Jorge Cruz

"Há um mistério qualquer na música que nunca quis dominar muito bem"

Jorge Cruz

O carismático ex-líder dos Diabo na Cruz está de volta aos discos em nome próprio com Transumante. 13 anos depois de Barra 90, Jorge Cruz abre um novo capítulo no seu percurso ao regressar com uma série de canções inspiradas no imaginário rural português e na música tradicional. A 9 de abril, apresenta-se no Teatro Maria Matos, em formato viola e voz, para celebrar uma carreira que conta com três décadas de história.

És formado em Psicologia, mas sempre viveste da música. Nunca pensaste tirar um curso superior nessa área?

Isso nunca me passou pela cabeça. No fundo, enriquecer-me com mais conhecimento sempre fez mais sentido em relação ao mundo e às coisas do que propriamente em relação à música. Há um mistério qualquer na música que eu nunca quis dominar muito bem.

O curso deu-te ferramentas que utilizas nas tuas composições?

Sinto que me interesso pela vida das pessoas. Talvez tenha escolhido Psicologia por esse tipo de preocupações fazerem parte dos meus interesses, não só em relação aos outros, mas também a mim próprio. Muita gente vai para o curso de Psicologia para se entender um bocadinho melhor e depois acaba por ganhar ferramentas para entender o mundo e os outros. Senti muito isso nos últimos 10 anos, quando comecei a escrever para outras pessoas. Escrever do ponto de vista de uma mulher ou do ponto de vista de alguém refém da lufa-lufa do dia-a-dia, por exemplo, que é uma coisa que eu não tenho, tem a ver com pôr-me no lugar do outro. O Carl Rogers, que desenvolveu a psicologia humanista, acredita na psicologia centrada no paciente, que é muito acerca de se pôr no lugar do outro. De se posicionar como uma sombra a acompanhar a vida da outra pessoa. São interesses que as pessoas têm e que acabam por desenvolver. Por exemplo, também gosto de filmes do Woody Allen ou de livros de Sartre ou de Dostoievsky. Obras de pessoas que mergulham psicologicamente no ser humano.

Transumante é o fim de um jejum de 13 anos nos discos a solo. Tinhas saudades de ter um projeto só teu?

É uma pergunta difícil de responder. Sinto que o meu trabalho é sempre andar para a frente e, portanto, as minhas ânsias são mais sobre o que vem a seguir do que propriamente de olhar para trás. Não acho que isso seja um sentimento familiar para mim. Agora, é totalmente diferente estar neste formato, já que não tenho de negociar ou sujeitar os outros às minhas ideias ou ao meu manancial de hesitações, paixões, dúvidas, etc. É uma coisa mais centrada; já não estava nessa posição há bastante tempo. É verdade que antes, quando estive a solo, tinha uma pressão que atualmente não sinto, de conseguir afirmar-me profissionalmente como músico, o que só acabei por conseguir em banda. Atualmente não sinto essa pressão, porque tenho um trabalho a escrever para outras pessoas e porque tive uma banda que criou um público e um discurso na cultura. E quando trabalho já não parto do zero, enquanto antes parecia que estava sempre a partir do zero.

Há alguns anos mudaste-te para uma zona rural e isso reflete-se muito neste disco, quase visualizamos as paisagens. Foi propositado?

Acho que me mudei já com o objetivo artístico de explorar cada vez mais o interior, a paisagem, as texturas do território. Em Diabo na Cruz explorei isso, mas sempre do ponto de vista de reunir as pessoas. O que estou a fazer agora, e a necessidade que fui sentindo, é de aprofundar, de fazer algo um pouco mais interior e do interior. Portanto, todo o trabalho que tenho feito, a investigação, a leitura ou a procura, era um objetivo. Às vezes estou em certos sítios do nosso país, zonas isoladas, ou passo por um riacho ou atravesso um canto de montanha e pergunto-me onde está a canção que me faça sentir que estou aqui. Senti vontade de explorar esse caminho na minha música. De criar essa canção…

Ao ouvir o disco, fica-se com a sensação que foi feito por uma pessoa muito serena, muito apaziguada. Também tem a ver com alguma maturidade que a idade traz?

Imagino que sim. É tentar traduzir para a escrita a energia que procuramos na vida e também que os sítios nos transmitem. Explorei isso anteriormente, se calhar em músicas como Vida de estrada, de falar do rebuliço diário na cidade, mas de uma vontade de escapar para os mares, para as serras, de sentir essa calma. Agora posso falar do ponto de vista de quem está nesse lugar. E também desta relação com a natureza, que é uma relação de aceitação do que ela tem de belo e magnífico e do que ela tem também de cruel e duro. Essa luta também está presente, penso eu, no disco.

