O anjo da morte na América de Albee

"A Senhora de Dubuque" no Teatro da Trindade INATEL

O anjo da morte na América de Albee

Do autor de Quem tem medo de Virginia Woolf estreia por fim em Portugal uma das suas peças menos conhecidas, A Senhora de Dubuque. Álvaro Correia encena este olhar de Edward Albee sobre uma certa burguesia na América dos anos 70 do século passado, onde parecem ressoar inúmeros pontos de contacto com os nossos dias. Com Cucha Carvalheiro, Manuela Couto e Fernando Luís nos papéis principais.

Há uma casa evidentemente burguesa e vários casais. O ambiente é de festa, mas depressa fica ensombrado pelo desenrolar de um jogo social (no caso, o das 20 questões). O álcool começa a incendiar os ânimos e o insulto ganha cada vez maior protagonismo. Sim, é Edward Albee puro e duro aquele que se encontra em A Senhora de Dubuque, peça estreada em 1980 na Broadway sem grande sucesso, mas que, nos últimos anos, tem merecido especial atenção, sobretudo no circuito off-Broadway e no West End londrino, destacando-se a produção dirigida por Anthony Page, em 2007, com Maggie Smith e Catherine McCormack.

Motivado pela vontade de voltar a trabalhar com Cucha Carvalheiro e Manuela Couto, atrizes com quem partilhou o palco durante vários anos na Comuna, Álvaro Correia descobriu em A Senhora de Dubuque “uma peça que parece ressoar de uma maneira mais forte, hoje, do que na época em que foi escrita”. E, atenção, Albee terá andado a escrevê-la “ao longo de uma década, desde finais dos anos 60 [do século XX], os anos da presidência de Nixon, passando entretanto pelo Watergate, que pôs em causa a confiança na democracia, e pelo fim da guerra do Vietname.”

O então presidente norte-americano Richard Nixon é mesmo uma espécie de assombração que perpassa toda a peça. Ele não só é referido ocasionalmente pelas personagens, como parece ser a presença oculta que propicia todo o clima de descrença e de tensão que se vive naquele microcosmos burguês do Connecticut, onde se desenrola a ação. “Julgo que toda a peça levanta a questão da perda da identidade – quem sou, como me defino -, funcionando como um espelho sobre os valores de uma América em decadência”, sublinha o encenador.

Como se não bastasse, e aqui fala-se de hoje, destes nossos dias, a misteriosa Elizabeth (Cucha Carvalheiro), “senhora de Dubuque”, é profética quando, lamentando o destino da América, “terra confusa” como diz, profere: “Um verdadeiro Nixon virá um dia (…)”.

Albee não chegou a ver a América de Trump, nem “este mundo de líderes fracos” em “tempos particularmente difíceis”, mas as suas obras pressentiram tudo isto. É a convicção de Álvaro Correia quando descortina neste “teatro de múltiplas camadas” um retrato do país mais poderoso do mundo – e “a maior democracia” – a partir da decadência das suas elites intelectuais. O declínio do Tio Sam através de “uma burguesia consumida pelo álcool, invariavelmente destrutiva e que se insulta sem piedade”. Como refere Correia, “esta peça é, a par de A Delicate Balance, aquela que em Albee nos oferece a melhor metáfora sobre o nosso declínio civilizacional.”

A melhor maneira de apresentar essa metáfora é através da morte, e A Senhora de Dubuque é uma peça sobre uma mulher a morrer, um marido que cuida e uma misteriosa personagem que surge, “quem sabe se do inferno”, para encaminhar a alma da mulher moribunda. Em volta, “instala-se o caos, a crueldade, a tensão permanente e a risibilidade.”

Estamos, portanto, numa casa de gente abastada, em meados dos anos 70 do século passado (a tradução de João Paulo Esteves da Silva, e consequentemente o espetáculo, mantêm o rigor do tempo). Jo (Manuela Couto) e Sam (Fernando Luís), os donos da casa, recebem dois casais de amigos: Fred (Renato Godinho) e a nova namorada, Carol (Benedita Pereira), e Edgar (Álvaro Correia) e Lucinda (Sandra Faleiro).

Com o avançar da noite, Jo começa a ridicularizar os convidados e o marido, e o final da festa emerge numa tensa animosidade entre os anfitriões e os convidados. Nessa altura, já se percebeu que Jo está gravemente doente, padecendo de um cancro terminal.

Quando todos se retiram, surgem na casa Elizabeth e o seu companheiro negro, Oscar (Alberto Magassela). Com Jo a repousar no quarto, Sam surpreende-se com aquela inesperada presença e interpela-os sobre o porquê de ali estarem. Elizabeth anuncia ser a mãe de Jo, mas Sam sabe muito bem que a também anunciada “senhora de Dubuque” não o é. Ela é um “anjo da morte, inspirada na figura de Hécate, deusa grega a quem se atribuiu ser senhora das encruzilhadas. E está ali para encaminhar Jo para a morte.”

Com cenografia e figurinos de Nuno Carinhas e desenho de luz de Manuel Abrantes, A Senhora de Dubuque estreia a 29 de fevereiro na Sala Carmen Dolores do Teatro da Trindade INATEL.