funcionou, tentar repetir essa fórmula de sucesso. Obviamente que também me debato com isso. Sei que provavelmente nunca mais vou fazer uma canção como a Leva-me a Dançar. Andei à procura de canções na mesma onda, mas não dá para repetir, a canção tem de ser espontânea. Por outro lado, tinha saudades de poder falar mais abertamente da melancolia, mesmo que a música refletisse isso esteticamente. Acho que a artista que sou hoje acaba por ser uma fusão do lado que estava mais presente no três primeiros discos, um lado mais solar, e o outro, que dá mais espaço à voz, à emoção e à tristeza. Isso também faz parte de mim e era um lado que estava mais esquecido artisticamente. Estou muito orgulhosa deste disco, acho que encontrei até agora a minha expressão artística mais perfeita.

Quando escreves para outras pessoas também usas as mesmas referências autobiográficas ou tentas viajar até ao universo do outro?

Normalmente viajo até ao universo da pessoa. Por exemplo, no caso da Carminho, que foi das primeiras pessoas para quem compus, imaginei mesmo a voz dela a cantar. Escrevi a canção O Menino e a Cidade, e mais tarde apercebi-me que é uma imagem que li num livro de Chico Buarque, e a Carminho também tem essa ligação ao Brasil. Ela adorou a canção, mas pensei que estava só a ser simpática, até que a veio a gravar quase dois anos mais tarde. Quando a ouvi pensei que era exatamente assim que a tinha imaginado. Percebi que não podia escrever tudo para mim e que escrever para outras pessoas me ia dar a liberdade de poder canalizar outros estilos de música, dos quais também gosto, para outras pessoas. Tento conhecer a história da pessoa para não mandar uma canção muito ao lado, para que se possa identificar com a canção, mas acho que nesse processo acabamos sempre por ir buscar a nossa experiência e as nossas referências. É inevitável, há de ter sempre qualquer coisa de autobiográfico. Acho que a única exceção – que é uma canção que poderia ter sido eu a gravar, mas que acabei por dar a outra pessoa (que a interpretou incrivelmente, a Diana Castro) – foi a Ginger Ale. Era uma canção muito pessoal, que falava exatamente sobre aquilo que eu estava a viver quando a escrevi e com a qual, felizmente, ela também se identificava. De resto, das canções que escrevi para outras pessoas – com esta exceção – nunca senti que queria gravar nenhuma.

O disco sobe ao palco do B.leza este mês. Estás ansiosa por apresentá-lo ao vivo?

Estou com muita vontade de cantar estas canções ao vivo. Ainda para mais, o Tony vai tocar connosco e acho que o som da banda vai crescer com isso. Tenho sempre crianças a ver os meus concertos, porque algumas das canções são mais pop – apesar de eu não ter o intuito, quando componho, de o fazer para crianças – mas tenho algumas saudades de ver mais adultos nos meus concertos. Acho que este álbum tem mais essa dimensão, tem outra carga emocional.