Dás muita importância às palavras. Considera-las mais importantes do que a melodia?

Sem dúvida nenhuma que a palavra é muito importante para mim; mas a melodia e a música também o são. Talvez, nesta fase, comece a secundarizar o arranjo, a apresentação… Sou mais da escola do Bob Dylan, do Leonard Cohen e de muitos outros cantautores em Portugal, como o Zeca, o Sérgio Godinho, o Fausto, o Vitorino, a Amélia Muge. Aliás, se formos ver Os Lusíadas, são cantos. A ideia do poema cantado é uma coisa muito antiga. Portanto, a palavra é extremamente importante para mim, enquanto na melodia procuro trabalhar com matérias-primas tradicionais, algo que muitas vezes até pode ser simples. Imaginemos a base de uma tarte, sobre a qual vou pôr todos os ingredientes. Os ingredientes, para mim, passam muito pela palavra. E não é só a palavra no sentido do jogo de palavras. É muito importante aquilo que estou a dizer, que cada frase signifique alguma coisa. Que haja uma história, uma narrativa. E que eu sinta que avanço no sentido da minha obra. Se olhar para há 10 anos, sentir que estou a acrescentar alguma coisa. Nesse sentido, vejo-me mais como um escritor e um autor do que como um músico.

Já pensaste escrever um livro?

Já pensei e até já tentei, mas até agora nunca senti que tinha a contribuir nessa área aquilo que sinto que tenho a contribuir nesta. Fazer só por fazer não é o meu género. Gosto de sentir que estou a contribuir com qualquer coisa que não ouço noutro sítio, que me faz sentir que é relevante. Até porque esta questão da música de raiz portuguesa tem muito território para explorar. É ainda um fascínio muito grande e uma tentação de continuar a trabalhar. É verdade que agora há novas gerações que estão a pegar nisso e a levar a coisa ainda mais longe. Mas sinto que ainda posso dar umas achegas e isso motiva-me imenso. Outras pessoas farão, provavelmente, coisas ainda mais interessantes. Mas enquanto eu vir que há qualquer coisa que ainda não vi feita e que eu consigo fazer, vou tentar.

Ocupas grande parte do tempo a compor para outros artistas…

Quando lancei os meus discos a solo havia uma pessoa, o Pedro Tenreiro, a quem as minhas canções chamaram a atenção. E, embora enquanto artista a solo não me tenha conseguido afirmar no mercado, ele achava que eu tinha capacidade na escrita. Quando teve outros projetos na mão lembrou-se de mim. Portanto, o primeiro convite é para escrever o Rosa Sangue, dos Amor Electro, que é uma música que, entretanto, fez um percurso extraordinário. E a partir daí começaram a surgir convites, nomeadamente de fadistas. Comparo um pouco o fado à música country americana. Há uma tradição que precisa constantemente de novas letras, de novas músicas, porque senão os fadistas estão sempre a cantar o mesmo. Acho que é por isso que me chegam mais pedidos nessa área. E também porque o sentir da nossa cultura é algo que com que me preocupo constantemente. Talvez as pessoas também estejam à procura disso quando fazem fado.

Há alguém para quem gostasses muito de escrever uma canção?

Importa dizer que já tive a sorte de escrever para vozes incríveis como a Gisela João, a Ana Moura, a Cristina Branco, a Raquel Tavares… Portanto, não me posso queixar das oportunidades que já tive. Mas diria que o meu sonho é escrever para o Camané.

“Estou sempre à procura de uma narrativa, para que o ouvinte sinta que está numa viagem”

Criaste o Diabo na Cruz, uma banda marcante e inovadora. Há um antes e um depois de Diabo na música portuguesa?

Penso que há um antes e depois na cultura no seu todo, e Diabo na Cruz terá sido um dos agentes com um papel nessa transformação. Em 2008, quando formei a banda com o João Pinheiro e o Bernardo Barata, a forma de sentir e de olhar para a arte em Portugal era totalmente diferente do que é agora. E do que era em 2019, quando o grupo terminou. A urgência que sentia e que já vinha desde o fim dos anos 90, esta vontade de ter um projeto assim, ainda se sentia muito fortemente. A língua portuguesa ainda não estava afirmada nas canções da nova geração, ainda havia muita gente a cantar em inglês e pouca gente a falar sobre a nossa própria vida. Não me sentia representado nas canções do momento. No entanto, sinto que houve muitos outros fatores que influenciaram a transformação da cultura portuguesa. A começar pela questão da autoestima para a qual contribuiu muito o projeto A música portuguesa a gostar dela própria. Temos muito essa necessidade de aprovação do exterior. Isto mudou muito e, sem dúvida nenhuma, que Diabo na Cruz contribuiu para isso. Nós andávamos de aldeia em aldeia, na rádio, nos festivais, em grandes salas de concertos a obrigar a malta a lidar com a sua própria cultura e sentir esse orgulho.

Era quase psicoterapia de grupo…

Acho que sim, era um pouco isso. Era “vamos lá lidar connosco, fazer essa catarse”. Há outras influências que vão muito para além da psicologia, que é a música brasileira, em particular, o discurso do Caetano Veloso e o tropicalismo, que são uma grande influência para mim, e que, nos anos 90, me trazem essa noção de que é preciso acabar com este divórcio entre o que é a música moderna, fixe, cool, e o que é a música de raiz e a música popular. E isso é o que o Caetano faz nos anos 60 e 70. Porque nós estávamos 40 ou 50 anos atrasados nessa catarse.

Este disco é apresentado este mês no Maria Matos e também na Casa da Música, no Porto. Por que razão não o vais levar pelo país?

O formato que estou a fazer é muito sustentável. Tenho um arranjo para viola, simplesmente. Se quisesse andar de porto em porto, arranjaria forma de o fazer, mas estou numa fase em que me identifico mais com gestos significativos e especiais. Quem quer estar em contacto com a obra fá-lo de uma forma muito intencional e eu estou interessado nesse vínculo mais profundo. Quero tocar para pessoas que estejam mesmo interessadas no que estou a dizer. Isso é muito importante para mim. Depois de muitos anos a ir de festa em festa a conquistar públicos novos e pessoas que nunca tinham visto a banda, senti que tinha de o fazer. Faz-me sentir muito mais sereno tocar para as pessoas que estão interessadas em ir para uma camada mais profunda do que estou a fazer. Também por isso é importante que o encontro seja um momento especial e não se torne uma rotina. Porque o estilo de vida que procuro é criativo e artístico e a repetição não é, provavelmente, o que me está a interessar. Interessa-me escrever mais e, portanto, depois destes concertos, vou, de certeza, entrar numa nova fase.

Precisas de entrar numa bolha para compor?

Penso que funciona como bolha em que, durante um período – pode até ser um ano ou dois -, estou a cultivar coisas de uma forma livre, sem saber bem o que elas vão ser. Depois começam a ganhar forma como um objeto. Estou sempre à procura de uma narrativa, para que o ouvinte sinta que está numa viagem. Este disco em particular, acabei por escrevê-lo no verão de 2022 e foram três meses a montar o puzzle. Tem várias fases, é como um cultivo. Para chegar a um objeto que realmente fique fluido e organicamente conseguido, os prazos não ajudam em nada.

Portanto, és um perfeccionista que gosta de fazer as coisas a seu tempo…

Às vezes pedem-me letras de um momento para o outro e isso para mim é complicado. Não tenho interesse nenhum em contribuir com qualquer coisa a meio gás, só quero fazer coisas com as quais me sinto confortável, orgulhoso, que sinto que acrescentam qualquer coisa ao trabalho que já fiz.

Este concerto no Maria Matos é em formato viola e voz. Não te sentes muito exposto?

Já fiz isso o ano passado e é um bocadinho mais assustador. É um desafio, mas quando começar a sentir o calor do público começo a mergulhar para dentro da música e consigo perder-me e entregar o que acho que é preciso. Mas estou muito mais exposto, sem dúvida. Por outro lado, pensando no meu ofício, também as minhas canções e as minhas palavras estão muito mais expostas, por isso, de certo modo, sinto-me mais forte. Sinto que estou a comunicar diretamente a essência da canção, não tenho de passar por cima de bombos e guitarras elétricas. Isso faz-me sentir não só confortável como interessado e penso que é isso que estes concertos trazem de novo e de especial. As canções ficam muito mais próximas, muito mais legíveis.

O que podemos esperar do alinhamento deste espetáculo?

É um pouco de tudo. O concerto é muito concentrado neste disco, mas também vou apresentar versões de músicas minhas a solo dos anos 90 e 2000, algumas de Diabo na Cruz, uma ou outra música tradicional, e ainda uma ou outra que escrevi para outros artistas.